Índice de Capítulo

    Kurth estava sentado sobre uma pedra, o cantil de água fresca repousando em suas mãos, um pequeno conforto para um corpo castigado pelo cansaço. O suor secava sobre sua pele, desenhando trilhas sobre músculos que eram a prova viva de incontáveis horas de disciplina e brutalidade.

    Passou os dedos pelos cabelos ruivos, puxando-os para trás num gesto automático, tão familiar quanto respirar. Seus olhos varreram o horizonte sem pressa, não esperando nada, não desejando nada.

    Então, Tuly emergiu das sombras.

    — Senhor Kurth, me siga.

    Havia urgência na voz do homem, e Kurth percebeu.

    Não perguntou, não hesitou. Era um soldado, e soldados não fazem perguntas. Soldados marcham.

    Ele vestiu a camisa com um único movimento e seguiu pelo corredor estreito. Seus passos eram medidos, o porte rígido. Ele se movia como uma lâmina embainhada, letal mesmo quando contida.

    — Está lá dentro.

    Tuly parou diante da porta.

    Kurth exalou devagar, um suspiro tão leve que não perturbou o ar ao seu redor.

    Então, ele abriu.

    E por um instante, seu coração parou. Elas estavam lá. Duas sombras de um passado que parecia distante, mas jamais esquecido.

    Sua mãe e Alunys.

    A primeira balançava um berço com gestos suaves e pacientes, os olhos voltados para a criança adormecida como se nada mais no mundo importasse. Alunys observava de longe, os braços cruzados sobre o peito, silenciosa, mas atenta.

    Kurth não sabia se respirava ou se esquecia de como fazia isso.

    — Ma-mãe…?

    A palavra escapou-lhe, frágil como vidro trincado.

    Ela ergueu o olhar.

    Havia anos naquele olhar. Anos de espera. Anos de saudade.

    — Você cresceu, querido. — A voz dela era um sussurro carregado de memórias. Gentil e afável, como ele se lembrava. — Olha só para você… Meu menininho já é um homem!

    Kurth sentiu o nó em sua garganta apertar até a dor se tornar insuportável.

    Ele avançou.

    O abraço era tudo o que ele nunca soube que precisava.

    A sensação de casa, de calor, de algo que ele pensou ter morrido dentro dele há muito tempo.

    — Eu voltei para casa depois da queda de Ultan… — Sua voz saiu rouca, quebrada, como se as palavras tivessem lutado contra ele para existirem. — Mas não encontrei nada além de poeira…

    Eles se separaram, mas apenas o suficiente para se olharem.

    Dois corações batendo no mesmo ritmo.

    Foi só então que ele viu o berço.

    A criança dormia profundamente, os punhos fechados, o peito subindo e descendo no ritmo calmo de quem desconhece o terror.

    Kurth sentiu um frio estranho percorrer sua espinha.

    — Quem é?

    Sua mãe sorriu de leve, mas havia algo ali.

    — Muitas coisas aconteceram, Kurth… Temos muito o que conversar.


    O campo de batalha estava em silêncio, um testemunho mudo da fúria e do caos que o consumiram horas antes. O sangue empoçado na terra secava sob o sol fraco, e os ventos carregavam o cheiro de morte e ferro, assobiando entre as lanças cravadas no solo. As bandeiras rasgadas tremulavam, já não como símbolos de poder, mas como sudários sobre os cadáveres.

    Corpos de amigos e inimigos repousavam lado a lado, unidos na morte como nunca estiveram em vida.

    Safira caminhava entre os mortos, os passos lentos, as mãos nos bolsos, os olhos perdidos na vastidão de corpos que se estendiam ao redor. Ali não havia glória. Nenhuma vitória, somente lembranças cravadas na carne de cada homem caído.

    Ela desviava dos corpos, cada um contando uma história sem voz, até chegar a uma casa de pedra, uma das poucas construções que resistiram ao cerco.

    Lá dentro, os Ubiytsys estavam reunidos ao redor de uma mesa redonda, devorando a carne sangrenta de um veado abatido. Comiam como cães famintos, mastigando e rasgando a carne com dentes sujos, como se fosse a primeira refeição em semanas. Mas Safira passou por eles sem uma palavra.

    Subiu as escadas sem pressa, os degraus rangendo sob seus pés. Quando alcançou o quarto, não olhou de imediato. Sabia o que estava ali.

    Uma mulher morta.

    O corpo jazia no chão de madeira, os olhos vítreos voltados para o teto, uma poça de sangue seco ao redor da cabeça. Talvez tivesse sido estrangulada. Talvez uma lâmina tivesse feito o serviço. Não importava. Estava morta, como tantos outros.

    Safira não sentia nada.

    Seus olhos se voltaram para a janela.

    Além dela, o mundo seguia seu fluxo.

    O vento soprava. As nuvens passavam. O sol, indiferente, lançava sua luz sobre os vivos e os mortos da mesma forma.

    Ela esperava sentir alguma coisa. Remorso, culpa, dor. Mas ali dentro, não havia nada. Apenas o vazio.

    Talvez fosse errado sentir tão pouco.

    Talvez fosse inevitável.

    A porta rangeu atrás dela.

    Jack entrou no quarto, o charuto pendendo nos lábios, o cheiro de tabaco e sangue seco preenchendo o ambiente. Seus olhos percorriam tudo, mas sem surpresa.

    — O que foi? — perguntou, soprando uma nuvem de fumaça. — Passou por nós sem dizer uma palavra.

    Safira virou o rosto em sua direção.

    — O que você sente ao tirar uma vida?

    Jack deixou escapar um riso seco.

    Virou-se para o teto, soltou outra nuvem de fumaça.

    — Nada.

    — Isso é errado? — murmurou ela.

    Jack sorriu de canto.

    — Talvez. — O sorriso de canto. — Mas nunca me importei com isso.

    Ele gesticulou para a janela, para o mundo destroçado lá fora.

    — Olhe ao seu redor. Há um cadáver em cada esquina. Melhor ser outra pessoa do que você.

    A guerra consome tudo. Até mesmo suas humanidades.

    — Você já matou gente inocente? — ela perguntou.

    Jack não hesitou.

    — De um ponto de vista realista, ninguém é realmente inocente.

    Era uma resposta, mas não era reconfortante.

    Safira engoliu em seco.

    — Sinto algo quando me lembro dos meus amigos. — O olhar dela parecia preso em um tempo que não existia mais. — Eu… não queria ter feito aquilo.

    Ela viu os rostos em sua mente.

    O rosto de Colin contorce de raiva. Os gritos do caos. As vidas que ela ceifou.

    — E anos depois, no plano astral… tive chance de me desculpar. — Os dedos dela se apertaram sobre o tecido da calça. — Mas não o fiz.

    Seu peito subiu e desceu lentamente.

    — Em vez disso, lutei contra ele. Matei mais alguns de seus companheiros. Levei tragédia a milhares de pessoas…

    Ela parou. O silêncio caiu pesado entre eles.

    — E tudo para quê?

    Jack não respondeu. Ele aproximou-se, bagunçou os cabelos dela com um gesto fraterno, um gesto que não combinava com o peso da conversa.

    — Você precisa se encontrar, garota. — A voz era suave, mas nem um pouco gentil. Soava mais como um veredito do que como um conselho. — Pessoas perdidas cometem erros. Tomam decisões idiotas.

    Ele pegou o charuto de volta, girou-o entre os dedos como se segurasse algo muito mais pesado que tabaco e cinzas.

    — Se você não souber quem é, alguém vai dizer quem você deve ser. — Ele tragou fundo, os olhos perdidos no teto encardido. — E quando isso acontecer, você vai acordar um dia e perceber que tudo o que fez, tudo o que se tornou, foi para satisfazer uma sombra que nem ao menos reconhece.

    Ele soltou a fumaça lentamente, deixando-a dançar no ar antes de se dissipar.

    — Você tem que seguir seu próprio caminho, menina. Ou vai acabar sendo só mais um nome na terra encharcada de sangue, sem ninguém para lembrar quem você realmente foi, nem mesmo você.

    Ela desviou o olhar, os olhos pousando no corpo da mulher morta no chão.

    — Você ficaria bravo se eu te deixasse no meio da guerra? — A pergunta veio antes que pudesse segurá-la.

    Jack deu de ombros, o sorriso brincalhão puxando um canto dos lábios, mas seus olhos não refletiam a mesma leveza.

    — Você mais assiste do que participa das batalhas.

    Safira esboçou um sorriso, mas havia tristeza nele, como uma lâmina embainhada que ainda cortava.

    — Quero ir para casa… — A voz dela veio baixa, carregada de um peso invisível. — Quero estar perto do senhor Colin, da senhorita Brighid… e pedir desculpas.

    Ela respirou fundo, os olhos perdidos no chão, como se a resposta estivesse gravada entre as tábuas envelhecidas.

    — Acho que eu aceitaria qualquer coisa. Se eles quisessem me matar, eu aceitaria… — Sua voz tremeu, mas não quebrou. — Se isso os fizesse se sentir melhor…

    Jack a observou, seus dedos batendo suavemente contra o charuto.

    — Morrer… é isso que você quer?

    Os lábios dela se franziram.

    — Minha vida… — Ela hesitou, engolindo em seco. — Ela trouxe mais malefícios do que benefícios…

    Ela cerrou os punhos.

    — Se for para jogá-la fora, que seja nas mãos das pessoas que amo… É assim que penso…

    Os olhos brilharam, úmidos.

    — Não me lembro dos meus pais… — A confissão saiu como um sussurro, como se a admitir fosse algo vergonhoso. Como se fosse uma falha. — Quando me pego pensando em coisas assim… no lugar dos meus pais, eu me lembro deles. Colin. Brighid…

    Os únicos nomes que ainda pareciam importar.

    — Eu só quero vê-los de novo… — A voz falhou dessa vez. Ela piscou rápido, como se tentasse conter algo que já não podia ser contido. — Nem que seja uma última vez. Nem que seja apenas para me despedir…

    Jack inspirou profundamente, soltando a fumaça em um longo suspiro.

    — Então é melhor se cuidar, garota. — A voz dele era grave, sem o usual tom zombeteiro. — O trajeto até o Grande Continente é árduo e traiçoeiro. Muitos membros da Encruzilhada já conhecem seu rosto. E nem todos vão querer deixá-la passar.

    Ela assentiu.

    — Obrigada por tudo, senhor Jack.

    Ele soltou uma risada curta, balançando a cabeça.

    — Se cuida. Quando essa guerra acabar, reuniremos todos. Colin, meus filhos, você… — Ele passou a mão na barba, pensativo. — E faremos um grande banquete!

    Ela desviou o olhar, cabisbaixa.

    — Não sei se eles vão me perdoar…

    Jack apertou os lábios, pensativo.

    — Esse rapaz, Colin… tem um bom coração. — Ele tragou o charuto, os olhos se estreitando um pouco na fumaça. — Meus filhos o conheceram. Falaram bem dele. Meu caçula, Stedd, não economizou elogios ao garoto.

    A fumaça pairava no ar, densa, rodopiando.

    — E pelo que ouvi dizer, o império dele prospera. — Jack virou-se para ela. — É um bom homem. Melhor que muitos que já pisaram nesse mundo.

    Ele jogou o toco do charuto na lareira, como se isso encerrasse o assunto.

    — Agora vá antes que anoiteça. — Um meio sorriso surgiu em seu rosto. Um pouco mais sincero, mas não menos cansado. — Não quero dividir meu veado com você no jantar.

    Ela sorriu de canto.

    E então o abraçou.

    Um abraço apertado, sincero, o tipo de coisa que a guerra tentava arrancar das pessoas.

    Jack resmungou, mas não a afastou.

    — Ei, ei, se minha esposa me vir tão perto de uma mulher tão jovem, nós dois levaremos uma surra.

    Safira riu, mesmo com os olhos marejados.

    — Nunca vou me esquecer do senhor…

    Ele respondeu com dois tapinhas nas costas dela, firmes, como se quisesse dizer algo que palavras não explicariam.

    — Já nos despedimos demais. — A voz saiu um pouco rouca, mas logo se refez. — Suma logo daqui.

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