Capítulo 404 - A grande batalha do sul.
Saeliel ergueu os braços num gesto de pura concentração, a energia vibrando ao seu redor como um trovão prestes a ser liberado. Seu olhar, um abismo de determinação, fixava-se nos portais que lentamente se rasgavam no tecido do espaço.
Eram fendas entre mundos, brechas através das quais a destruição passaria como uma sombra. O ar pulsava com uma energia bruta, e do outro lado, a escuridão fervilhava.
Milhares de Elfos Negros aguardavam, guerreiros forjados pelo ódio, olhos brilhando com a promessa de guerra. O aço de suas espadas resplandecia, suas lâminas sedentas por carne, por sangue, por vitória.
O silêncio antes da tormenta pesava como um presságio inevitável. Então, Saeliel liberou o feitiço.
Os portais se escancararam, e o inferno marchou para a terra dos homens.
Eles emergiram como uma maré negra, inundando as ruas do ducado, movendo-se com a precisão de um assassino letal. Mas havia algo errado. Um erro pequeno, sutil, quase imperceptível — e, por isso mesmo, mortal.
As ruas estavam vazias.
Os Elfos Negros hesitaram.
Nenhum som de pânico. Nenhum grito. Nenhuma alma viva correndo para salvar-se. Apenas um vazio sepulcral, como se a cidade já estivesse morta antes mesmo de sua chegada.
Homens forjados na guerra não temem o desconhecido, mas aquilo… aquilo era outra coisa.
Uma ausência tão absoluta que transpirava emboscada. Procuraram nos becos, derrubaram portas, vasculharam as casas, reviraram móveis.
Nenhum vestígio de vida.
Nenhuma pegada na poeira.
Era como se Runyra tivesse apagado toda a existência daquele lugar.
No alto, um novo portal rasgou o céu.
Lumur e Miogve surgiram ao lado de Saeliel, seus rostos sombrios, tensionados pela inquietação.
— Eles fugiram…? — murmurou Lumur, os olhos varrendo cada canto daquele deserto de pedra e madeira. — Foram ajudar os Carniceiros na linha de frente?
— Impossível. — O tom de Miogve era seco como lâmina em pedra. — Se tivessem feito algo assim, nós saberíamos. Um ducado inteiro não desaparece sem deixar rastro.
Lumur apertou os punhos, a respiração pesada. O silêncio engolia seus pensamentos, mas seu instinto gritava como uma fera enjaulada. Algo estava errado. Muito errado.
— Não se esqueçam… — ele sussurrou, os dentes cerrados. — Runyra já venceu um exército dez vezes maior. A rainha está planejando algo.
E então, o erro fatal.
Lá embaixo, um dos Elfos Negros revirou uma mesa, inconsciente do destino que seu gesto traria.
O silêncio morreu.
Um clarão azul brilhou sob o móvel virado. Símbolos arcanos dançaram, cintilando como olhos famintos.
Então, o inferno desceu à terra.
BOOOOOOM!
Explosões detonavam, em sequência, uma tempestade de fogo e destruição devorando a cidade inteira. As chamas erguiam-se como demônios despertos, os edifícios sendo despedaçados em ondas de destruição. Madeira, pedra, ferro, carne — tudo era varrido pela fúria incandescente da armadilha.
Os gritos vieram logo depois.
Berros de dor e desespero misturavam-se ao rugido das chamas. Corpos eram lançados ao ar, dilacerados, reduzidos a cinzas. Fragmentos de membros voavam entre os destroços. O cheiro de carne queimada se espalhou, espesso, nauseante, uma oferenda macabra ao céu negro.
Era um massacre.
A rainha não havia fugido. Ela havia arquitetado o fim deles com frieza e paciência.
Do alto, Lumur tremia.
Seu corpo vibrava de ódio, seus olhos brilhavam com uma fúria cega. Seus punhos estavam cerrados com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Ele sabia. Ele deveria ter previsto.
A rainha sempre jogou sujo, assim como seu marido. E ele, como um tolo, caíra direto em sua armadilha.
Mas… onde estavam os soldados dela?
A terra tremeu.
E então, Lumur percebeu. O massacre ainda não havia terminado.
Das entranhas da destruição, algo se ergueu.
Um monólito de pedra, inquebrantável no meio das chamas vorazes. As rachaduras brilharam com um fulgor carmesim, e então, com um estalo seco, ele se desfez.
Eles vieram.
Sombras emergiram do fogo, deslizando como espectros sem som, lâminas já desembainhadas, cortando antes mesmo de serem vistas. A Ordem dos Caçadores de Espectros.
Sem piedade.
Sem hesitação.
Crunch! Crunch!
O barulho de ossos estilhaçados, carne sendo rasgada e lâminas encontrando carne encheu o ar. Gritos seguiram, afiados, efêmeros, sufocados pelo sangue. Os Elfos Negros, já debilitados, caíam como grãos de areia em uma tempestade, esmagados onde estavam.
E, no meio da carnificina, Ayla.
Ela ergueu os olhos, encontrando o olhar de Lumur através das cinzas e do caos. Não havia medo ali. Apenas um desafio frio, arrogante. Um convite ao confronto.
Lumur rangeu os dentes.
— Sua…!
Whoosh!
Ele desapareceu do céu, um borrão de ódio e fúria, rasgando o ar como um cometa em chamas. A espada de fogo tomou forma em sua mão, a mana fervilhando ao redor da lâmina como uma tempestade prestes a desabar. Ele desceu sobre ela, rápido, letal, absoluto.
Mas Ayla não recuou.
Ela sorriu.
E, num instante, a katana que Brighid lhe dera cintilou em sua mão, sua lâmina irradiando mana pura, como se o próprio mundo a reconhecesse como sua dona.
TIIING!
O impacto foi devastador.
A explosão do choque fez as chamas ao redor se apagarem num sopro súbito, a terra abaixo se partindo sob o peso do encontro das duas forças. Lumur forçou sua lâmina contra a dela, os músculos retesados, os dentes cerrados. Mas Ayla não cedeu. Seu olhar não vacilou.
“A força dela… é igual à minha?”
Lumur sentiu algo estranho. Uma hesitação, um lampejo de incredulidade.
Não importava. Ele era mais rápido.
TIIING! TIIING! TIIING!
Eles desapareceram num piscar de olhos, suas silhuetas se tornando vultos fantasmagóricos, riscando o ar em ziguezagues impossíveis, golpes ferozes ricocheteando entre si. O aço cantava, e as faíscas voavam como estrelas em uma noite sem lua.
“Como? Como ela está me acompanhando?”
Lumur franziu o cenho, afastando-se num salto, recuando para o alto, onde seus companheiros pairavam sobre círculos mágicos. Seu olhar sondou Ayla, desta vez com mais cautela.
O fluxo de mana dela… só aumentava.
Isso não era natural.
Não era dela.
Ele olhou ao redor, procurando. Precisava encontrar o Pandoriano que estava fortalecendo-a.
Não havia nenhum.
— Saeliel! Miogve! Façam alguma coisa!
Mas então, ele sentiu.
O arrepio subiu sua espinha como garras frias. Algo atrás deles. Rápido. Preciso. Letal.
Leerstrom.
Ele já estava lá, o seu aço cortou o silêncio.
FSSSSSS!
Saeliel e Miogve mal tiveram tempo de reagir. O golpe passou rente, queimando o ar ao redor, e, no instante seguinte, Miogve já havia sumido nas sombras. Saeliel pairava, ofegante, a pele marcada pelo calor do ataque.
Lumur girou no ar, seu coração martelando contra o peito.
Leerstrom estava ali, talvez, o único homem vivo que ainda representava a memória de Ultan.
A aura do antigo braço direito de seu pai o sufocava. Seus olhos vazios cravaram-se em Lumur como pregos em carne viva.
— Tenho ordens para executá-lo, Errante.
Sua voz era fria, vazia, sem emoção, bem como ele se lembrava.
Lumur desviou o olhar por um instante. O suficiente para ver… O massacre.
Lá embaixo, os Elfos Negros eram massacrados, cortados em pedaços como gado em um matadouro. Aqueles guerreiros, que um dia ele acreditara serem invencíveis, estavam caindo sem esforço, suas vidas ceifadas por sombras.
Seu exército estava sendo aniquilado e uma onda de desespero cortou sua mente.
Ele pensava estar acima de qualquer um, afinal, ele havia derrotado Lina com facilidade, a garota prodígio da família. Ele se via como algo além do alcance dessas formigas.
Mas agora…
Agora ele via a verdade.
— Merda!
Uma luz envolveu seu corpo e então, ele fugiu.
Seu corpo se transformou em um borrão luminoso, cortando o céu como um cometa, deixando a cidade o mais rápido possível.
Leerstrom não se moveu. Apenas observou.
— Parece que eles te abandonaram. — Ele ergueu sua lâmina, a mana pulsando ao redor do fio afiado. — Mas eu não vou te deixar fugir.
— Tsc! — Saeliel fez muxoxo.
Lumur já estava longe.
A velocidade anormal o impulsionava para o que restava de seu exército. Seu objetivo era chegar até eles, reunir as forças e organizar uma retirada.
Ele não aceitaria essa derrota.
Não ele.
Não o grande Lumur.
Mas conforme se aproximava… ele viu e parou.
Seu coração disparou.
Centenas de bandeiras dos Carniceiros tremulavam ao vento.
E abaixo delas um enorme buraco no chão, onde mais deles continuavam emergindo das entranhas da terra.
Um ataque subterrâneo.
— Mas… que droga?!
Ele sentiu o pânico se instalar.
O Império do Sul estava sendo massacrado, e eles sabiam disso. Os soldados jogavam suas armas ao chão. Alguns fugiam, outros caíam de joelhos, implorando por suas vidas.
O sangue fervia em suas veias.
— Desgraçados! — rosnou, estendendo a mão para o exército de Runyra. Uma esfera de fogo monstruosa começou a se formar em sua palma.
— Quem vocês pensam que são?!
E então ele sentiu. O arrepio. A intenção assassina. A lâmina vindo.
Ele saltou para trás, desviando por um fio do corte arqueado que veio de longe.
Seus olhos se viraram na direção do ataque.
Ayla.
Ela estava vindo, e não pararia. O olhar dela queimava. Ela não estava ali para lutar, estava ali para matá-lo.
Um instinto mais primitivo tomou conta de Lumur, o medo.
Ele desistiu de seu exército e correu. Usando duas vezes mais mana, sua velocidade dobrou, escapando para longe antes que a lâmina dela o encontrasse.
“Droga… essa vadia!”
Ele entendeu o que ela havia feito.
“A rainha ordenou que seu exército marchasse pelo subterrâneo? Merda! Quantos usuários de terra eles tinham para ir tão longe assim?”
Ela o enganou, desde o começo, e ele caiu feito um tolo.
Ele precisava de ajuda.
Agora.
Derrapando por metros, Ayla finalmente alcançou seu exército. Seus olhos varreram o campo de batalha, até encontrarem Dasken.
Ele fincava sua lâmina na cabeça de um dos soldados do Império do Sul.
— Dasken! — berrou. — Não pare de avançar! Continuem até que alcancem a capital do Império do Sul e a tomem!
Dasken não hesitou.
— Sim, senhora!
— Existem muitas células de Elfos Negros espalhadas pelo sul. Vamos eliminar todas!
E os Carniceiros seguiram matando, eles não permitiriam que ninguém escapasse. A maior força do Sul estava esmagando o inimigo.
Era um massacre.
E matar era o que os Carniceiros faziam de melhor.
Longe dali, Miogve observava tudo.
O ataque fracassou.
Ele não se importava com a derrota, mas Milveg sim.
O que ele diria ao seu senhor?
Primeiro, Ghindrion caiu no Oeste, agora, essa aliança no Sul estava sendo dizimada, mesmo tendo números superiores.
Milveg não aceitaria isso.
Milhares de Elfos Negros foram convocados para a guerra… e agora, seus corpos queimavam entre as ruínas do ducado de Runyra.
Miogve engoliu em seco.
— Você é bom em sair correndo.
A voz veio de trás e ele sentiu um calafrio na espinha.
Ele sabia quem era.
Josan.
E ele não estava sozinho. Atrás dele, uma legião de Caçadores de Espectros.
Miogve sorriu.
— Hehe! Tenho que admitir… — Ele passou a mão na careca, olhando de relance para os guerreiros à sua frente. — O nível dos usuários de magia evoluiu muito nestes últimos séculos.
Seus olhos brilharam.
— Da última vez que tomamos o Oeste, ninguém podia nos deter. — Ele riu. — Acho que é por isso que meu senhor teve tanto interesse em vocês, ocidentais. — O sorriso desapareceu. — Mas… Se fossem um pouco mais inteligentes, saberiam que não têm chance contra mim.
O vento parou, o ar pesou e os Caçadores de Espectros sacaram suas armas.
Josan não piscou e Miogve sorriu de novo.
Mas dessa vez, havia sangue nos olhos dele.
E ele não parecia com medo.
Josan sorriu.
Um sorriso astuto, afiado como a lâmina que agora reluzia em sua mão. Ele puxou a adaga de dentro de sua capa, os olhos cravados em Miogve, o assassino que havia massacrado a equipe de Yuki.
— Fiquem atentos! — Sua voz soou baixa, mas firme. — Esse Elfo matou a equipe do senhor Yuki sem esforço.
Ao seu redor, os Caçadores de Espectros se prepararam, seus olhos varrendo o campo de batalha cheios de tensão.
E então, o silêncio os envolveu. Nenhum dos dois se moveu, até que Miogve sacou sua cimitarra e atacou.
Tiiing! Tiiing! Tiiing!
A batalha começou.
As lâminas se chocaram em uma dança, golpes trocados em um frenesi de velocidade. Miogve era um borrão de aço e sombras, seus movimentos fluidos e letais.
Josan acompanhava, mas com esforço.
Seus golpes eram habilidosos, mas pareciam crus perto da maestria de Miogve.
— Você tem talento, garoto… — Miogve zombou, desviando facilmente de um golpe e girando sua lâmina em um corte veloz. — Mas tenho séculos de experiência.
Então, o jogo mudou.
Miogve sorriu e o campo de batalha se distorceu.
Ilusões nascidas das sombras.
Imagens distorcidas se multiplicaram ao redor deles, como reflexos fragmentados em um espelho quebrado.
Os Caçadores de Espectros hesitaram.
— O que estão fazendo? — Josan rosnou. — Ele não está aí!
Mas já era tarde. Eles atacaram uns aos outros pensando ser Miogve.
Miogve riu e avançou.
Cada movimento seu era preciso, letal. Sua cimitarra cortava o ar, abrindo rasgos vermelhos por onde passava. Um a um, os Caçadores caíram.
Ninguém sabia mais quem era real e quem era uma miragem.
Era um massacre.
— Claro que ele venceu a equipe de Yuki… — Josan percebeu. — As habilidades dele são problemáticas!
Miogve sorriu, divertindo-se.
— O que foi, garoto? — Sua voz era um canto de escárnio. — Está desesperado?
Mas Josan não cedeu.
Ele se focou e continuou avançando, mesmo ferido, mesmo sem saber o que era real e o que não era, ele seguiu.
— Em breve, não restará mais nenhum companheiro seu! — Miogve zombava, sua lâmina brilhando em meio às ilusões. — E para quê? Por obediência cega a um rei mesquinho?
Josan não respondeu.
Miogve continuou sua dança mortal, sua cimitarra deslizando no ar como uma serpente. Josan bloqueava, desviava, resistia, mas ele estava em desvantagem. Ou não?
— Não vai dizer nada? — Miogve riu, girando ao redor dele, os olhos brilhando com diversão. — Morrerá como um animal abatido? Hehe… Parece que te adestraram bem!
Então, Miogve cometeu um erro.
Aquele segundo de confiança, de arrogância, foi o suficiente para Josan atacar.
Swiin!
A lâmina de Josan cravou-se no tórax de Miogve.
O tempo parou, as ilusões se dissiparam e o campo de batalha se revelou.
Miogve arregalou os olhos. O golpe foi profundo.
— Você fala demais, Elfo.
Miogve soltou uma risada fraca.
— Hehe… desgraçado.
Mas ele ainda sorria. Mesmo ferido, ele se lançou novamente, colidindo com suas espadas. De novo. E de novo.
Lâminas dançavam, o aço cintilava sob o brilho sombrio da guerra. Esquivas, golpes, cortes — tudo em uma velocidade vertiginosa, então… A dor. Uma pontada aguda no tórax onde havia sido atingido. Algo estava errado.
Miogve saltou para trás e seu corpo cambaleou, com sua visão que escureceu.
— Que merda foi essa…?
Ele olhou para Josan e entendeu.
Josan sorriu e ergueu sua lâmina, mostrando-a.
— Você foi cortado por uma lâmina ante-magia envenenada. — Sua voz era triunfante. — Agora… é só uma questão de tempo.
Miogve engoliu em seco, suor frio escorreu por sua têmpora.
Seu corpo já começava a enfraquecer e ele sabia.
“Isso não vai terminar bem.”
Então, ele riu. Baixo. Fraco. Mas rindo ainda assim.
— Hehe… pirralho de merda.
E o sorriso dele não desapareceu.
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