Índice de Capítulo

    O corredor cavernoso engolia a luz, transformando cada passo em um mergulho mais profundo na escuridão.

    Morwyna caminhava um passo atrás, seus olhos fixos nas costas largas de Colin., as mãos apertando as alças da mochila de couro sobre seu ombro.

    Pararam para descansar, compartilhando os frutos secos e o pão duro que os elfos lhes haviam dado. A escuridão que nunca cessava da caverna distorcia sua noção de tempo, fazendo com que horas parecessem minutos, e minutos, uma eternidade.

    Enquanto Colin mastigava em silêncio, Morwyna deixou-se afundar em seus pensamentos. Ela sentia algo estranho no peito, uma dor que não era sua, mas que queimava como se fosse.

    Com um gesto quase inconsciente, levou a mão ao próprio coração, os dedos pressionando levemente contra o tecido da roupa. Fechou os olhos, e por um instante, jurou sentir o eco da angústia dele pulsando através do pacto que os unia.

    “Senhor Colin… Eu não deveria me preocupar tanto assim com ele, mas… O que será que está pensando?”

    Morwyna esfregava os braços, tentando afastar o frio que penetrava até seus ossos, mesmo sob as camadas de lã e couro.

    A caverna era um ventre gelado, e cada sopro de ar formava pequenas nuvens brancas diante de seu rosto.

    Desviando o olhar para as sombras alongadas nas paredes, ela quebrou o silêncio com uma pergunta que lhe pesava na mente:

    — Senhor… O que faremos quando sairmos daqui?

    — Voltaremos ao plano original. — respondeu sem cerimônia. — Conquistar o continente. Unificá-lo.

    Ela soltou um suspiro quase imperceptível, os dedos apertando seus próprios braços com mais força.

    — Por que homens como você sempre querem tudo? — murmurou, mais para si mesma do que para ele. — Meu pai é assim. Ultan era assim… Até o próprio Deus do Abismo… deve ter pensado algo parecido, não? 

    Seus olhos refletiam a névoa fria do lugar. 

    — O que se passa na cabeça de vocês para precisarem controlar cada pedaço do mundo?

    Colin parou. Lentamente, virou-se para ela.

    — Não é sobre controle, Morwyna. É sobre ordem. — Seus olhos, normalmente tão impenetráveis, brilhavam com uma convicção quase religiosa. — O seu pai? Ultan? O Deus do Abismo? Eles querem poder pelo poder. Mas eu… eu quero que nenhuma criança precise crescer escondendo-se em celeiros. Que nenhum homem tenha que escolher entre matar ou morrer por um pedaço de pão. Que nenhuma mulher precise vender o corpo para proteger o irmão mais novo.

    Ele suspirou.

    — Eu… não quero controlar o mundo. Quero consertá-lo.

    Morwyna estudou o rosto de Colin, buscando qualquer sinal que confirmasse suas suspeitas.

    — Você… está mentindo para mim? — A pergunta saiu mais crua do que ela pretendia, mas não havia como voltar.

    Colin arqueou uma sobrancelha, surpreso. — Por que você acha isso?

    Ela mordeu o lábio, hesitante e desviou o olhar. 

    — Porque… homens como você sempre mentem, era o que as mulheres do mosteiro diziam… quer dizer, o poder corrompe, né? É por isso que você, meu pai e os outros ficam tão… gananciosos…

    As palavras morreram em sua garganta quando seus olhos se encontraram.

    — Eu não mentiria para você — ele disse, a voz mais suave do que ela jamais ouvira. — Nunca.

    Morwyna sentiu algo dentro dela se desfazer. Talvez fosse o medo. Talvez fosse a desconfiança. Ou talvez fosse apenas o cansaço de lutar contra uma verdade que ela já conhecia, mas não queria admitir.

    — Está bem… — sussurrou, desviando o olhar para as sombras. — Acredito no senhor.

    Colin observou-a por um instante, como se soubesse exatamente o que se passava em sua mente.

    O silêncio entre eles pesava, até que Colin deu um suspiro quase inaudível e virou o rosto.

    — Tô sentindo a Mana por perto… anda logo — ele murmurou, acelerando o passo.

    Morwyna estava prestes a tocar nas mãos dele, mas ele se afastou antes.

    — Chegamos! — anunciou Colin de repente.

    E então… 

    — Uau…

    Gheskou se abriu diante deles. O teto da caverna era um céu falso de cristais brilhantes, jogando uma luz azulada sobre casas de pedra esculpidas na rocha. Fumaça subia das chaminés das forjas, e o som de marteladas ritmadas era incessante.

    — Nossa… — Morwyna mal conseguia fechar a boca.

    Colin nem parou para admirar a vista. — Samantha e os outros tão lá embaixo. Vamos!

    Ele já estava prestes a pular do penhasco quando ela agarrou seu braço.

    — Colin, é MUITO alto! — A voz dela saiu um pouco mais aguda do que gostaria. — E–eu não consigo pular isso!

    Ele nem discutiu. Só a pegou no colo como se fosse um saco de batatas. Morwyna sentiu o calor do corpo dele, a firmeza dos braços… e puf!

    O mundo virou um borrão.

    O baque da aterrissagem fez o chão tremer, mas Colin amorteceu o impacto como se nada fosse. Quando ele a soltou, suas pernas estavam moles como geleia.

    — Valeu… — Ela murmurou, corando.

    Ele só acenou com a cabeça e já estava marchando rumo à cidade, deixando-a para trás.

    — M-me espera!

    Gheskou era um caos organizado.

    Anões suados batendo no metal, orcs negociando armas, o cheiro de carne assada e ferro quente invadindo os narizes. Lojas vendiam de tudo, de poções suspeitas a armaduras que brilhavam sozinhas.

    Morwyna teve que correr para acompanhar o passo dele.

    — Como a gente vai achar a Samantha nesse labirinto todo? — Ela perguntou, esquivando de um carrinho de minério que quase passou por cima do seu pé.

    Colin nem olhou para trás.

    — Tenta sentir a mana dela, ainda se lembra do formato, né?

    — Si-sim!

    Os olhos dela continuavam absorvendo informações novas.

    “Eu não fazia ideia de que lugares assim podiam existir. Já li sobre isso, mas… ver com os próprios olhos é completamente diferente. O mundo fora dos muros do palácio é tão… vivo… é diferente do mundo lá em cima. O caos aqui… é como se fosse organizado.”

    Fiiiu!

    Um homem encapuzado assobiou baixo, fazendo um gesto brusco para que Colin o seguisse. Desconfiado, o forasteiro adentrou um beco estreito, onde a lama grudava nas botas.

    — Colin, certo? — o encapuzado perguntou, a voz rouca saindo sob o tecido que cobria seu rosto.

    — Como você…

    O homem puxou um retrato desenhado à mão, amassado e manchado de suor.

    — Alguns batedores receberam isso. Se vissem um homem grande e de pele escura, era pra trazer direto para a Taverna do Bardo Baderneiro. — Ele deu meia-volta, esgueirando-se por entre sombras. — Foi uma tal de Samantha quem pediu. Mulher nervosa. Vamos, antes que alguém menos simpático te encontre.

    Ele e Morwyna cruzaram olhares.

    — Certo… mostre o caminho.


    Os becos se estreitavam à medida que avançavam, paredes de pedra úmida marcadas por pichações e símbolos de gangues. Barracas improvisadas exalavam o odor acre de poções ilícitas, misturado ao cheiro doce e podre de carne estragada.

    Mercadores sussurravam ofertas de artefatos amaldiçoados, enquanto mulheres e homens de todas as raças; anãs curvilíneas, orcs de presas afiadas; se exibiam sem vergonha, dedos enganchando-se nas roupas de passantes desavisados.

    — Chegamos! — anunciou o guia, batendo três vezes na porta de madeira reforçada com ferro. Uma portinhola se abriu, um par de olhos azuis examinando-os. — Trouxe o Colin!

    Morwyna agarrou a mão de Colin com força, seus dedos finos se entrelaçando aos dele num gesto quase desesperado. Ele nem sequer olhou para o contato, como se não sentisse, não se importasse.

    Os olhos dele, porém, percorreram o ambiente com a precisão de um predador.

    Telhados baixos, sombras movediças… e lá estavam eles.

    Anões agachados como abutres, as bestas já tensionadas, cada seta um ponto de luz morta apontada direto para seus corações.

    A mão de Morwyna apertou mais, mas a dele permaneceu imóvel, firme como aço, fria como pedra.

    “Merda.”

    Tentou usar Análise, mas nada aconteceu.

    “Ante-magia… Como não percebi?”

    A porta rangeu ao se abrir, revelando um anão de armadura cravejada de runas, empunhando um martelo de ferro quase do mesmo tamanho dele.

    — Colin de Runyra — o anão rosnou. — Você está preso por ordem de Sua Majestade. Se resistir, a coisa vai ficar feia.

    Colin ergueu o queixo, a postura imponente mesmo cercado.

    — E quem é seu rei? — a pergunta veio carregada de autoridade. — Estão dispostos a começar uma guerra com a superfície?

    O anão riu.

    — Acha que a superfície nos assusta? — Mais figuras surgiram das sombras, armas em punho. — Ande, “rei”. Não tenho o dia todo, e você vem conosco, mocinha. Temos outra utilidade para você. 

    — Se-senhor Colin!

    “Tch… sem magia, Morwyna é inútil, mas eu não!”

    Os olhos de Colin percorreram o grupo. Cinco bestas nos telhados. Doze anões no chão, posturas rígidas, olhos frios.

    “Eles sabem quem eu sou… e mesmo assim estão confiantes.”

    — Tem mesmo coragem de desafiar um Monarca da Pujança?

    O anão líder riu. — Para de blefar, grandão. Você tá fraco. A gente sabe.

    “Então descobriram…” Os músculos da mandíbula de Colin tensionaram. “Ou Rian os traiu, ou torturaram os outros até cantarem.”

    — Cadê meus companheiros?

    O contrabandista que os levou até a armadilha deu um passo à frente, impaciente.

    — Anda logo, me paga.

    Um dos anões saiu de trás das sombras, arrastando um saco de couro cheio de moedas que tilintavam a cada passo.

    — Aí tá seu dinheiro, verme. Agora, onde a gente tava… Ah, sim. Seus amigos… — O anão de armadura sorriu, os dentes amarelados à mostra. — Se não quiser acabar igual a—

    CRUNCH!

    O gancho de Colin foi tão rápido que o ar estalou. 

    O punho dele atravessou o queixo do anão, esmagando ossos, carne e metal do elmo antes que o corpo tivesse tempo de cair. A cabeça decapitada voou, girando no ar como um pião macabro, até se cravar entre os cristais do teto da caverna, centenas de metros acima.

    Por um segundo, tudo parou.

    Os olhos dos anões arregalaram, fixos no pescoço decepado que jorrava sangue em jorros quentes, tingindo o chão de pedra de vermelho-escuro.

    — ATIRA! ATIRA!

    Bestas foram disparadas dos telhados, Colin segurou a mão de Morwyna e a colocou atrás dele. Sua mão se moveu num borrão, agarrando quatro setas no ar antes que pudessem perfurá-lo.

    — Última chance. — Seus olhos eram facas. — Onde. Estão. Meus. Companheiros?

    Ninguém respondeu. Em vez disso, os anões debandaram como ratos, gritando:

    — AVISEM O REI! O DESGRAÇADO DA SUPERFÍCIE MATOU O COMANDANTE! É GUERRA! TOQUEM OS SINOS!

    Colin nem olhou para os que fugiam. Seu foco era o traidor, o contrabandista que os levara até ali, agora correndo pelo beco adiante, as botas escorregando na lama.

    — Morwyna, vamos! 

    Ele a jogou sobre o ombro como se não pesasse nada, depois arrancou o martelo de guerra do anão morto do chão. Os músculos das costas tensionaram quando ele se agachou…

    … e então explodiu para cima, pulando até o telhado mais alto com um único salto.

    De lá, a vista era clara.

    No extremo oposto da cidade, a quase cinco quilômetros de distância, um castelo de pedra negra emergia da própria caverna, torres pontiagudas como presas contra o céu de cristais.

    — É ali.

    — O-O que o senhor vai—

    — Criar uma distração.

    WHOOSH!

    As veias de seus braços saltaram como cordas tencionadas de um arco quando ele girou o martelo e… ARREMESSOU.

    A arma cruzou a cidade inteira como um meteoro, esmagando paredes, barracas e telhados no caminho, até explodir contra a muralha do castelo.

    BOOOM!

    Pedras voaram, e o impacto fez o chão tremer como um terremoto.

    Antes que a poeira baixasse, Colin já estava no chão de novo, correndo.

    O contrabandista mal teve tempo de gritar quando mãos gigantescas fecharam em seus cabelos, arrancando-o do chão como um brinquedo.

    — M-merda! — O rapaz se engasgou, suor escorrendo pela testa.

    — Nos tira daqui! — A voz de Colin era uma lâmina gelada pressionada contra sua jugular. — Ou você morre!

    — C-certo! Aquela casa velha à esquerda! É um esconderijo seguro!

    — Se for armadilha, seu pescoço vira pó.

    — J-juro pela minha mãe!

    Sem hesitar, Colin arrebentou a porta com um chute que fez a estrutura tremer. Dentro, um grupo de pessoas escondidas ergueu foices, facões e até um machado enferrujado em pânico, até reconhecerem o traidor.

    — Sou eu, porra! — o rapaz gritou, e as armas baixaram imediatamente.

    Em segundos, moveram-se como um só: cortinas foram puxadas, trancas reforçadas, e um homem corpulento arrastou um baú sobre a porta arrombada.

    Do lado de fora, o Badum-Badum do sino de alarme ecoava por toda Gheskou, seguido pelo tropel de botas de ferro e vozes roucas:

    — Revistem cada beco!

    — Ele não pode ter ido longe!

    Na casa, um homem de barba grisalha fez um gesto brusco.

    — Silêncio.

    Abriu um alçapão escondido sob uma esteira surrada. Um a um, desapareceram na escuridão abaixo. O último a descer puxou o tapete de volta, apagando qualquer rastro.


    O traidor encarou Colin, seus olhos oscilando entre admiração e terror.

    — Você é maluco de desafiar o Rei de Gheskou assim…

    Colin avançou um passo, a sombra dele engolindo o rapaz contra a parede de terra.

    — Traição tem preço.

    — Não tive escolha! — ele sussurrou, a voz quebrada. — Há anos esse rei suga nosso sangue com impostos. Quem não paga… some. Dizem que viram escravos nas minas de cristal anti-magia.

    Os olhos de Colin estreitaram.

    — Como soube de mim?

    — Foi a Samantha… Ela espalhou seu nome entre os contrabandistas. Mas o próprio rei botou um preço na sua cabeça. — Ele engoliu seco. — Eu… preciso do dinheiro. Tenho dois irmãos pequenos. Se eu não pagar o tributo este mês…

    Morwyna apertou o braço de Colin, seus dedos finos tremendo.

    — Colin, tem muitas manas lá em cima! Não está perto, mas… sinto três manas muito fortes, mais poderosas do que as daqueles demônios que vieram atrás de nós.

    “A percepção dela aumentou? Essas manas devem ser os príncipes do abismo.”

    Eles continuaram descendo o esconderijo.

    — Você sabe onde tá a Samantha? Ou o tal anão?

    O rapaz encolheu os ombros, os olhos encarando o chão úmido e mal iluminado.

    — Com o rei no pé deles? Duvido que apareçam tão cedo.

    Colin alisou o queixo, a barba por fazer arranhando seus dedos.

    — Tá certo. Vamos ficar um tempo na sombra. Não quero gente inocente no meio dessa merda.

    O rapaz hesitou, depois inclinou-se para frente, baixando a voz.

    — Tem túneis… passagens secretas que a gente usa pra fugir dos soldados. Conheço um lugar mais seguro.

    Colin ergueu uma sobrancelha.

    — Por que diabos você confiaria isso a um cara que quase esmagou sua cabeça?

    — Você é o rei da superfície, né? — O rapaz encarou-o, um fio de esperança na voz. — Se eu te ajudar… você ajuda a gente?

    Um sorriso quase imperceptível curvou os lábios de Colin.

    — Tá combinado.


    A parede leste do palácio não existia mais.

    No seu lugar, uma cratera fumegante, pedaços de granito negro espalhados como ossos quebrados. Poeira grossa rodopiava no ar, misturando-se ao cheiro de carne queimada e ferro.

    No meio do caos, a princesa do abismo Rogdruth observava, os lábios curvados num sorriso de predadora satisfeita.

    Seu pé descalço esmagou um fragmento de osso ao avançar. O martelo que Colin arremessou ainda fumegava no epicentro da destruição, cercado por destroços e… pedaços do rei anão de Gheskou.

    Tripas pintavam o chão de vermelho-escuro, pedaços de armadura retorcida cravados nas paredes.

    Um anão, jovem, com a armadura duas vezes maior que ele, aproximou-se, engolindo seco.

    — M-minha senhora… o que a gente faz?

    Rogdruth não olhou para ele.

    — Ouvi dizer, — ela começou, a voz melíflua como veneno, — que o famoso “Campeão de Kag’thuzir” tem uma reputação… sangrenta. — Um riso baixo. — Mas ele ainda tem fraquezas. Esposa. Filhos. Até compaixão por ratos como vocês.

    Ela virou-se, a lâmina negra dela raspando contra o chão.

    — Parabéns! — anunciou, apontando para o anão trêmulo. — Você é o rei agora. Sua primeira ordem? Expurgo. Homens, velhos, crianças… cortem tudo que respirar.

    O anão empalideceu.

    — M-mas senhora, isso é—

    CRUNCH!

    A cabeça dele rolou antes que o corpo entendesse que estava morto. Rogdruth chutou o crânio para longe, virando-se para os soldados paralisados.

    — Alguém mais quer discutir ordens?

    O silêncio foi sua resposta.

    — Ótimo! — Ela apontou para outro anão. — Parabéns, o novo rei é você. Sabe o que fazer, certo?

    O anão engoliu em seco e assentiu rapidamente, retirando-se para os fundos sem olhar para trás.

    Rogdruth lambeu os beiços, seu rosto corando de excitação brutal.

    — Finalmente — murmurou para si. — Mostre-me do que você é feito, campeão de Kag’thuzir. Quero saber porque senhor Drez’gan tem tanto interesse em um mortal como você.

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