Índice de Capítulo

    O clima continuava estranho entre Ayla e Tuly, mas o rapaz decidiu quebrar o silêncio.

    — Tem certeza de que fará isso com os nobres? Eles irão retaliar.

    — Se retaliarem, então são mais burros do que pensei.

    — … A senhora espera que eles retaliem, não é?

    Ayla sorriu, sem olhar para trás.

    — Será mais fácil assim. As pessoas mais ricas do continente vieram para Runyra. Eles não podem oferecer mais nada além de dinheiro. Eles não têm homens, comércio, muito menos são bons empreendedores.

    Ela parou frente a uma porta grande de madeira.

    — A maioria é herdeiro que ganhou tudo de mão beijada, e pelos relatórios que li, eles sequer conseguiram fazer mais dinheiro que seus pais. São só um bando de inúteis, não vou sustentar gente inútil de graça.

    Ao abrirem a porta, foram recebidos pelos principais nobres do oeste em uma festa extravagante, onde o vinho fluía livremente e as conversas eram carregadas de intrigas e ambição desenfreada.

    As vozes cessaram, então Aoth ergueu a taça de vinho.

    — Um brinde à rainha! Sem ela, nós estaríamos perdidos!

    A entrada de Ayla foi saudada com aplausos, embora a maioria dos nobres presentes guardasse ressentimentos ocultos.

    Para muitos deles, a volta da rainha representava um obstáculo em seus próprios planos de poder e ambição. Prefeririam vê-la morta na guerra, lançando Runyra na instabilidade, do que ter que enfrentar suas demandas por poder e controle.

    Enquanto Ayla se movia entre aquele bando de abutres, os nobres se aproximavam, cobrindo-a com elogios falsos e bajulações.

    Ela podia sentir o peso das expectativas sobre seus ombros, sabendo que muitos ali a viam como uma ameaça aos seus próprios interesses. No entanto, ela permanecia serena, mantendo a compostura.

    Ela havia ido para a guerra lutar por eles, e agora, mesmo após retornar vitoriosa, ela enfrentava a hostilidade velada daqueles que preferiam vê-la derrotada.

    Com seu nariz empinado, ela subiu no palanque, seu olhar afiado varrendo o salão enquanto todos eles ficaram em silêncio.

    Ayla ergueu-se, a taça de vinho brilhando sob a luz dos orbes. Sua voz, firme e clara, ressoou pelo salão:

    — Nobres de Runyra, lembrem-se do que foi feito por vocês e pelo seu povo. As terras que foram suas agora pertencem aos Elfos Negros, e é sob o teto de Runyra que encontraram refúgio. Aqueles entre vocês que ostentavam coroas e títulos, saibam que essas distinções se desvaneceram ao cruzarem nossos portões. O ouro que prometeram será recebido e investido na construção de novas vilas, para poderem chamar este lugar de lar.

    Um murmúrio inquieto percorreu a multidão, e um nobre ousou questionar: — E quanto às nossas terras, usurpadas pelos Elfos? Não irá reivindicá-las para nós?

    Ayla fixou o olhar no nobre, sua resposta cortante como o inverno: — Nunca prometi tal feito. Meu compromisso era de abrigo, não de reconquista. O que foi perdido, foi perdido.

    Protestos começaram a surgir, mas Ayla, com um gesto elegante, ergueu sua taça mais uma vez:

    — Recuso educadamente todas as propostas de casamento e senhorias em nome do meu marido. Desfrutem desta festa, pois ela marca o término de sua era de nobreza. A partir de amanhã, serão cidadãos comuns e, como tais, deverão trabalhar arduamente pela vida que desejam reconstruir. Muitos de vocês são perspicazes, construíram fortunas no comércio; estou confiante de que podem prosperar mais uma vez. E aos herdeiros, não se acanhem: há valiosas lições a serem aprendidas com o exemplo de seus pais, e sempre haverá um pedaço de terra esperando por uma enxada.

    Ela bebeu de sua taça, um sinal de despedida, e desceu do palanque.

    A raiva era palpável, mas o respeito por suas conquistas militares impedia qualquer insulto. Ayla caminhava para a saída quando Aoth, tomado pela fúria, agarrou seu braço.

    Com um movimento rápido, ela se libertou e advertiu com voz gélida: — Não ouse me tocar novamente!

    — Não foi esse o combinado! — retrucou ele, tentando manter a compostura.

    — Combinado? — ela riu com desprezo. — Na sua carta, você se rebaixou aos pés do meu marido como um verme, implorando por ajuda. Homens como você não merecem sequer o título de homem. Estou sendo generosa ao tratá-lo como realmente é, uma criatura desprezível que se aproveita dos outros e os descarta quando já não são úteis. — Um sorriso cruel brincava em seus lábios. — Seja grato, pois é por misericórdia de Runyra que você e seu povo têm a chance de um novo começo.

    Com essas palavras, ela deixou o salão, deixando para trás um silêncio carregado de tensão e a promessa de uma nova era.

    — O garoto Elfo capturado — disse ela a Tuly. — Me leve até ele.


    Ayla desceu as escadarias do calabouço, cada passo um eco solene na penumbra. As dobras de seu vestido, um tecido tão negro quanto a noite sem estrelas, eram seguradas com uma mão firme para evitar qualquer tropeço indigno de sua estatura.

    O corredor, um túnel de sombras, parecia se estender ao infinito até que ela chegou à cela de Ghindrion. Ele jazia ali, um guerreiro caído, sem as marcas da tortura, mas com a dignidade ferida.

    — Retirem-se — ordenou Ayla.

    Os guardas obedeceram imediatamente, desvanecendo-se nas sombras como se nunca tivessem existido.

    A cela era iluminada apenas pela chama vacilante de uma única vela. Ayla aproximou-se de uma cadeira, seus dedos deslizando sobre o encosto, afastando a poeira acumulada.

    Ghindrion engoliu em seco, a secura em sua garganta, um reflexo do deserto em sua alma.

    O olhar de Ayla, frio e calculista, era um abismo no qual ele temia se perder. Sua beleza era indiscutível, mas naquele momento, transformava-se em uma espada de dois gumes, cortando qualquer esperança de clemência. 

    Ela permaneceu em silêncio, mas era um silêncio que falava volumes, pesando sobre Ghindrion como as correntes que já não o prendiam.

    Ayla o estudava, seus olhos como dois faróis guiando-o para a inevitável verdade de seu julgamento. A expressão dela era impenetrável.

    Para Ghindrion, a presença dela era a de um juiz divino, uma entidade cuja palavra era o destino final, cujo veredito era inescapável.

    — Estou decepcionada — disse ela com sua voz inquisidora. — Lina, o grupo de Yuki, eles eram poderosos, mas foram vencidos por vocês. Quando suas forças encontraram as minhas, pensei que ia ser um massacre, e foi, mas para o seu lado.

    Em uma jogada grácil das pernas, ela as cruzou, continuando com seu olhar impiedoso que o Elfo temia encontrar.

    — “Os grandes Elfos Negros”, os usuários mais poderosos de magia, reduzidos a isso.

    Ghindrion engoliu em seco.

    — Você… só perdemos porque você estava disposta a sacrificar tudo…

    Seus olhos criaram coragem para encará-la.

    — Mandou centenas de seus homens para a morte… um regente não deveria ver os seus como peças descartáveis…

    — Está explicado porque perdeu, ainda pensa como um garoto. Sacrifiquei centenas para salvar milhares, não é o mesmo que seu pai está fazendo? — Houve silêncio. — Claro que não… os estupros em massa, os genocídios, não fazem isso por conquista, fazem isso porque gostam. São piores que bárbaros.

    Desviando o olhar, Ghindrion engoliu em seco.

    — Você não entende… e mesmo que esse fosse o motivo, jamais mandaria meus homens para a morte assim… onde está a honra nisso?

    Ayla gargalhou baixinho.

    — Depois de tudo que fizeram, ainda quer falar de honra? Um líder deve estar disposto a tomar decisões difíceis pelo bem-estar de seu povo. O povo do norte, os Orcs, os gigantes, todos os homens que morreram naquela batalha, morreram porque acreditavam em meu marido, acreditavam em Runyra. Meu país é constituído de milhares de famílias, acha mesmo que pais, irmãos, deixariam suas irmãs, esposas, serem capturadas por vocês? Eles preferiam dar a vida para protegê-las do que deixar vocês avançarem, é assim que homens de verdade são. 

    — … Por que me deixou vivo? Se quer negociar com meu pai, é melhor desistir… — ele desviou o olhar. — Não estou me isentando do sofrimento que causamos, mas saiba que… se eu não tivesse feito isso, o meu pai… ele teria machucado a minha irmã…

    Ayla trocou a posição das pernas.

    — Assassinou, pilhou, estuprou, tudo isso pelo bem da irmã?

    — Tentei manter o meu batalhão nos eixos… Se estivesse no meu lugar, aposto que faria o mesmo por seus filhos…

    — Se Runyra fosse igual aos bárbaros, continuaríamos sendo uma vilazinha pequena atolada de corrupção até o pescoço. Runyra cresceu por um motivo simples, garoto, quando me casei, o meu marido limpou os corruptos e começamos a tirar Runyra da lama, dando dignidade ao meu povo.

    Ela começou a mexer no pingente que Colin havia a dado de presente.

    — Sabe… Meu marido não é um estadista, mas eu sou. O que me faltava era coragem para honrar o legado do meu pai. Pessoas podem se corromper, e ninguém está isento de falhas, mas o estado tem que se manter incorruptível. As leis têm que funcionar igualmente para todos, direitos individuais devem ser mantidos. Se a lei for sujeita à corrupção, isso levará à violação desses direitos, com alguns grupos conseguindo usar o poder do governo para oprimir ou explorar outros.

    A luz da vela continuava bruxuleante, sombreando o rosto de Ayla enquanto seus olhos dourados continuavam brilhando na escuridão, deixando-a assustadora.

    — Runyra comercializava escravos à luz do dia, garoto. Todo tipo de atrocidade acontecia com as nossas crianças e ninguém fazia nada. Impostos altos proibiam esse país de prosperar, e a corte nem se importava com aqueles que necessitavam realmente de ajuda. Éramos uma nação completamente podre. Meu pai me ensinou que quando o estado existe para satisfazer os legisladores e não aos cidadãos, ele perde o sentido de existir.

    Ayla se ergueu e dirigiu-se para fora da cela.

    — Muitos Elfos Negros vivem aqui, inclusive, muitos são companheiros valiosos. Esse genocídio desenfreado de vocês só está prejudicando o seu próprio povo. Elfos da floresta estão quase extintos, e vocês, pelo visto, estão seguindo este mesmo caminho.

    Com os olhos baixos, ele engoliu em seco e Ayla continuou:

    — A minha vontade era a de te matar lentamente, cortar você pedacinho por pedacinho e enviar seus restos ao seu pai. Você só continua vivo porque é um príncipe e sua vida pode ser usada como moeda.

    Com passos decididos, ela deixou a cela e Ghindrion permaneceu ali, com seus próprios pensamentos. A personalidade forte da rainha o deixou acuado, e a diferença de mentalidade havia deixado claro para ele que o mundo da política estava longe de ser compreendido por ele.

    A rainha e seu pai, Milveg, estavam dispostos a fazer qualquer coisa para vencer. Aos poucos, ficava claro em sua mente que seu pai mandou quase cinquenta mil Elfos Negros para a morte simplesmente para testá-los.

    O próprio Ghindrion havia sido um teste, um teste que falhou.

    Com os dentes cerrados, o príncipe Elfo entendeu que aqueles que são mais adaptáveis à busca de poder e menos restritos por considerações morais ou éticas muitas vezes têm uma vantagem competitiva na ascensão daquele jogo político doentio. 

    — Você… — ele sussurrou. — É diabólica…

    Ela apenas sorriu e deixou a cela.


    Ayla entrou no quarto com a suavidade de uma brisa noturna, seus passos quase inaudíveis sobre o assoalho de madeira. Brighid, embalando uma das crianças em seus braços, ergueu os olhos e um sorriso caloroso iluminou seu rosto ao ver a amiga.

    Ela aproximou-se dos berços, onde seus filhos dormiam o sono dos inocentes, e um sentimento de plenitude a envolveu. A felicidade de estar em casa, de ver suas crianças em paz, era um bálsamo para as feridas de sua alma guerreira.

    Ayla se sentou ao lado de Brighid, deixando sua cabeça descansar no ombro reconfortante da amiga.

    — Colin ainda não voltou… estou começando a ficar preocupada… — murmurou Ayla.

    — Acho que ele pode… demorar um pouco — respondeu Brighid, tentando manter a serenidade. — Jane me disse que um dos príncipes do abismo escapou, a energia foi sentida em Rontes do Sul, bem para onde Colin estava indo…

    A mestiça engoliu em seco, a preocupação transformando-se em desespero.

    — E-eu deveria ter mandado os Orcs para lá como ele pediu! Pelos deuses, o que eu fiz?

    Brighid levantou-se, colocando o filho adormecido no berço com delicadeza, e voltou a se sentar, oferecendo um porto seguro para Ayla, que recostou a cabeça em seu ombro mais uma vez.

    — Se acalma, não é culpa sua, essa guerra com os Elfos foi um imprevisto, e você sabe muito bem o tipo de homem que ele é. Colin não é fraco, ele voltará.

    — E se ele estiver precisando da nossa ajuda? — A voz de Ayla tremia com a possibilidade.

    — Colin entenderia os nossos motivos, tenho certeza de que levaríamos uma bronca se, com todos os problemas aqui, ainda tivéssemos enviado os Orcs. O nosso papel é proteger Runyra quando ele não está. Como esposas, cuidamos uma da outra e das crianças. Como rainhas, protegemos cada cidadão desse país.

    Os olhos de Ayla se encheram d’água, o medo e a incerteza refletidos em cada lágrima prestes a cair.

    — Eu só tô preocupada… a mãe dos monstros… esse príncipe do abismo… e se aparecer outra coisa? Sei lá… só de imaginar algo acontecendo com ele, eu…

    Brighid, com a gentileza de uma irmã, apoiou a mão no rosto de Ayla, afastando uma mecha de cabelo e encarando aquele rosto marcado pelas lágrimas.

    — Ele venceu um dos pandorianos de Coen e sobreviveu ao plano astral. Colin não é fraco. — disse Brighid, sua voz um bálsamo para a alma atormentada de Ayla. — Se isso te conforta, podemos enviar nossas preces a ele.

    Ayla assentiu, um gesto suave, e entrelaçou suas mãos às de Brighid. Juntas, ajoelharam-se ao pé da cama, um altar improvisado para o rito sagrado que se seguiria. Fecharam os olhos e, em silêncio, suas almas buscaram o divino.

    — Irá orar para a deusa da neve? — perguntou Brighid, sua voz baixa.

    Ayla respirou fundo, buscando em seu íntimo a fé que parecia esmaecida.

    — Eu não sei… talvez para qualquer deus que ainda consiga me ouvir. 

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