Índice de Capítulo

    Miogve sentia o tempo escoar por entre seus dedos.

    O veneno corria em suas veias, uma sombra corrosiva se espalhando por dentro de seu corpo. Seus sentidos estavam afiados pelo instinto de sobrevivência, mas ele sabia.

    Precisava agir.

    Rápido.

    “Minhas mãos estão tremendo. Meus movimentos estão mais lentos.”

    Seus olhos percorreram o campo de batalha. Restavam poucos Caçadores de Espectros. Josan estava ferido, mas ainda de pé, e isso era um problema.

    Miogve sorriu.

    “Hehe! Mérito deles… Mas eu não morrerei aqui. Sinto muito por isso, garoto.”

    Ele levantou o olhar.

    — Vocês de Runyra são mesmo irritantes.

    E então ele agiu.

    Com um movimento rápido e sem hesitação, ele girou sua cimitarra… e a cravou em seu próprio abdômen.

    Schiik!

    Josan arregalou os olhos.

    — O quê…?

    Um círculo mágico brilhou ao redor do ferimento.

    As veias de Miogve incharam grotescamente, pulsando com uma energia proibida. Sua carne se remendava, mas a pressão sobre seu corpo era titânica, distorcendo suas feições em algo monstruoso.

    O sangue que jorrava não caiu no chão, ele se ergueu. Ondulando, escurecendo, transformando-se em sombras vivas.

    A atmosfera mudou e Josan sentiu em seus ossos.

    O campo de batalha se transformava. O ar ficou pesado. Denso. A maré da luta estava mudando.

    “Merda… Ele não estava lutando a sério?”

    Miogve riu.

    — Chega de brincar, garoto.

    Woosh!

    Ele se moveu como um borrão, pronto para exterminar o que restava de sua oposição. Mas então… Um clarão.

    Uma mão segurou seu ombro e, num instante, ele desapareceu.


    Eles emergiram no meio das ruínas. O antigo palácio de Lumur.

    O local ainda carregava as cicatrizes da última batalha contra Lina. Paredes devastadas, estruturas despedaçadas, ecos do passado impregnados nas pedras.

    Miogve cambaleou, apoiando-se contra uma parede e Saeliel caiu no chão, exausto, tossindo sangue.

    O Errante estava morrendo.

    O céu acima deles estava tingido em tons de rosa e laranja, um pôr do sol trágico sobre um império em ruínas.

    — Pre-preciso de ajuda… — Saeliel ofegou, sua voz fraca, os olhos vidrados. — Você… tem poções de cura?

    Miogve endireitou-se.

    Seus ferimentos haviam se fechado, ele estava de pé, mas Saeliel, caído. Desarmado. Inútil.

    Miogve deu um passo à frente.

    — Fomos trucidados. — Ele sorriu. — Bem, para ser sincero, nunca achei que esse plano fosse funcionar.

    Seus passos ecoaram pelo salão arruinado. O vento soprou através das ruínas, tremulando suas vestes como bandeiras ao vento.

    Lá fora, ele via o que restava da tentativa de assassinato do Imperador, somente destroços espalhados. Memórias de uma derrota que viria em breve.

    Ele suspirou.

    — Nosso imperador fugiu… e você? — Ele olhou para trás, sua expressão entediada. — Queria acabar com a linhagem desse tal Colin, não era?

    Ele riu.

    — Bem, parece que subestimamos os desgraçados de Runyra. Hehe! No fim, foi um bom passatempo.

    Saeliel se contorcia no chão, agonizando. — Miogve… por favor… poção…

    Miogve virou-se para ele e empunhou sua cimitarra.

    O Errante congelou.

    — Sabe… — Miogve inclinou a cabeça, como se refletisse sobre sua próxima ação. — Esse relacionamento nunca teve futuro.

    Saeliel arregalou os olhos.

    — O que…?

    — Você é um Errante. — A voz de Miogve tornou-se gelada. — E nossas raças nunca se deram bem. Desde que vocês derrubaram o Véu e colocaram a culpa na gente.

    Saeliel tentou se mexer, mas não conseguiu.

    — O que… está… fazendo…?

    Miogve sorriu.

    — Encerrando essa aliança. — O brilho frio da lâmina dançava em seus olhos. — Runyra marchará até aqui, e Lumur, se sobreviver, será caçado até o fim de seus dias. É isso que acontece quando se tenta abater uma presa grande demais, Errante…

    Saeliel tossiu sangue.

    — Seu… Elfo Negro… de… merda…!

    Miogve riu. — Você teria feito o mesmo comigo. — Então ele atacou.

    CRUNCH!

    A lâmina penetrou sua testa e, lentamente, os olhos de Saeliel perderam o brilho.

    Miogve girou a cimitarra antes de puxá-la, o sangue espirrando sobre as pedras rachadas. Ele não olhou para trás enquanto caminhava em direção ao buraco na parede, seu corpo lentamente desapareceu, seus rastros sumiram, como se ele nunca tivesse estado ali.


    O Império do Sul estava desmoronando e Lumur permaneceu ali em meio a ruínas, sozinho, isolado no que restava de seu domínio. O rei fantasma de um império que logo deixaria de existir.

    Cada respiração era uma luta contra a dor. Seu corpo estava exausto, suas roupas — antes símbolos de poder e de sua linhagem nobre — agora esfarrapadas, sujas, indignas. Assim como seus sonhos. Assim como seu legado.

    O pânico estava impresso em suas feições, o pânico de um homem que desejava governar todo o continente e, que agora, não passava de um espectro de si mesmo.

    Tudo o que construiu… desapareceu.

    Sua confiança, arrancada de seu peito. Seu império, desmoronou.

    Ele falhou. Ele perdeu, para uma oponente que subestimou desde o começo.

    Merda! — Ele gritou. — Merda! Merda! Merda!

    Sua voz ecoou, mas ninguém ouviu. Não restava ninguém para ouvi-lo.

    Lumur cerrou os dentes e sentiu o gosto amargo do fracasso se espalhar por sua alma. Seus olhos, outrora brilhantes de confiança, agora estavam embaçados pelas lágrimas que ameaçavam transbordar a qualquer momento.

    Então, incapaz de conter mais a torrente de emoções que o assolava, Lumur desabou sobre os escombros que o cercavam, seu corpo tremendo de dor, de desespero.

    Como uma criança perdida, ele soluçou amargamente, suas lágrimas misturando-se com a poeira e a ruína ao seu redor.

    — Desgraçados! Vermes malditos! Vocês vão pagar por isso, vão pagar!

    — Um homem tão orgulhoso como você chorando assim é vergonhoso.

    Ele olhou para o lado e viu um rosto familiar sentado em um dos pilares destruídos, o encarando lá de cima com seu nariz empinado.

    — Você… Briana… não, Ehocne!

    Coberta por uma capa escura, ela sorriu de canto.

    — Já faz um tempo, né?

    — Isso tudo é culpa sua! — disse furioso. — Se não tivesse me obrigado a ir contra o meu pai, nada disso estaria acontecendo! Ultan teria se expandido e eu seria o imperador!

    — Coitadinho… quer que eu tenha pena de você? Você sempre foi assim, sempre teve um ego maior que você, garoto. Essa sua obsessão em ser o escolhido do papai te levou onde está agora — zombou. — É um pouco deprimente, na verdade.

    — … O que está fazendo aqui? Veio rir de mim?

    — Não… eu me sentiria mal com toda essa sua… tristeza. Bem, já faz algum tempo que nós… tivemos alguma coisa, e sempre te achei sem graça, mas eu queria ver como toda essa sua ambição terminaria, e bem, parece que esse é o fim da linha, né? Foi o mais longe que você chegou… é decepcionante.

    Cerrando os punhos, ele deu dois passos à frente.

    — Eu ainda não estou morto, isso não acabou!

    — Lumur… às vezes temos que reconhecer quando perdemos e você, bem… algo grande acontece no Oriente, e aqui, no continente, tem coisas bem maiores para serem resolvidas. O que você representa nisso tudo é… nada! É o mesmo que jogar uma pedrinha no oceano, suas atitudes, seus sonhos, suas vontades… é tudo insignificante.

    Ele alisou o cabelo para trás, retomando sua postura convencida de sempre.

    — Mesmo que leve mais trinta anos, eu vou conseguir o que quero, é só questão de tempo.

    — Olha, fofinho, daqui a trinta anos é capaz desse mundo nem mais existir como conhecemos, mas se existir, meu irmão vai estar mais forte e você sequer o enfrentou… É tão insignificante que fugiu de uma mulher que pariu duas crianças há pouco tempo. — Ela apoiou o indicador nos lábios, pensativa. — Daqui a trinta anos, os meus sobrinhos estarão adultos, e pelo que sei dos pais… é… você não tem chance.

    — …

    — Não me olhe com essa cara, fofinho, é assim que esse mundo funciona. Os fortes mandam e os fracos obedecem. A sorte de vocês, humanos, é que meu irmão não é um desgraçado completo, se fosse… bem… não sobraria nada. Adeus, Lumur, foi divertido passar um tempo com você apesar de tudo.

    Ele ficou em guarda.

    — Veio aqui me matar?

    — Eu? Não… só vim te ver uma última vez. É engraçado pensar que a última pessoa que se importou em procurar você foi alguém que te usou, né? Deveria ser algum familiar ou coisa do tipo, mas… você é o último da linhagem de Ultan. Enfim… Adeus.

    Ehocne foi sugada por um portal que se abriu atrás dela, deixando apenas poeira.

    — Como se eu fosse morrer-

    Crunch!

    Uma flecha de raios dourados atravessou as paredes da ruína e o atingiu pelas costas, saindo por seu abdômen e explodindo violentamente na relva.

    A onda de impacto jogou Lumur longe.

    Após rolar na grama, ele levantou a cabeça.

    Forçando a análise, ele viu uma criatura se aproximar nos céus. Era como se uma montanha tivesse criado asas, e na cabeça do dragão branco estava a rainha segurando um arco feito de faíscas elétricas douradas.

    “Ela conseguiu me acertar dessa distância?”

    Golfando sangue, ele ergueu-se com dificuldade, tremendo como um rato encurralado. Tentou concentrar sua mana para escapar, mas a dor lacerante o fez desabar de bruços, o rosto afundando na lama fétida.

    — Droga… preciso me concentrar… preciso… me curar…

    O enorme dragão passou acima dele, então, como um raio, Ayla saltou, utilizando círculos mágicos como apoio para ziguezaguear até alcançar o solo.

    Seu arco desapareceu no mesmo instante em que seus olhos, frios e afiados, recaíram sobre Lumur.

    — Finalmente encontrei você. Sempre tão bom em fugir.

    Lumur, com o rosto deformado de terror, começou a se arrastar para longe, patético, como um verme que se contorce ao ser arrancado da terra.

    Seu corpo tremia, os dedos cravavam a lama úmida, mas era inútil. Ayla o alcançou com a serenidade de uma predadora diante de uma presa inofensiva.

    — Miserável… — murmurou, pressionando a sola da bota contra sua cabeça imunda, empurrando-o ainda mais contra o solo sujo.

    O cheiro da terra misturada ao suor de sua covardia era asqueroso.

    — É assim que parasitas como você deveriam viver. De cabeça baixa, rastejando, implorando para continuar respirando.

    O terror corroía cada fibra de seu ser. Sua respiração entrecortada se misturava ao gosto amargo da terra, e o suor encharcava sua pele.

    O pensamento era obsessivo, um mantra pulsante em sua mente: “Eu não posso morrer. Não agora. Não assim.”

    Ele ainda tinha aliados? Alguém viria salvá-lo? Havia um jeito de escapar? As perguntas se embaralhavam em sua cabeça, mas a resposta era sempre a mesma: não.

    — Po-por favor… majestade… perdão… — a voz saiu fraca, patética, a lama encharcando seus lábios rachados.

    Ayla estreitou os olhos, entediada, e afastou o pé. Por um segundo, Lumur ergueu a cabeça num gesto instintivo de alívio. Foi a pior coisa que poderia ter feito.

    BAM!

    O chute estalou contra seu rosto, arrancando-lhe dentes que se perderam na lama. Lumur gritou, levando as mãos à boca, sentindo a ausência dos dentes com a ponta dos dedos trêmulos.

    — Merda! Merda! — soluçou, cuspindo sangue e pedaços quebrados de si mesmo.

    Ayla cruzou os braços, repugnada.

    — Um verme como você não tem o direito de pronunciar palavras. Um guerreiro de verdade morre de pé, não choramingando como uma cadela assustada.

    Lumur começou a chorar baixinho, os ombros sacudindo em desespero.

    “Merda! Merda! Merda! Eu não posso morrer aqui, não posso, nem que eu tenho que implorar!”

    — Faço qualquer coisa que a senhora quiser… só… — sua voz saiu quebrada, e sua mão suja deslizou pelo tornozelo dela num gesto de súplica.

    No mesmo instante, Ayla recuou o pé com repulsa e o chutou novamente.

    BAM!

    — Não ouse me tocar, lixo imundo!

    Ele rolou pelo chão, gemendo como um cão sarnento chutado para fora de uma casa.

    Foi então que o imponente dragão pandoriano pousou atrás de Ayla, suas asas criando uma rajada de vento que derrubou o que restava das ruínas ao redor. Lumur ergueu a cabeça para encarar a besta, os olhos arregalados em horror absoluto.

    — Durante tempo demais você foi uma pedra no meu sapato… você, Alexander… — Ayla limpou as luvas como se acabasse de tocar algo repulsivo. — Meu marido deu importância demais a vocês… no fim, não passam de lixo insignificante.

    Ela o observou com um desprezo quase letal.

    — Um homem que se diz guerreiro… chorando… implorando como uma ratazana moribunda… nojento. Não vou sujar minha lâmina com você.

    — E-espera! — Lumur tentou se erguer, o rosto coberto de sangue, lama e lágrimas.

    Mas Ayla já havia dado as costas.

    O dragão branco rugiu e, em um único movimento brutal, sua boca colossal se fechou sobre Lumur, arrancando não apenas ele, mas a terra onde estava ajoelhado.

    NHACK!

    A criatura mastigou, os ossos estalando como galhos secos. Os gritos de Lumur foram engolidos pelo barulho grotesco de sua carne sendo triturada. Ele se debatia, remexendo-se na língua da fera como um inseto preso na boca de um predador, até que o som de sua existência cessou por completo.

    Ayla suspirou, sentando-se em uma pedra próxima.

    — Acabou… Assim que Colin conquistar Rontes do Sul, todo Leste será nosso… está vendo isso, pai? Seu sonho está se tornando realidade.

    As duas maiores batalhas da história de Runyra haviam sido vencidas, concretizando Ayla como uma estrategista implacável. Mas a guerra contra os Elfos Negros… essa estava apenas começando.

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