No dia de partida, todos os que diziam estar preocupados comigo não foram me despedir na rodoviária. Tudo bem. Estava cheio de gente na fila do ônibus, poderia conversar sobre besteiras e me descontrair. Mas… me doeu a falta de Mamãe. Se sentiu traída, não quis dar um último alô decente. Não me recordo muito bem, mas acredito que, antes de sair de casa, dei tchau a ela na cama, que me respondeu com algum grunhido alienígena. Com certeza essa despedida foi cinza e na hora fiquei chucrute da vida. Mas entendo o lado da Mamãe.

    E a viagem foi um tanto bizarra. Logo no embarque, o motorista de pêlos ralos discutiu com um dos passageiros. O motivo é bem compreensível: o passageiro rasgou acidentalmente a passagem e em vez de avisar, simplesmente enfiou os pedaços de papel no leitor. Idiota, atrasou em 20 minutos a partida.

    Demorou mais ou menos 1h para chegar à fronteira. Um ônibus que estava bufando, restou apenas eu e mais um encapuzado sem face no ônibus, que tiveram coragem suficiente para atravessar o “mundo” e chegar ao último ponto. E finalmente eu viria a tal fronteira colossal de concreto, que os professores sempre falavam, que rasgavam os céus, que protege nós herbívoros. Como procedimento para inspeção do passaporte e bagagem, tive que sair do ônibus. E a primeira coisa que fiz para admirar o grande monumento foi olhar para baixo. O muro tem 50 cm de altura na vida real, e é grosso como um tijolo de queijo. Acho que só erraram a unidade de medida, mas tudo bem, altura ideal para apoiar o pé e amarrar os cadarços. É de se pensar que a grandeza do muro não é em suas dimensões físicas, mas em enganar multidões.

    Volta-se ao ônibus, com destino à cidade mais próxima.

    A situação azedou ainda mais quando desci da rodoviária. As ruas daquela cidade cheiravam muito genéricas. Os animais que passeavam pela calçada, olhavam-me não como uma presa, mas sim como um ser fantástico. “Será que minha carne é ruim assim?” ponderava estupidamente. A decepção foi maior, no momento em que entrei numa loja de conveniência… as marcas de refrigerante eram as mesmas do mundo dos herbívoros. Os sabores eram os mesmos. Tudo é o oposto do que as professoras ensinaram na escola, eles não vão querer te comer. Por que será?

    Desiludido, mudei o leme e fui me encontrar com uma coruja, a locadora do apartamento. Era tão, mas tão pequeno que a envergadura das minhas asas era a largura do quarto. Dormir lá significava ter a visão de um defunto após fechar o caixão. Tudo isso que nunca fui um bicho muito grande. Mas estava bem equipado, afinal, o chuveiro esquentava.

    Na manhã do dia seguinte, bati nos fundos do supermercado. O barulho rouco da ventilação quebrava a quietude. Não deu muito, a porta se desembrulhou por um jacaré, vergando para não bater a cabeça no teto. Era o Sr. Henry, dono daquele estabelecimento e de seu sorriso torto. Chamou para entrar dando tapinhas nas minhas costas, e me levou num escritório com iluminação vagabunda. Apenas uma conversa informal foi suficiente para me contratar como repositor. Estranhei, provavelmente ele precisava urgentemente de mão de obra. Só tinha certeza pela sua expressão: ele estava ávido para mostrar aos demais funcionários que eu era um come-planta.

    Quando me apresentei, todos olhavam com caras de fascínio colorido, e minhas listas de contatos se esticaram. Mas o que me chamou atenção foi Lily, a raposa com pelos de fogo. Não ficou impressionada em ver um herbívoro, não soltava nenhuma palavra. Apenas observava sua futura presa. E diferente dos demais, eu fiquei aflito em ver uma raposa (talvez porque no passado não muito distante essa tal espécie matava galinhas e comia seus ovos). Na verdade, ela só me tratou como um novo colega de trabalho. Isso é bom ou ruim?

    Foi a Lily que teve o serviço de me mostrar o grande supermercado, os setores, como mexer no estoque, etc, etc. Contou diversos detalhes ilícitos, tipo os melhores lugares sem câmera para matar serviço. Custou a perguntar:

    — Ah, então Raoni, o que fez você vir até aqui nesse lugar louco de carnívoros?

    — Ãh? — Sistema desconfigurado. — Sabe Lily… eu queria assim… um emprego para comer…

    Droga, eu falei a verdade. E foi uma das poucas vezes que a vi tirar a expressão de indiferença.

    E foi assim que começou a jornada no supermercado de carnívoros. Com um pouco de receio por ser a única presa e trabalhando no turno da madrugada. No entanto, descobri a pouco tempo que as leis de lá são brutas demais, acredito que a criminalidade seja menor do que no mundo dos herbívoros. O que me deixou decepcionado foi que não iria trabalhar com a raposinha, pois é atendente de caixa e eu repositor de gôndola.

    Logo nos primeiros dias fiquei rodeado de colegas, mas sou ruim em desenrolar bate-papo e juntar as palavras, não deu uma semana e fiquei meio sozinho, só cumprimentava com boa noite, olá, e aí mano, etc. Entretanto Lily era um pouco diferente, conversava ocasionalmente no intervalo de descanso, sem dificuldades. Ao contrário do que eu pensava, ela era alguém do tipo que oferece a pagar a tua janta. Sabe, eu queria me envolver mais com ela…

    Numa dessas conversas, Lily me contou a visão dos carnívoros sobre os herbívoros. No fundo, existem duas classes, sendo que uma evoluiu, adquiriu o dom da comunicação entre diferentes espécies, o raciocínio lógico, enquanto a outra parou no tempo. Com isso, existem “os civis”, que trabalham, têm uma rotina, convivem socialmente e possuem uma inteligência que os equiparam com os humanos, antiga espécie dominante. E os “de abate”, são bichos que mantiveram sua “burrice”, não evoluíram tendo sido criados em cativeiros. Ou seja, os animais que vivem no mundo dos herbívoros são somente os civis.

    — Mas por qual razão não existem animais “de abate” no mundo dos herbívoros racionais?

    — Ah, Raoni, isso já não faço ideia também — expirou de decepção. — aliás, assim estaria criando uma classe de animais amaldiçoados. É completamente sem sentido. Imagina se eles também evoluem…

    As duas classes de herbívoro… anteriormente eu nunca havia ouvido falar. Provavelmente, o poder do grande muro de concreto (de 50 cm) manipula tudo. E desse modo, a minha dúvida infantil de como os carnívoros vivem foi levemente saciada, mas o gole desse conhecimento aumentou minha sede… como um grupo de animais evoluiu e outro não? Por que os herbívoros sempre são os últimos a saber? Querem nos proteger de quem?

    Eu precisava dessas respostas.

    Nota