Índice de Capítulo

    Myvraid estava preso a uma cadeira de madeira tosca, seu corpo curvado sob o peso das correntes que o atavam. Cada elo de ferro marcava sua carne, castigada por cicatrizes e contusões que narravam o sofrimento que já suportara. Seu rosto, sulcado pelo cansaço, refletia a agonia de dias intermináveis.

    A cela era um túmulo de pedra, iluminada apenas pelo vacilar das tochas, cujas chamas lançavam sombras dançantes nas paredes úmidas e carcomidas pelo tempo. O silêncio era quebrado apenas pelo tilintar dos grilhões de Myvraid, um som metálico que ecoava na escuridão. Até que o ranger da porta anunciou a chegada de alguém.

    Levantando a cabeça com esforço, seus olhos, turvos pelo sofrimento, focaram na silhueta que adentrava o cárcere. Ele reconheceu a postura altiva, o andar calculado, o brilho cruel no olhar.

    — … Você… — A palavra saiu arrastada, como se cada sílaba lhe custasse um pedaço da alma.

    Milveg avançou, um sorriso torto se desenhando em seus lábios.

    — Que visão lamentável, pai. Os guardas não lhe pouparam, pelo que vejo.

    Myvraid permaneceu em silêncio. Seu próprio filho, o sangue que ele criara, agora olhava para ele com o mesmo desprezo que um caçador reserva à presa já abatida.

    — Não se preocupe, minha visita será breve. — A voz de Milveg era um fio de desdém e satisfação. Seus olhos percorreram o confinamento apertado. — Meus filhos sempre foram um fardo, mas desta vez eles se superaram. Morwyna deveria ter gerado uma nova linhagem de guerreiros, mas foi enfeitiçada por suas palavras. E agora, meu primogênito foi derrotado no Oeste, apesar de comandar um exército dez vezes maior.

    O velho elfo negro soltou um suspiro trêmulo.

    — Você… deveria libertá-los… eles não são… suas marionetes…

    Milveg arqueou uma sobrancelha, aproximando-se mais.

    — O que você disse a Morwyna? Ela fugiu para se juntar ao inimigo só porque você pediu? Não acredito que tenha sido apenas isso.

    Myvraid fechou os olhos por um momento, sentindo o gosto amargo do sangue nos lábios.

    — Eu apenas revelei a verdade… Quando ela encontrar o rei de Runyra… ele a conhecerá por inteiro.

    O sorriso de Milveg se desfez.

    — Que verdade é essa?

    — … Não vou lhe contar… Morwyna será nossa salvação… enquanto você… você só cultiva ódio…

    Milveg deslizou os dedos pelas correntes presas à parede, testando sua resistência, como se ponderasse se a dor do pai já fora suficiente.

    — Ódio? — Ele riu. Sua sombra se alongando sobre o pai conforme se aproximava. — Você já viveu o suficiente para saber que não é assim que o mundo funciona. O poder não se baseia em justiça, honra, moralidade ou ódio. O poder pertence àqueles que o tomam, àqueles que não hesitam.

    Ele cruzou os braços, fitando o pai com superioridade.

    — A verdade é maleável. O passado é reescrito pelos vencedores, e o futuro pertence a quem tem a força para dobrá-lo à sua vontade. Eu poderia queimar vilas inteiras, erradicar linhagens, esmagar civilizações, e mesmo assim, a próxima geração me chamaria de salvador, de restaurador da ordem. Porque é assim que as coisas sempre foram. Porque a memória do povo é curta e sua coragem, ainda menor.

    Milveg se inclinou.

    — Não importa quantas atrocidades eu tenha cometido… elas serão aceitas. Porque o medo é mais forte que a indignação. Porque os fracos não desafiam seus senhores, apenas se curvam e sobrevivem. Se eu disser que fui traído, serei um mártir. Se eu disser que purifiquei o reino, serei um visionário. O poder não precisa de justificativa, apenas de permanência.

    Ele sorriu, a expressão tingida de cruel certeza.

    — Você falhou porque quis ser amado. Eu vencerei porque exijo ser temido.

    Milveg soltou um suspiro longo, afastando-se um passo, mas sem desviar os olhos do pai.

    — O rei de Runyra. — Ele estreitou os olhos, sua voz mergulhando num tom de reflexão sombria. — Ele entendeu o jogo. Não é só mais um guerreiro ensandecido, não é só um líder momentâneo. Ele está agindo como um rei de verdade.

    O sorriso mordaz de Milveg voltou, embora agora trouxesse um quê de respeito forçado, quase relutante.

    — Esposas, filhos, linhagem, religião… Ele compreendeu cada uma dessas peças e as posicionou com precisão no tabuleiro. Ouvi os boatos, sabe o que dizem sobre ele? Que é um governante impiedoso, brutal quando necessário, mas benevolente quando lhe convém. Um rei que não apenas subjuga, mas conquista corações. Até sedutor ele é. Os reinos são feitos de espadas e sangue, mas se mantêm de pé pela lealdade e pelos laços forjados na cama, no altar e na promessa de prosperidade. E esse mestiço sabe disso melhor do que ninguém.

    Ele cruzou os braços, inclinando a cabeça para o lado.

    — É por isso que ele é mais perigoso do que Ultan jamais sonhou em ser. Ultan era um martelo: esmagava, destruía, espalhava terror. Mas esse Colin… Colin molda. Ele não apenas toma territórios, ele os absorve. Ele faz seus inimigos se ajoelharem não só pela força, mas pela necessidade, pelo desejo. Ultan poderia ter conquistado o continente, mas nunca o teria mantido. Esse mestiço, por outro lado… ele já garantiu que seu nome ecoará por séculos.

    Milveg então se abaixou, apoiando-se nos joelhos, encarando Myvraid de perto. Seu olhar faiscava, penetrante.

    — E você, pai… você não é um idiota. Não me faça acreditar nisso. Você mandou Morwyna atrás desse mestiço porque sabia que ele pensaria em algo. Você sabia que, conhecendo a mente de um conquistador, ele usaria Morwyna para me atingir de alguma forma e também, porque ele é sua última esperança contra mim, não é?

    Ele se endireitou lentamente, observando cada reação no semblante debilitado de Myvraid.

    — A única questão agora é… como ele fará isso?

    Milveg ergueu o queixo, seu sorriso se alargando.

    — Pois bem… aceitarei o desafio desse mestiço. — Sua voz soou carregada de determinação sombria. — Ele merece ser reconhecido, não como um rei qualquer, mas como um homem de verdade. Não o subestimarei como os outros fizeram. Ele é um inimigo digno.

    Myvraid ergueu o olhar, suas pálpebras pesadas, mas seus olhos ainda tinham um brilho resistente.

    — E… o que você pretende fazer?

    Milveg soltou uma risada curta.

    — Morwyna, Ghindrion… eles não importam. Nunca importaram. Eles nasceram para serem ferramentas e continuarão sendo ferramentas pelo resto da vida. Apenas peças no grande tabuleiro, movidas de um lado para o outro conforme a vontade do verdadeiro jogador.

    Myvraid suspirou, fechando os olhos por um momento antes de encarar o filho novamente.

    — Você deveria aprender com Colin, então. Ele trata bem seu povo, seus subordinados, aqueles que lutam por ele. Talvez até trate Morwyna melhor do que ela já foi tratada em toda a sua vida.

    Milveg sorriu, mas havia algo de selvagem e predatório naquele gesto.

    — Ah, pai… você realmente acredita que bondade compra lealdade? Talvez Colin a trate bem, talvez ele a faça se sentir especial, mas no fim… não passa de uma ilusão. Uma armadilha dourada. Ele é um rei, e reis não distribuem gentileza de graça. Mas isso não importa.

    Ele deu um passo para trás, observando a figura abatida de Myvraid com um olhar quase divertido.

    — De qualquer forma, isso logo será irrelevante. Porque eu vou apagar Runyra do mapa. — Sua voz vibrou na cela escura. — Está na hora dos Elfos Negros tomarem o que nos pertence. Por tempo demais assistimos essa raça imunda de mestiços, fadas, vampiros, meio-elfos e humanos governarem terras que jamais deveriam ter sido suas. Agora é nossa vez.

    Seus olhos brilharam com um ardor febril.

    — E que bom que Colin apareceu… Nunca me senti tão excitado em toda a minha vida para enfrentar alguém.

    Ele então se inclinou levemente, como se saboreasse o momento.

    — Você morrerá aqui, pai. Sozinho. Cercado pelo arrependimento, preso nesse buraco úmido e escuro, sem ninguém para ouvir seu último suspiro.

    Milveg se virou sem olhar para trás e caminhou em direção à saída. A porta rangeu uma última vez antes de se fechar com um estrondo metálico, deixando Myvraid sozinho na escuridão, com apenas o som de sua própria respiração entrecortada.

    “Morwyna… desculpe deixar tudo em suas mãos…”

    Ele respirou fundo. Ainda havia uma chance. Fraca, incerta, mas existia.

    Com extrema concentração, ele moveu o pé ferido, desenhando um círculo no chão poeirento. Cada traço consumia sua energia, mas ele não hesitou. O sangue de seus cortes misturou-se ao traçado, e o círculo brilhou em um vermelho profundo.

    Os lábios rachados de Myvraid se moveram, sussurrando a antiga prece:

    — O vizo Morvina e tavla zas tirit leka lir ela.

    No centro do círculo, o ar tremulou. Um corvo de sangue materializou-se, suas asas batendo furiosamente, espalhando gotículas rubras pelo ar. A criatura olhou para Myvraid uma última vez antes de se dissipar, deslizando como névoa pelas fissuras da parede.

    “Queria que minhas últimas palavras tivessem mais significado… Mas sei que você é forte… e não falhará.”

    O frio da cela se intensificou. Sua visão escureceu.

    Com um último suspiro, Myvraid fechou os olhos e se entregou à escuridão.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (4 votos)

    Nota