Capítulo 3: Uma espécie extinta
Bom, trabalhando de madrugada, eu chegava às dez da noite, e regressava ao apartamento caminhando no vácuo das ruas pelas cinco do outro dia, com as luzes dos postes espantando a maldade. Sempre andava com passos violentos, mas nunca corria para parecer bandido aos olhos de autoridades. Não passava nenhum carro, nem mesmo algum possuído por demônios, então não havia razão de andar na calçada.
Em uma dessas caminhadas de volta ao cafofo, eu vira de longe uma caçamba de lixo que se remexia sem força externa, suavemente. Não dei bola e continuei, devia ser o sono embaçando. Aproximava mais, e a resolução aumentava. Aquilo era irritante e atrativo, pois eu me negava a afirmar que não era o sono. Por precaução, reduzi o número de passos por minuto…
Finalmente cheguei ao lado, parei e olhei. No fundo, o zumbido do transformador do poste… fechei os olhos para apreciar a única fonte sonora disponível, mas aquela caçamba verde-gosma era tentadora, abri o canto do olho direito para espiá-la. Sem mais, avancei e levantei a tampa da caçamba. No meio do lixo embebido de chorume e líquidos não identificáveis, havia um saco preto, se remexendo. Um ser vivo devia estar dentro, e como naqueles desenhos animados, quando um ovo está prestes a nascer. Entretanto, estava claro que não tinha capacidade de romper a bolsa plástica sozinho, como no nascimento de aves. Se devia fazer alguma interferência externa, tipo abrir o caixão de um morto! Assim enfiei meu pé para as unhas rasgarem o saco. Imediatamente surgiu um membro de algum corpo e puxei com minhas asas. Nisso, encarnou um animal… sem pêlos ou roupas, sem forças para chorar. Como isso foi parar aqui, no mundo dos carnívoros? Um filhote humano! Só se via humanos em filmes e livros. Com uma aparência largada, seus ossos quase rompiam a pele. Enfim, não era um ser muito bonito… admito, humanos são feios…
Essa foi a noite que ajudei no nascimento de um humano. Não biologicamente, mas simbolicamente. Os humanos foram derrotados, não eram mais a espécie dominante.
Corrompido por misericórdia, o acolhi em meu apartamento, dei banho, e vestimentas. Por dias colocava comida na boca, pois o coitado só sabia chorar. E quando não chorava exprimia coisas sem valor. Dormia quase 15 horas por dia, um humano preguiçoso e dependente. Acabei por chamá-lo de Andor, nem lembro o porquê.
Confesso que tive medo de tê-lo no apartamento. Não havia humanos no mundo dos carnívoros, nem no dos herbívoros. Eles viviam no nada. Por isso, devia esconder o Andor o máximo possível
(Limpar bosta de bebê é um saco. Mas não nego que Andor foi deixando os dias livres mais coloridos).
***
Duas semanas após adotar Andor, houve um ocorrido que me levou a mais conspirações. Porque as coisas começaram a fazer sentido.
Antes de iniciar o turno, o Sr. Henry convocou todos os empregados a saborear a “carne universal”. Não me trouxe interesse inicialmente, pois como apenas grãos e insetos. Mas para Lily, esse tal novo produto lançado no mercado é a “maior revolução na indústria da alimentação”. Pedi explicações, e ela me respondeu:
— Aguarde. Você vai entender — que resposta escrota, sem novidade.
Esperando a tal degustação com na sala dos funcionários, o chefe jacaré aparece com uma bandeja, empilhada de petiscos. Segundo os carnívoros, o aroma estava delicioso. Cada um pegou um pedacinho… e um carnaval de reações. Entediado, pergunto ao Sr. Henry, o que raios era aquela tal proteína:
— Ora, Raoni, nós carnívoros sofremos com a injustiça da cadeia alimentar… o que fazer se os predadores primários devoram os herbívoros, se o predador secundário ataca o primário? nem todos gostam de comer bois ou porcos — bradou o jacaré — então, a solução que deram é a carne universal! Ela pode ser consumida por qualquer predador, pois modificaram os genes e entopem de hormônios para melhorar o sabor e os nutrientes, e não vem dos carnívoros e nem herbívoros.
— Ãh? Quanta loucura — nesse exato momento, ditei a experimentar esse tal alimento. Textura macia e explosiva… não é algo para eu comer — então donde vem, Sr. Henry?
— Bem, na verdade, esse ser é um onívoro, mas sempre se acham superiores… humanos! Isso, são humanos!
Não entendi. Borbulhou quintilhões de perguntas na minha cabeça sobre isso. Mas ao final, Henry apenas opinou que preferia peixes do que essa carne porcaria.
Assim, bateu dez minutos. Minhas tripas pareciam estar sendo batidas no liquidificador. Não perdi, e corri ao banheiro, vomitando tudo que guardava no intestino. Uma reação perfeitamente previsível e agradável. Sim, agradável, nunca vi uma euforia tão grande! Subiu os meus batimentos, respiração de um motor a 9 mil giros. As cores ficaram felizes!
E em 20 segundos tal sensação passou, e veio um tique nervoso e depressivo. Minhas penas ficaram duras, estava num buraco mais fundo que antes de comer aquela carne. Obviamente, a beira do vaso sanitário, não é o local ideal para reflexões, mas… a primeira coisa que pensei foi em Andor. Será que por causa da “carne universal”, que encontrei Andor na caçamba? Se ainda estava vivo, é como um alimento fresco… por que descartá-lo? Me deu um pouco de pânico, eu não queria que aquele filhote que resgatei fosse banquete de algum demônio.
Nessa madrugada de trabalho nada engrenou. Além das tonturas e tiques, tive flashbacks de coisas que nunca vivenciei. Vi salas brancas com centenas de humanos, gordos suficientes para suas pálpebras quase taparem os olhos. Comiam ração sem parar, tão rápido que até suavam e respiram difícil. Em certos intervalos, paravam de engolir, abriam a boca para puxar ar aos pulmões, retomar o fôlego e voltarem ao trabalho. Parecia que Andor não era o único Homo sapiens vivo nesse mundo. É uma psicose extremamente insana, pois além de todas as visões, a lucidez se mantinha intacta. Entretanto, me deu uma euforia que nenhuma outra droga traz.
Era loucura, mas tive que reviver esses momentos. Para ter certeza do paranormal. Se existe o mundo dos carnívoros, dos herbívoros, deveria existir a dos humanos. Sim, eu precisava buscar esse terceiro mundo! Juntando as peças desse grande quebra cabeça, descobriria a verdade desse…
— Raoni, aconteceu algo? Você está bem? Raoni? Vamos embora!
— AH! AH! Me desculpe, tô bem sim — tive uma visão embaçada de algo laranja, parecia uma miopia temporária — o que foi?
Lily me descreveu que eu estava com uma expressão apática e olhos desencontrados. Tinha me chamado várias vezes para bater ponto, fim de expediente, mas respondia qualquer coisa e seguia meu caminho. Eu devia estar sob controle de algum monstro.
Foi aí que comecei as experiências ecléticas…