Índice de Capítulo

    [Onze anos atrás.]

    O anoitecer derramava-se sobre a vila, tingindo o céu de laranjas queimados, rosas suaves e roxos profundos. A luz do sol se dissipava lentamente, cedendo espaço à escuridão com a paciência de um amante relutante.

    A vila, aninhada nas montanhas, descansava sob o frescor da noite. As ruas estreitas ecoavam risadas e vozes suaves, os últimos murmúrios de um dia que morria.

    Nos ombros fortes e robustos de um homem com chifres saindo da testa, Safira, pequena como um passarinho, olhava para o céu crepuscular com olhos cheios de fascínio.

    O dedinho dela cortou o ar, apontando para um risco prateado que cruzava as alturas.

    — Olha, papai! — exclamou, a voz repleta de alegria infantil.

    O pai sorriu, um sorriso cheio de ternura.

    — Faça um pedido, querida.

    Safira fechou os olhos, apertando-os com força, como se isso garantisse que o universo a escutaria. Seu coração pulsava, as palavras de seu desejo formando-se silenciosas em sua mente.

    Antes que pudesse falar, o pai a lembrou: — Tem que ser segredo.

    Ela assentiu, satisfeita com o mistério.

    E juntos, entraram na casa acolhedora e quente, onde o cheiro de pão fresco e especiarias preenchia o ar.

    A mãe de Safira estava lá, um sorriso iluminando seu rosto mais do que qualquer lamparina.

    — Mamãe, eu vi uma estrela-cadente! Fiz um pedido! — Safira anunciou, pulando nos degraus com excitação infantil.

    A mãe arqueou as sobrancelhas, fingindo curiosidade.

    — Sério? E o que pediu?

    A menina levou o dedinho aos lábios. — É segredo! Não posso contar.

    — Nem para mim?

    — Nem para você!

    A mãe suspirou, derrotada.

    — Então, tudo bem. Vá para a mesa, o jantar está pronto.

    Enquanto a mãe servia a sopa fumegante, o pai se recostou na cadeira e olhou ao redor.

    — Onde Elnan está? Já faz seis noites que ele não janta conosco.

    A mãe pousou a colher sobre a tigela.

    — Está ocupado esses dias.

    — Ocupado com o quê? — O pai pegou a colher, soprando a sopa antes de beber. — Será que encontrou uma garota?

    A mãe revirou os olhos.

    — Se encontrou, é novidade. As meninas da vila acham ele esquisito.

    Safira balançou a cabeça, concordando.

    — Elnan devia fazer amigos primeiro.

    O pai riu.

    — Esquisito? Nosso Elnan?

    Ele provou mais uma colherada da sopa. — É um bom garoto. Só precisa se abrir mais. Isso ajudaria.

    A mãe o observou com um olhar que dizia mais do que palavras.

    — Deveria falar com ele antes que seja tarde.

    — Não precisa, querida. — O pai inclinou-se, roubando-lhe um beijo rápido. — É só uma fase. Eu era igualzinho quando tinha a idade dele. E veja só, dei sorte.

    Ele sorriu, mas ela não retribuiu imediatamente.

    — Eca! — protestou Safira, torcendo o nariz.

    — Para você, um beijo na bochecha!

    Os dois se inclinaram ao mesmo tempo, beijando-a de cada lado. Ela se contorceu, rindo e se debatendo.

    Mas Elnan não estava ali.

    Elnan estava no alto da colina.

    Seu corpo recortava-se contra o céu escurecido, uma silhueta imóvel olhando através da janela da própria casa.

    Na casa, uma família.

    Fora dela, ele.

    Seu cenho franziu-se e algo profundo e indigesto pesou em seu peito.

    — Essa é a vila?

    A voz arranhou o silêncio.

    Elnan não se virou de imediato.

    O estranho parou ao lado dele, os cabelos ruivos reluzindo na penumbra do crepúsculo. Seus olhos eram duros, frios, impassíveis.

    O ruivo moveu as mãos sob o manto escuro, puxando um saco pesado, entregando-o sem pressa.

    Elnan pegou o pacote, abrindo-o.

    Joias brilharam na luz pálida.

    Entre elas, um rubi vermelho como sangue.

    — Tem bem mais do que eu esperava aqui dentro — murmurou, satisfeito.

    — Você merece — disse o ruivo. — Essa deve ser a última vila de Asmurgs do continente.

    Elnan olhou para o homem com um sorriso torcido. — Olha, que sorte a sua, terá a honra de extingui-los.

    O ruivo hesitou por um momento. — Eles não são poderosos?

    — Vocês são os caçadores de Monarcas. Não deveriam se assustar. — A voz de Elnan era desprovida de emoção. — Os corações deles valem uma fortuna. Tenho certeza de que valerão as perdas.

    O sorriso do ruivo permaneceu, mas algo se apertou em sua expressão.

    — Eu só não quero ser morto por um desgraçado forte demais. — Ele fez girar a adaga nos dedos, quase distraído. — Mas me diga, garoto, por que vender sua própria vila?

    Elnan deu de ombros e então sorriu.

    Um sorriso vazio. Frio. Perverso.

    — Por que não vender?

    Ele estendeu a mão, indicando a vila abaixo.

    — Olhe para eles. — Seus olhos brilhavam com algo próximo ao desprezo. — Criaturas do abismo, a maioria. E todos eles… desgraçados.

    O ruivo arqueou a sobrancelha.

    — E seus pais, garoto?

    A resposta veio rápida, venenosa, cuspida como algo podre.

    — Não me importo com eles. — Os lábios de Elnan se retorceram. — Nunca vi aquela criatura como meu pai. Nem aquela vadia como minha mãe. Faça o que quiser com eles.

    O ruivo assentiu devagar.

    — E sua irmã?

    Houve uma pausa.

    Um brilho calculista cruzou os olhos de Elnan.

    — Safira? — Ele inclinou a cabeça, como se provasse o nome na boca. — Ela pode ser útil. Mas não agora.

    Um instante de silêncio.

    O ruivo não piscou e Elnan sorriu de canto.

    — Venda. Use. Faça com ela o que quiser. Quando chegar a hora… eu a buscarei.

    O ruivo não perguntou mais nada.

    Não havia necessidade.

    Ele apenas assentiu, um gesto breve, definitivo. E então, virou-se, descendo a colina com passos firmes.

    Não estava sozinho.

    Das sombras surgiram outros, emergindo como predadores, saindo de suas tocas. Uma mulher caminhava logo atrás do ruivo, os olhos gélidos, os cabelos escuros caindo em cascata sobre os ombros, sua mão deslizando lentamente pelo cabo de uma katana presa ao quadril.

    Schlink.

    O aço brilhou quando ela desembainhou a lâmina. Ao seu lado, um homem alto, envolto em uma capa espessa, caminhava com a calma de quem já presenciou centenas de mortes e não se impressiona mais. Seu rosto permanecia oculto sob um capuz negro, mas quando se moveu, os feixes de luz revelaram um brilho escuro onde deveria haver pele.

    Atrás dele, um vulto pálido e cadavérico deslizou pela colina, magro como um espectro, os olhos afundados em órbitas escuras. Ele caminhava como se cada passo fosse um tormento, o corpo encurvado, os dedos longos demais, retorcidos como garras, esperando para se fechar ao redor de uma garganta.

    Outro veio logo depois, silencioso, as botas praticamente flutuando sobre a terra. Ao seu lado, uma criatura voejante o acompanhava, uma coisa menor que um corvo, maior que um inseto, suas asas membranosas cintilando à luz das chamas. Lembrava uma fada, mas não era tão belo.

    E então, o ar se rasgou.

    Uma fissura negra abriu-se no espaço, um corte no próprio tecido da realidade. Algo saiu de dentro.

    Uma figura envolta em sombras, os passos silenciosos, uma capa esvoaçando ao seu redor como um manto de trevas líquidas, junto a dezenas de outros homens.

    A fenda se fechou atrás deles sem um som.

    Elnan permaneceu onde estava, o brilho das joias queimando em suas mãos.

    A vila dormia sob o céu escuro, embalada pela falsa segurança da rotina. Tochas iluminavam as ruas de pedra, e as últimas risadas dos que voltavam para casa se dissipavam na brisa fria.

    E então, a primeira lâmina encontrou carne.

    O som do corte foi abafado, uma respiração engasgada se perdeu na noite. O primeiro corpo tombou sem resistência, a garganta escancarada num sorriso vermelho.

    Seguiram-se outros.

    Sussurros de morte espalharam-se nos becos. Sombras deslizaram pelas vielas, avançando rápidas, silenciosas.

    E então, o primeiro grito rompeu a noite.

    Um homem saiu tropeçando de sua casa, uma lança cravada entre as costelas. Caiu de joelhos, cuspindo sangue.

    Atrás dele, a mulher de olhos gélidos e katana manchada de carmesim seguiu avançando, limpando a lâmina na túnica ensopada do morto.

    Mais portas se abriram, rostos confusos, assustados, ainda presos ao torpor do sono.

    E foi então que o massacre começou de verdade. As sombras se espalharam como lobos soltos em um rebanho. Um homem alto, o manto negro esvoaçando ao redor do corpo, rasgou uma garganta aberta com uma lâmina curva, o sangue jorrando quente sobre a pedra fria.

    O magrelo pálido deslizou para uma casa. Ouviram-se ruídos secos, o barulho de corpos caindo.

    Quando ele saiu, suas mãos estavam tingidas de vermelho.

    No alto das telhas, o homem de passos leves observava o caos com olhos atentos.

    Ao seu lado, a criatura voejante pairava no ar, suas asas membranosas vibrando em antecipação.

    Então, ela desceu.

    E onde suas pequenas garras tocavam pele, os corpos desfaleciam.

    Casas foram invadidas. Portas escancaradas e então veio o fogo. A primeira tocha foi atirada contra um telhado. As chamas se espalharam como dedos famintos, devorando madeira seca, se alastrando, crescendo, consumindo.

    O fedor de carne queimada encheu o ar e gritos cortaram a escuridão.

    O pai de Safira testemunhou tudo através da janela. Por um instante, seus músculos congelaram, a mente lutou para processar o que estava acontecendo.

    Gritos. Sangue. Fogo.

    A realidade o golpeou com força.

    — O que está acontecendo…? — Foi um sussurro. Mais para si do que para qualquer outro. Então ele compreendeu, e a voz se tornou um comando. — Pegue Safira!

    Ele girou, o rosto transformado em aço.

    — Estamos sendo atacados!

    A mãe de Safira agarrou a filha contra o peito, os olhos arregalados, o instinto lutando contra o medo.

    Ela correu até a porta — e parou. Hesitou.

    — Elnan! — gritou, o nome do filho rompendo seus lábios antes que ela pudesse pensar.

    O pai de Safira apertou os dentes.

    — Ele é esperto! — A voz saiu rígida. Controlada. — A essa altura, já deve ter se escondido!

    A mentira escorregou fácil, mas não soou verdadeira.

    A rua era um inferno.

    Chamas lambiam as paredes, o calor fazia a pele arder, o céu fora devorado pela fumaça. Safira chorava, os braços apertados em volta da mãe, os soluços tremendo contra seu peito.

    — Mamãe! Eu tô com medo!

    — Vai ficar tudo bem, filha!

    A promessa era um fio de esperança esticado até o limite.

    — Fecha os olhos!

    Os dedinhos dela apertaram-se contra os olhos, forçando o mundo a desaparecer.

    O pai de Safira sentiu a mana de Elnan. Seus olhos se iluminaram com um lampejo de esperança.

    — Elnan?!

    A mãe ergueu o olhar, desesperada.

    — Você achou ele?!

    — Sim! — A convicção preencheu sua voz. — Mas você tem que continuar. Eu vou buscá-lo.

    A mãe apertou os lábios, o corpo lutando contra a ordem.

    — Fuja para a floresta, eu encontro vocês em algumas horas, eu prometo!

    Ele apertou as mãos dela e deu um beijo. Rápido. Urgente. Safira sentiu os lábios quentes na testa e, quando abriu os olhos, seu pai já não estava ali.

    A fumaça o engolira.

    O vento quente das chamas soprou contra seu rosto, mas ele não piscou. O cheiro de sangue e madeira queimada impregnava o ar, um aviso mudo de que nada daquela noite terminaria sem dor.

    Os invasores se moviam como lobos, rápidos, coordenados, vorazes, mas ele era uma tempestade.

    A lâmina de vácuo cortou o primeiro homem antes que ele pudesse erguer a espada. O ar ao redor da lâmina rugiu e, quando o golpe o atingiu, o corpo se rasgou de dentro para fora. O peito abriu-se em uma nuvem de sangue, as entranhas caindo pesadas sobre a terra encharcada.

    Outro avançou, gritando, um machado erguido alto.

    Rápido demais. O tiefling girou sobre os calcanhares, desviando com a leveza de um dançarino. A lâmina subiu em um arco limpo e o grito morreu na garganta do invasor.

    Sua cabeça girou pelo ar antes de cair na lama. O corpo ainda deu dois passos antes de tombar sobre os joelhos.

    Outro veio das sombras, uma adaga pronta para cravar-se em suas costelas.

    Ele não viu, mas sentiu o assovio do ar cortado.

    Ele se lançou para frente, caindo sobre um joelho, girando com a lâmina baixa. O invasor tentou parar o ataque, mas já era tarde.

    A lâmina de vácuo subiu em um golpe cruel, cortando do quadril até o ombro.

    O inimigo tremeu, os olhos arregalados, o corpo se partindo em dois pedaços que desabaram no chão em uma pilha grotesca. Sangue quente salpicou o rosto do tiefling, mas ele não se incomodou.

    O próximo tentou fugir, mas ele não deixou.

    Avançou, a lâmina zunindo, e quando o homem tropeçou, uma bota esmagou seu rosto contra o solo.

    O grito inimigo foi abafado pela terra e o metal afundou-se na nuca dele, o corpo ficou imóvel.

    Havia mais, e ele iria até o último.

    A próxima espada veio em um golpe lateral.

    Ele saltou para trás, a lâmina inimiga passando rente ao seu peito.

    Um erro.

    O tiefling agarrou o pulso do atacante e torceu.

    Crack!

    O osso cedeu.

    O homem gritou, mas o som foi cortado quando o tiefling o puxou para perto e cravou a lâmina no seu estômago. Ele sentiu quando ela saiu pelas costas. Sentiu o calor do sangue escorrendo por seus dedos e empurrou o corpo para o lado como se descartasse um peso inútil.

    Os outros hesitaram.

    Então, ele o viu.

    O vulto surgindo na colina, joias brilhando em suas mãos.

    Os olhos ardendo na penumbra.

    Elnan.

    O coração do tiefling parou por um segundo.

    A batalha não importava mais, havia apenas ele, o seu filho, a outra parte dele que ainda estava viva.

    — Elnan!

    As joias nas mãos, o sorriso do filho. Ele ligou imediatamente os pontos.

    — Filho… — A voz dele se rompeu. — O que você fez?

    Crunch.

    A dor veio antes do som.

    Uma lâmina abriu-se em seu ventre, um golpe firme e frio, certeiro como um carrasco experiente.

    O tiefling girou, mas já era tarde. Sangue jorrou, quente e vermelho, manchando as pedras. O ruivo estava ali, seu rosto impassível, as mãos firmes na lâmina.

    O pai de Safira cambaleou e os joelhos dobraram.

    Elnan se aproximou, seu rosto uma máscara de indiferença.

    — Não precisa se preocupar, até aberrações como vocês irão renascer em um mundo abençoado pela magia.

    O pai estendeu a mão ensanguentada, tocando o rosto do filho uma última vez.

    — Eu… não sei o que aconteceu com você… filho… mas… eu… o… perdoo… — Sua voz era um sussurro, um último ato de amor em meio à traição.

    O grito de Elnan cortou a noite como uma lâmina cega, carregado de ódio, raiva e algo mais profundo, algo que corria em suas veias como veneno.

    — Como se eu precisasse do perdão de uma criatura como você!

    O rosto do pai estava manchado de sangue.

    Os olhos arregalados, confusos, feridos de uma forma que nem o próprio aço poderia causar.

    Elnan avançou. Rápido. Preciso. Mortal.

    O aço brilhou na luz das chamas e a lâmina passou limpa pelo pescoço, um corte exato, sem hesitação.

    CRACK!

    A cabeça tombou primeiro.

    O corpo veio depois, dobrando-se como se ajoelhasse pela última vez antes de desabar no chão. O sangue jorrou quente e espesso, um rio carmesim encharcando o solo.

    O ruivo observava.

    Seus olhos eram dois abismos insondáveis. Não sorriu e não franziu o cenho. Apenas encarou a cena, como um artista analisando a finalização de um quadro grotesco.

    E então, virou-se.

    — Certo. — Sua voz não carregava peso algum. — Vamos recolher os corações. E espero nunca mais cruzar com você, garoto.

    Sem esperar resposta, ele se afastou, seus passos desaparecendo entre a fumaça e as sombras, deixando Elnan sozinho com o cadáver de seu pai.

    Por um momento, o mundo pareceu suspenso.

    O fogo crepitava, o cheiro de sangue misturava-se à cinza.

    Elnan olhou para baixo.

    Seu pai.

    Seu sangue.

    Seu legado.

    Cuspiu no cadáver, a saliva escorreu lenta pelo rosto inerte, então, virou-se e lá estava ela, uma mulher encapuzada.

    As sombras dançavam ao seu redor, como se estivessem presas a ela de uma forma que não era natural.

    Bledha.

    — Está feito, senhorita Bledha.

    A voz de Elnan não carregava remorso. Nem orgulho. Nada.

    Ela sorriu, um sorriso que não deveria existir.

    — E sua irmã?

    Elnan deu de ombros.

    — Meu pai deve ter colocado um feitiço de detecção nela. Não vamos encontrá-la.

    Bledha não contestou. Apenas assentiu, como se já soubesse.

    — Certo.

    Os olhos dela brilharam por um instante, e então se voltaram para além da vila, para algo que só ela via.

    — Temos um lugar para ir. Um vilarejo. — O sorriso se ampliou, distorcido. — Quero testar algumas coisas lá.

    Elnan não perguntou.

    — Sim, senhora.

    E então, eles partiram, deixando o caos para trás, caminhando direto para a escuridão.

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