Capítulo 433 - Abraço no Abismo.
Morwyna engoliu em seco, a garganta apertada, antes de dar o primeiro passo em direção a Colin.
Seus pés pareciam pesar toneladas, cada movimento calculado para não provocar… o quê, exatamente?
Ele ainda respirava ofegante, os músculos tensos como os de um predador prestes a atacar, e por um instante, ela duvidou se deveria se aproximar.
“E se ele não me reconhecer?”
A mão dela tremeu ao se estender, hesitante, como se tentasse acalmar uma fera à beira do abismo. O cheiro de ferro e carne rasgada era torturante, e os restos dos demônios, pedaços negros e retorcidos, ainda fumegavam no chão.
Ela forçou os olhos a se afastarem da carnificina, concentrando-se apenas em Colin, na contração de seus punhos ainda ensanguentados, na maneira como seus ombros subiam e desciam em ritmo acelerado.
— Senhor, tudo bem?
Com um suspiro quase imperceptível, ela finalmente tocou seu braço, leve como o bater de asas de uma borboleta.
Ele estremeceu, virando o rosto para ela de repente, e Morwyna quase recuou, porque por um segundo, apenas um segundo, os olhos dele ainda brilhavam com algo que não era humano.
Mas ele pestanejou, e a fúria se dissipou como névoa ao vento.
Aliviada, ela respirou fundo antes de se virar para os elfos, desfazendo as barreiras mágicas com um gesto suave, mas não sem notar o horror estampado nos rostos etéreos daqueles seres tão graciosos.
Eles fitavam Colin como se ele fosse outro monstro, algo tão perturbador quanto os demônios que ele acabara de esfacelar.
O rei dos elfos do mar adiantou-se. Seus olhos, azuis e frios como as profundezas do oceano, perfuraram Colin com uma desconfiança que fez Morwyna cerrar os punhos sem querer.
— Você… você trouxe essa ruína para nossa vila! — acusou o rei.
Colin baixou a cabeça, os nós dos dedos ainda pingando sangue negro.
— Peço perdão… nunca foi minha intenção.
“Por que senhor Colin está se desculpando? Sem ele aqui… todos eles estariam mortos, né?”
Morwyna interveio antes que o silêncio se tornasse uma sentença, curvando-se com uma elegância que não refletia o frio na espinha.
— Majestade, sem ele, seu refúgio já estaria em chamas. Um dos Príncipes do Abismo foi despertado… e só alguém como Colin poderia enfrentá-lo!
O rei observou-os por um daqueles momentos que pareciam eternos. Então, com um suspiro que carregava o peso de mil anos de julgamento, ele finalmente acenou, relutante.
— Eu… compreendo a complexidade desta situação… mas meu povo pagou um preço alto pela presença de vocês… — Um leve movimento de seu braço indicou os restos mutilados de demônios espalhados pelo santuário outrora imaculado. — Esta… carnificina não condiz com a paz que cultivamos aqui. No entanto… — Ele hesitou, como se as palavras lhe queimassem a língua. — Agradeço por nos protegerem.
Colin inclinou a cabeça, os músculos do maxilar tensionados.
— Partiremos imediatamente. As criaturas nos seguirão e deixarão vocês em paz. — Seus punhos, ainda manchados de sangue negro, se cerraram. — Peço perdão… pelo transtorno.
Os elfos abriram caminho em silêncio, seus rostos marcados por uma mistura de alívio e repulsa.
Alguns escondiam os filhos atrás de suas vestes fluidas, como se Colin carregasse consigo uma aura de violência que contaminava o ar.
— Vamos, Morwyna.
— Ce-certo!
Enquanto adentravam o corredor cavernoso que levava para fora do refúgio élfico, Morwyna sentiu um nó se formar na garganta.
Os ombros de Colin, normalmente tão firmes, pareciam carregar um peso que ela não sabia o que era.
A luz fraca das paredes de cristal projetava sombras irregulares sobre seu perfil, destacando os sulcos de cansaço e algo mais… algo que ela não conseguia nomear.
“Ele… está mesmo bem?”
Antes que a dúvida a consumisse, ela estendeu a mão, pousando os dedos levemente em seu ombro.
— Não foi sua culpa, senhor…
A voz dela soou minúscula no vasto silêncio da caverna.
Colin não respondeu de imediato. Seus passos ecoavam como martelos no chão de pedra, cada um mais firme que o último.
Quando finalmente falou, sua voz veio rouca, mas estranhamente vibrante:
— Culpado? Não. Ninguém morreu. — Ele parou, virando-se para encará-la. Nos olhos dele, um brilho que não era apenas triunfo, era algo mais profundo, mais perigoso. — Foi uma vitória completa. Protegemos uma vila inteira sozinhos. Matei milhares daquelas criaturas e ninguém se feriu.
Morwyna sentiu um frio percorrer sua espinha.
— Mas… parte da vila deles foi destruída…
Ele sorriu.
— Detalhes. — O dedo indicador tocou a própria têmpora, como se apontasse para pensamentos que ela não podia ver. — Eu evoluí, princesa. Se enfrentasse Gorred agora… eu o esmagaria, tenho certeza. A partir de hoje… ninguém precisará morrer por mim de novo. Liena. Loaus. Wiben. Lina. Deb. Potter. Scasya. Minha mãe…
Cada sílaba era um prego em um caixão imaginário.
— Eles vão me deixar em paz se eu me fortalecer, entendeu? Não vou precisar mais os ouvir me dizendo o que fazer.
Morwyna ficou paralisada. Aquele não era o sorriso de um vitorioso, era o de um homem que havia cruzado uma linha que ela não podia enxergar.
“Senhor Colin… ele está… são?”
O corredor parecia ficar mais estreito a cada passo, a escuridão grudando neles como uma segunda pele.
Colin a encarava por cima dos ombros, vez ou outra, a vendo cabisbaixa, distante, assustada.
Ele assentiu e parou, virando-se para ela.
— Você já deve ter ouvido muita coisa sobre mim — ele disse, a voz mais áspera que o habitual. — E agora… deve estar percebendo que boa parte era verdade.
Morwyna sentiu um frio percorrer sua espinha.
— Eu…
— Dizem que sou um sádico. Um assassino. Um louco que destruiu uma religião inteira só porque não me deixavam ter duas esposas. — Um sorriso amargo surgiu em seus lábios. — Que recriei uma nova fé só para controlar os fiéis. Que massacrei nobres como gado porque ousaram se opor a mim.
Então, o silêncio que se seguiu foi mais pesado que qualquer acusação.
— E sabe o que é mais engraçado? — Ele deu um passo à frente, e Morwyna sentiu o instinto primitivo de recuar. — Tudo isso é verdade.
Seus dedos se cerraram, como se esmagassem memórias.
— O encanto que você tinha por mim… deve estar se esvaindo agora, não é? — A voz dele estava estranhamente suave, quase triste. — Você está vendo o monstro que todos veem. O problema é…
Ele inclinou-se levemente, até que seu hálito quente roçou seu ouvido:
— Eu nunca me importei. E você não pode se dar ao luxo de se importar também. Criaturas como eu e você… somos maiores que isso.
Morwyna ficou paralisada.
— Sabe, Morwyna… tem gente que tenta se manter limpa nesse mundo. Mas aqui? — Ele deu uma risada seca. — Aqui a gente se suja ou morre.
Ela sentiu o ar ficar mais pesado.
— A primeira vez que matei… foi para salvar uma garota num celeiro. — Ele olhou para as próprias mãos, como se ainda visse sangue nelas. — Os caras que me capturaram me trataram como lixo, e eu nem tinha feito porra nenhuma. Aí, quando vi aquele desgraçado em cima dela… foi como se o universo tivesse me dado um presente. Tipo: ‘Toma, covarde, aqui está a sua chance de nascer de novo.
Morwyna engoliu em seco. Havia um brilho estranho nos olhos dele… algo entre nostalgia e loucura.
— Peguei uma picareta e enterrei no pescoço do filho da puta com tanta força que quase quebrei meus dedos. — Ele tocou o próprio pescoço, quase com carinho. — Mas não foi suficiente. Quebrei os joelhos dele, quase arranquei… esfaqueei até não sobrar quase nada para enterrar.
— Senhor…
— Minha mãe sempre falou que matar era errado. Mas e quando é um verme desse? Ainda é errado? — Ele a encarou, esperando uma resposta que ela não tinha. — Já perdi as contas de quantos matei. Quase nenhum inocente… Quase. — Seu olhar escapou para o lado. — Teve um cara na estrada, espada cravada no peito. Podia ter ajudado. Não quis. Como eu ia saber que era o pai daquela criança?
Morwyna ficou quieta. Não era hora de falar, só de ouvir.
— Se eu parar agora, o que você acha que acontece? — Ele deu um passo para frente, a sombra dele engolindo a dela. — Tudo vai para o caralho. Esse mundo, os outros, tudo. Meu pai acha que eu sou um erro justamente por isso. Sem mim, o caminho dele tá livre. Mas eu tô aqui, uma pedra que ninguém consegue chutar para o lado.
Ela ouviu a tristeza escondida naquela voz cheia de ferro.
— E se… se o senhor morrer tentando?
Ele parou. Olhou para cima, para os cristais no teto que brilhavam como falsas estrelas.
— Aí vai ter valido a pena. — A voz dele saiu mais suave. — Já me imaginei morrendo mil vezes. Retalhado, sangrando, joelhos batendo no chão antes do corpo. É assim que quero ir, não num leito, não por acidente. Lutando. Só não quero que sobrem pedaços para eles usarem contra meus filhos… contra minhas esposas. Eles… não merecem essa merda.
Morwyna sentiu o peito apertar. A dor dele era tão visível que doía nela também. Ela olhou para Colin com os olhos marejados.
— Senhor Colin… por que tenho a sensação de que, por trás de todas essas palavras duras, o senhor está… gritando por ajuda?
Antes que ele pudesse reagir, ela fechou a distância entre eles num movimento quase desesperado. Seus braços se enrolaram em torno de sua cintura com uma força que surpreendeu até ela mesma.
O rosto afundou contra seu peito, como se tentasse alcançar o coração que batia por trás daquela armadura de cicatrizes e histórias sangrentas.
— Por favor… não faça isso consigo mesmo — sussurrou, a voz embargada e úmida. — Não precisa carregar esse fardo sozinho. Eu… eu já dei tudo ao senhor. Minha vida, minha lealdade, meu coração. Por que não aceita pelo menos isso?
Colin permaneceu rígido, mas ela sentiu um tremor quase imperceptível em seu corpo quando suas palavras o atingiram.
Morwyna apertou-o com mais força, como se pudesse espremer toda a dor para fora dele.
— Eu… vejo o senhor olhando para mim como se eu fosse um peso. Como se o proteger fosse uma obrigação triste. Mas… eu já vivi isso. — Sua voz falhou por um instante. — Meu avô era assim também. Achava que amor significava sofrer em silêncio. Que proteger era sinônimo de se afastar. E sabe o que sobrou para mim? Saudade. Arrependimento. A dor de nunca ter tido a chance de segurar a mão dele, quando ele mais precisou…
Uma lágrima quente escorreu pelo seu rosto e manchou a camisa de Colin.
— Agora o senhor faz a mesma coisa… Fala da própria morte como se fosse um alívio. Como se ninguém fosse sentir falta. Mas e eu? E todos que escolhemos ficar ao seu lado? O senhor acha mesmo que somos apenas… espectadores? Que não temos o direito de lutar por você também?
Ela soltou-o lentamente, mas não recuou. Em vez disso, encarou seu perfil fechado com uma expressão que misturava dor e determinação.
— Eu não dei minha vida ao senhor por dever. Dei porque quis. Porque acreditei. Porque… porque amo cada pedaço quebrado dessa sua alma teimosa. — Seus dedos tremeram ao se aproximarem do rosto dele, mas não tocaram. — Não é fraqueza precisar de alguém…
O silêncio que se seguiu foi tão denso que doía.
Morwyna engoliu as lágrimas e deu um passo atrás, mas seu olhar nunca se desviou.
— Eu estou aqui. Sempre estarei. Não porque você me ordenou, mas porque escolhi ficar. Porque… mesmo que o senhor nunca admita, eu sei que você precisa disso. Precisa de mim. E está tudo bem…
Colin olhou para ela e, por trás daqueles olhos impenetráveis, uma tempestade de pensamentos se agitava.
“Eu preciso dela… mas não do jeito que ela quer.”
Ela era uma boa mulher. Gentil, doce e ingênua demais. E isso quase o fazia hesitar.
“Uma mulher como ela merecia alguém melhor… alguém que não soubesse exatamente como usar esse amor como arma.”
Mas ele não tinha escolha. Para vencer, ele precisaria de cada pedaço de lealdade que ela lhe oferecesse—mesmo que isso significasse deixá-la acreditar em algo que ele nunca poderia ser.
Seu dedão áspero encontrou a pele macia de Morwyna, limpando a lágrima que escorrera com um gesto quase involuntário.
— Você fala demais — ele murmurou, a voz mais suave do que deveria ser.
E então, ela viu um sorriso. Pequeno, quase imperceptível, mas suficiente para fazer seu coração dar um salto.
— Obrigado.
Era tudo o que ele dizia. Mas era mais do que ele já havia dado a qualquer um em muito, muito tempo.
Morwyna sentiu o toque dele como um choque—quente e frio ao mesmo tempo. A mão dele, tão acostumada a matar, agora traçava um caminho delicado em seu rosto, como se ela fosse algo frágil, algo precioso.
E isso a destruía.
Porque ela sabia, no fundo, ela sabia, que aquele gesto não era um recuo. Um momento de fraqueza calculada. Era uma armadilha.
Mas quando ele puxou o rosto dela para perto, até que sua respiração quente roçasse seus lábios, ela não se importou.
— Precisamos ir — ele disse, afastando uma mecha de cabelo dela. — Esse lugar está ficando… claustrofóbico.
Ela engoliu seco.
Claustrofóbico.
Como se fosse o corredor, e não o coração dela, que estivesse apertando demais.
Mas quando ele se afastou, levando consigo aquele toque gentil, Morwyna o seguiu. Como sempre faria.
Morwyna sempre foi reclusa. Seu avô, embora a tivesse criado, nunca lhe dera carinho verdadeiro, apenas dever, disciplina, silêncios longos e olhares severos.
Seu irmão estava sempre ocupado, mergulhado nos preparativos para suceder seu pai. E seu pai… seu pai a tratava como um erro, um acidente indesejado, alguém que nunca merecera dignidade, muito menos escolha.
Viver entre os Elfos Negros era como respirar sob uma laje de pedra: sufocante, frio, sem luz.
Até Colin aparecer.
Desde que o conheceu, tudo mudou.
Medo que a fazia tremer, apreensão que a mantinha alerta, felicidade que queimava como licor proibido.
Amor.
Aquele sentimento estranho e doloroso que a fez perceber que era mais forte do que jamais imaginara.
Ele a arrastara para fora da escuridão sem nem mesmo perceber. E agora, deixá-lo ir seria como voltar àquela existência vazia, como se toda a vida que descobrira nele fosse apagada de uma vez.
Não.
Ela o seguiria.
Não por dever, não por lealdade cega.
Mas, porque ele, em toda sua brutalidade, em toda sua escuridão, era o único que lhe dera algo real.
E mesmo, no fundo, de seu coração, sabendo que ele a usaria, que seu amor era somente uma ferramenta em suas mãos ensanguentadas, ela se permitiria queimar.
Porque naquele calor, naquela chama que podia tanto destruir quanto iluminar, ela finalmente se sentira viva.
E isso valia qualquer dor.
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