Capítulo 40 - O simples
Hassan puxou o lagarto para mais perto. Com um canivete desgastado, começou a cortar a garganta do animal, fez um corte limpo na garganta do lagarto, que tinha por volta de dois kg. E rapidamente o colocou de cabeça para baixo, pendurando-o em um galho baixo para drenar o sangue. O líquido escuro começou a pingar no solo.
— Tire sempre o sangue o mais rápido possível, Norman — aconselhou, olhando rapidamente para o garoto que o observava com olhos fixos. — Corte a garganta dele e pendure de cabeça para baixo. Se o sangue coagular, perdemos a carne. Vê?
O garoto assentiu, tentando não parecer covarde e regurgitar. O homem então passou para o passarinho, e jogou para Norman.
O menino pegou o passarinho no ar com as duas mãos, e fez como o beduino havia instruído.
Enquanto Norman retirava o sangue e limpava as penas do passarinho, Hassan voltou-se para o lagarto.
— Tá vendo essa parte aqui? — Ele indicou a barriga do lagarto com a ponta do canivete. — Cuidado ao cortar a barriga. Se você acidentalmente cortar o intestino, estraga toda a carne, e aí teremos que jogar tudo fora.
Norman observou, assimilando para que pudesse repetir depois. O homem fez um corte na barriga do lagarto, habilmente evitando os intestinos, expondo a carne vermelha e fresca. Com gestos eficientes, ele começou a separar as partes, nomeando cada uma delas e como deveriam ser preparadas.
— Aqui, a fraldinha — apontou ele com o canivete, cortando o pedaço e entregando para Norman para espetar e colocar sobre a brasa do fogo. — Cupim, é uma parte mais gorda, mas boa para um assado. E essa é a coxa posterior, é onde fica mais carne.
Ele parou por um momento, limpando o suor da testa com o antebraço.
— Agora, faça um corte na nuca, no espaço de um dedo — instruiu, movendo-se para o próximo passo. — Enfie os dedos, pegue nessa parte aqui… — Ele agarrou o couro do lagarto. — E agora puxe com força para baixo.
Com um movimento firme, ele puxou a pele do lagarto, que deslizou rapidamente, expondo a carne viva por baixo. A pele se desprendeu com um som seco.
— Eu vou poder comer tudo isso? — respondeu o garoto, e a sua barriga roncando.
O homem sorriu, satisfeito com a atenção de Norman. Ele passou a mão pela carne nua do lagarto, admirando a bela carne, antes de continuar com o passarinho.
O homem ergueu os olhos para Norman enquanto cortava o réptil.
— Preste atenção, Norman. Isso é importante — disse ele, enquanto trabalhava, cortando-o em partes e nomeando cada pedaço.— Aqui temos o coração… e aqui, rins e fígados, tudo se aproveita e nada realmente deve ser jogado fora.
Norman se fascinou pela rapidez com que o homem lidava com a carne, a facilidade.
Um tempo depois, o cheiro da carne assada começava a encher o ar.
O homem arrancou um outro pedaço do lagarto e colocou-o sobre o fogo improvisado. O crepitar das chamas elevava-se ao céu, misturando-se ao cheiro forte penas queimadas. Ele espetou a carne assada em um palito improvisado e a ofereceu ao garoto, colocando uma porção diante dele.
— Deixe-me te contar uma história — disse ele, enquanto cortava outro pedaço do réptil. — Havia anjos no céu, dá pra acreditar? Anjos imortais, mas que não podiam sentir o que nós, pobres humanos, sentimos: prazer.
Ele fez uma pausa, mastigando a carne de forma quase barbara.
— Mas um dia, um desses anjos ficou com inveja. Ele olhou para nós, seres humanos, e não entendeu. Queria saber por que éramos tão fascinados por algo que ele nunca experimentara… o prazer. Coisa tentadora, não acha? Todos querem provar, até mesmo os anjos. Então, esse anjo trocou sua imortalidade. E a primeira coisa que ele quis fazer como humano foi comer carne assada.
Norman riu, um som meio rouco que combinava com o ambiente.
— Por que carne assada? — perguntou o garoto, o rosto iluminado pelo brilho da fogueira. — Por que não descobrir o prazer do dinheiro ou de dormir em uma cama quente?
O homem limpou a boca com o dorso da mão, o olhar pensativo enquanto as chamas sapecava a carne cada vez que a gordura da carne pingava sobre o fogo.
— Sabe, Norman, a vida não é uma causa perdida. Vale a pena ser vivida — disse ele, com uma voz que tinha a gravidade de quem conhecia o mundo. — Prazer demanda tempo. É por isso que temos a vida. Os prazeres rápidos são para os animais bípedes com incapacidade cefálica. O essencial está aí, esperando que você preste atenção. Como esta refeição, ou os momentos com quem importa. O simples realmente importa.
Aquelas palavras, de alguma forma, tocaram Norman. Estar longe de sua mãe o deixava sensível ao mundo externo, e as palavras do homem ressoaram em sua mente.
— Eu entendo… — Norman começou, hesitante, colocando o pedaço de carne de lado. Seus olhos fitavam o homem. Ele gostava de pessoas de bom coração, mesmo sabendo que, por mais que se esforçasse, nunca seria como elas. — Tenho que fazer minha vida ser a melhor possível, dadas as condições que me foram dadas. No meu caso,ser um deficiente. Mas ver tudo sob uma ótica ruim ofusca o lado bonito das coisas. Qual é a consequência positiva disso? — Seus olhos arderam, mas não por causa da fumaça da fogueira. — É trazer para a imediatez do presente um valor que até então nunca teve.
O homem sorriu, satisfeito por ver Norman se abrir sem precisar ser pressionado. Ele pegou mais um pedaço de carne, cortou-o com cuidado, e o entregou a Norman.
— É isso mesmo, garoto. É exatamente isso — disse Hassan, antes de voltar sua atenção para a refeição. — Não sei o motivo exato, mas parece que conseguimos nos entender muito bem.
— Que coincidência peculiar. Compartilho da mesma opinião — respondeu Norman, secando os olhos com o canto da mão, agora mais certo de que havia encontrado um amigo. Ele não precisava mais olhar as crianças pela fresta da cortina, esperando que um dia alguém o notasse e o convidasse para brincar.
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Norman estava deitado no chão áspero de uma das barracas do acampamento, o som do vento farfalhando na lona fina. Ele cobria os olhos com um braço, tentando abafar a luz fraca que se infiltrava pela entrada. Seus pensamentos estavam longe, perdidos nas memórias turbulentas das horas anteriores.
Norman estava tão absorto em suas lembranças que não percebeu quando uma luz formou uma silhueta na entrada. Uma brisa fria seguiu-se à presença de Thomas, um homem de rosto marcado,barba por fazer e olhos azuis assim como os de Norman.
— Norman, é hora de partir — Thomas disse, sua voz soando como um estalo seco de madeira ao ser pisada.
Norman não se moveu de imediato. Ele estava imóvel como uma pedra, mas por dentro, sentia-se como um vulcão prestes a explodir. Sua mente martelava com uma questão que não queria calar.
— O que os anciãos decidiram? — Norman perguntou, finalmente, sua voz saindo com um sussurro.
Thomas suspirou, baixando a lamparina até que ela repousasse em uma pequena mesa improvisada, feita de caixotes de madeira velha. Ele retirou uma moeda do bolso e a ficou encarando, limpando a face da moeda com o dedão.
— Em circunstâncias normais, ele teria sido apedrejado — murmurou Thomas, ainda olhando para a moeda. — Mas a mãe dele implorou por clemência. Disse que já havia sangue demais da família dela manchando a terra, que não suportaria mais uma perda.
Norman ajustou-se, sentando-se de forma ereta no fino tapete de palha.
— Então, o que aconteceu? — perguntou, sua voz agora um pouco mais firme.
Thomas fitou as chamas, como se não quisesse responder aquela pergunta.
— Morto. Ele está morto.
— O pedido de clemência não foi ouvido? — Norman balbuciou, confuso.
Thomas ergueu o olhar, encontrando o de Norman.
— Vai entender logo, mas primeiro, precisamos ir.
Thomas levantou-se. Norman imitou o movimento, usando a bengala no auxílio, esfregando os olhos cansados enquanto seguia Thomas para fora, empurrando a lona da tenda de lado.
Do lado de fora, o acampamento estava repleto de um murmúrio inquieto. As estrelas brilhavam intensamente no céu, mas o clima no acampamento era ruim e carregado de frustração. Ao passarem, alguns homens estavam sentados em troncos de árvores caídos, esfregando as mãos contra o rosto como se tentassem espantar o cansaço. Outros andavam de um lado para o outro, gesticulando e murmurando baixinho, com olhares perdidos e sobrancelhas franzidas em reflexões.
As mulheres debruçavam-se sobre baldes d’água, seus movimentos lentos, os olhares vagos e distantes. Crianças espiavam das portas das tendas, seus olhos arregalados em uma mistura de curiosidade e temor.
O ar estava com aquela sensação de ansiedade que nem o frio da madrugada conseguia dissipar.
Norman e Thomas caminharam pelo acampamento, pisando na terra endurecida pela ausência de chuvas. Eles avançaram lentamente, desviando dos montes de brasas moribundas das fogueiras.
Finalmente, chegaram à extremidade do acampamento, onde o único barulho era o “cri, cri, cri” dos grilos. Lá, uma figura estava amarrada a um tronco, com correntes apertadas nas mãos erguidas sobre a cabeça. As costas nuas do garoto estavam cobertas de lacerações causadas pelas chicotadas, as feridas ainda abertas e sangrando, atraiam as moscas que vinham sedentas.
Guli, o menino amarrado, tremia de dor, pequenos espasmos percorrendo seu corpo enquanto a brisa fria tocava suas feridas expostas. Seus olhos estavam fechados.
Norman observou a cena passivamente, suas bochechas e a ponta do seu nariz estavam coradas devido ao forte vento. Sua mão apertou com força o cabo de sua bengala, os nós dos dedos brancos pela pressão.
Thomas, sem desviar o olhar do garoto, começou a preparar a carroça que levaria Norman.
— Ele vai ser levado para as minas de cristal, próximo à fronteira de Westihal e da nova colônia, Sandun — disse Thomas, a voz grave como o som de pedras deslizando umas sobre as outras. — E com todos esses ferimentos… ele já está morto.
—Até Trotil não deve demorar muito. — O beduíno se moveu para frente do cavalo, e apertou algumas fivelas, enquanto falava — Há realmente uma filial do senhor que sua mãe serve lá que possa te levar para onde ela está?
Norman se virou, ajeitando-se na parte de trás da carroça, falou:
—Vamos em frente.
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