Capítulo 04: Tempestade
Os pés magros de Colin estavam pendentes do lado de fora de uma gaiola atrelada a uma árvore de galhos retorcidos.
Corpos estavam queimando em fogueiras enquanto, nas gaiolas ao lado, haviam apenas alguns cadáveres, onde mosquitos e corvos se divertiam em um farto banquete.
Acorrentado firmemente no tronco da árvore adusta, estava outro garoto que aparentava ter a mesma idade que Colin. Cabelos louros longos e um olhar tão morto quanto o de um defunto definiam bem aquele garoto. Porém, o azar dele, era que o mesmo permanecia bem vivo, mesmo com seu corpo repleto de ferimentos expostos e o forte mau cheiro que vinha dele.
Apesar de ser novo naquele lugar, Colin aprendeu algumas coisas do mundo. Ouviu conversas de guardas dizendo que eles estavam em guerra há anos, talvez séculos, e essa guerra foi iniciada pelos Elfos Negros quando abaixaram algo que se chamava véu.
A barriga de Colin doía brutalmente, uma dor que ele mal conseguia aguentar.
Sua situação era tão caótica, que se os soldados urinassem nele, ele beberia de bom grado. Se nele atirassem esterco, Colin devoraria sem pensar duas vezes, mas para felicidade de alguns e a tristeza de outros, o sadismo dos guardas tendia a algo mais desumano.
Logo à frente, uma garota, bem mais nova do que Colin, chorava sobre o corpo de uma mulher. Passou pela mente de Colin que poderia ser sua mãe ou um parente próximo.
Os gritos dela faziam sua cabeça doer.
“Essa idiota não percebeu que isso é inútil?”
Eles estavam sozinhos daquele ponto em diante, nem Deus, nem ninguém viria para ajudá-los. Toda oração feita em silêncio não era mais que um ato desesperado de clamar por um milagre que nunca aconteceria.
Depois de alguns minutos lutando, ela desistiu e permaneceu ali, quieta com um olhar morto, completamente quebrada.
Os soldados devoraram por completo uma vaca gorda bem na frente de Colin, deixando somente os ossos.
O garoto acorrentado na árvore era de fato um rapaz belo. Seus cabelos longos e dourados lembravam uma garota e suas expressões delicadas lembravam ainda mais as damas da realeza.
Isso era mais que motivo o suficiente para que os soldados usassem o garoto como quisessem. Não importava quantas vezes ele pedisse por misericórdia ou desejasse a morte.
Aquele inferno não iria parar tão cedo.
O tempo passou e aquela manhã sangrenta se foi.
Os soldados se preparavam para deixar o vilarejo.
Alguns já haviam partido junto ao homem portador da espada damasco, outros, bêbados demais para continuar, seguiram saqueando e festejando por aí despreocupados.
Com o céu enegrecendo devagar, só podia significar que uma bela tempestade estava a caminho.
Para o azar de Colin, os soldados não deixavam reféns descartáveis como ele com vida.
Ele não queria morrer, não de novo.
Mas certamente seria melhor morrer do que terminar quebrado como aqueles dois garotos. Porém, mesmo tendo ciência que poderia conhecer coisas piores do que a morte, Colin não desejava que fosse ali o seu fim, preso em uma jaula com sonhos, desejos e vontades.
Por algum motivo que o próprio Colin desconhecia, ele não estava mais com raiva. Seu raciocínio estava lento para pensar em vingança, e sua mente vagava constantemente por pensamentos aleatórios e confusos.
Seu tempo estava chegando ao fim e ele mal tinha forças para lutar. Porém, pareceu que pela primeira vez em muito tempo, a sorte havia ficado ao seu lado.
Uma tempestade brutal estava se iniciando.
Trovoadas e rajadas de vento concentradas faziam parecer que aquele era o fim do mundo. Não demorou muito até que um raio atingisse uma casa próxima, iniciando um incêndio.
Desorientados, os soldados que permaneceram no vilarejo montaram em seus cavalos e partiram o mais rápido possível, deixando algumas pessoas vivas e felizmente, Colin foi uma delas.
A gaiola em que ele estava balançava de um lado para o outro enquanto era brutalmente açoitada pelo vento misturado a areia.
Não demorou muito para que o galho de sustentação se partisse.
O cadeado, tão velho quanto uma árvore centenária, se quebrou com o impacto e então Colin se arrastou sorrateiramente para fora.
Encarou os cadáveres enforcados que aos poucos desabavam na relva um por um.
“Preciso fugir daqui o mais rápido possível!”
Seus cabelos negros e sua roupa em frangalhos não paravam de sacudir. A ventania fazia até mesmo uma simples caminhada parecer algo extremamente difícil de ser executado.
Ele seguiu com os braços erguidos ante ao rosto, enquanto caminhava em passos firmes para o celeiro logo à frente, que sacudia mais que um cão assustado.
Ao adentrar, apoiou às mãos no joelho e arfou, enquanto observava lá fora.
Galhos, pedras e folhas não paravam de voejar. Tudo se juntava a uma sinfonia perfeita de destruição, algo extremamente belo e amedrontador.
Pela primeira vez, o medo infantil de tempestades não o fez tremer, mas o deixou aliviado.
Todo aquele barulho que vinha do lado de fora era ensurdecedor, mas ele escutou alguns gritos ao fundo no celeiro. Avistou uma picareta em meio ao feno e a pegou. Ao fundo havia uma pequena cerca que protegia os bezerros.
— Fique quieta, sua filha da puta!
Sorrateiramente, Colin se aproximou e viu aquela mesma garota que antes chorava sobre o corpo da mãe, agora sofrendo uma tentativa de estupro. Seu vestido estava rasgado e sua boca sangrava. O soldado tentava segurá-la pelos braços, enquanto lambia o seu rosto.
A garota conseguiu escapar de uma das mãos do soldado e pegou uma ferradura que estava bem ao seu lado, golpeando o homem na cabeça, mas não foi forte o suficiente.
Bam!
— Sua merdinha, o que pensa que está fazendo, hein?!
Ele cerrou seu punho e golpeou a garota brutalmente no rosto duas vezes.
Bam! Bam!
Foi como ser atingida por um tronco de árvore. Aqueles golpes foram o suficiente para deixá-la imóvel.
Ela estava chorando baixinho, então, desistiu de lutar e apenas fechou os olhos enquanto franzia os lábios.
— Isso, quietinha! — O soldado passou a língua sobre os lábios franzidos da garota. — Seja uma boa garota e eu te deixarei viva depois que eu terminar.
Com aquelas mãos grossas, o soldado terminou de rasgar o resto do vestido daquela garota e começou a tirar as calças quando ouviu um barulho atrás dele.
No momento que ele se virou, a picareta varou seu pescoço.
Crash!
Caindo para o lado, o soldado agonizava de dor tentando parar o sangramento. Colin tirou a picareta do pescoço daquele homem abruptamente.
Sangue esguichava como uma torneira aberta.
— Então é você! — disse Colin reconhecendo um de seus captores. — Não parece tão corajoso agora, né?
Ainda com a mão no pescoço, aquele homem se virou e tentou engatinhar para longe, mas Colin pisou em suas costas.
— Ainda está vivo mesmo depois de ter o pescoço atravessado, hehe, que barata teimosa você é.
Colin ergueu a picareta no alto e cravou na parte de trás do joelho do soldado, quase o arrancando.
O soldado não gritou, engasgando com o sangue.
Alisando o cabelo para trás, Colin inspirou fundo, sentindo uma volúpia percorrer cada canto do seu corpo.
Abriu um sorriso de orelha a orelha e o golpeou nas costas com a picareta repetidas vezes.
Crash! Crash! Crash!
Colin não conseguia controlar a fúria que tomava conta de seu corpo. Mesmo depois de perceber que o soldado já estava morto, ele continuou desferindo golpes com sua picareta até que ficou completamente exausto.
O sangue escorria em abundância, tingindo suas mãos e o chão de vermelho.
Ao se dar conta do que havia feito, Colin sentiu um vazio dentro de si.
Todo o prazer momentâneo que havia sentido com a violência desapareceu rapidamente, dando lugar a um olhar frio e impiedoso.
Enquanto a garota assustada o encarava, Colin apoiou a picareta em seu ombro e deu alguns passos em sua direção.
Ela se afastou apavorada, mantendo os olhos fixos em seu salvador que, para ela, parecia uma besta selvagem.
Colin deu as costas para a garota e seguiu até uma pilha de feno do lado direito do celeiro. Se jogou ali, abraçando sua picareta suja de sangue e fechando os olhos.
Aquela havia sido a primeira vez que ele matara alguém e, apesar de esperar sentir culpa ou remorso, nada disso veio.
Ele não conseguia sentir um pingo sequer de arrependimento por suas ações. Apenas um vazio, uma sensação de que aquela era a única forma de sobreviver em um mundo tão impiedoso.
Colin se encontrava exausto, com o corpo dolorido e a mente em completo caos.
A tempestade que se aproximava parecia intensificar a cada momento, mas ele se recusava a se mover.
Era como se a fúria da natureza fosse apenas um reflexo da sua própria raiva, e ele precisava deixá-la sair de alguma forma.
O celeiro onde ele se abrigou não parecia ser o lugar mais seguro do mundo, mas era melhor do que ficar exposto à tempestade.
A chuva forte batia no telhado e as rajadas de vento faziam a construção tremer. Ele suspirou, decidindo que iria esperar a tempestade passar antes de seguir em frente.
Era como se o mundo estivesse desabando ao seu redor, mas Colin permanecia imóvel, como se estivesse em um estado de transe. Ele sabia que precisava se acalmar, mas não conseguia controlar a turbulência dentro dele.
A tempestade seria longa e intensa, mas ele aguardaria até o fim, sem pensar no que viria depois.

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