Capítulo 06: O Nobre
O crocitar dos corvos, divertindo-se com os cadáveres dos moradores, fez Colin despertar de uma bela noite de sono.
Ele não dormia tão bem assim há dias.
Abriu lentamente os olhos e se virou para o lado. Aquela mesma garota ainda estava lá, deitada do outro lado da fogueira, dormindo feito um bebê.
Colin sentou-se e espreguiçou, estalando os ombros e o braço.
Após isso, bocejou enquanto coçava o olho.
Assustando-se, a garota despertou com bocejo grosseiro de Colin. Ela o encarou e olhou ao redor. Após perceber estar tudo bem, ela se acalmou.
Colin olhou mais uma vez para ela e franziu o sobrolho.
“Eu devia só deixar para lá, mas a pirralha precisa de ajuda. Certo, só vou ajudá-la nisso e depois cada um segue seu caminho”.
Erguendo-se, ele espantou os corvos que devoravam o corpo de um garoto do mesmo tamanho que o dela.
— Xô! Xô! Vão embora!
Virando o garoto sem nenhuma gentileza, Colin, apressado, retirou as roupas do cadáver às pressas e as jogou para a garota, que o encarou sem entender nada.
A última semana de Colin havia endurecido seu coração. Normalmente ele teria pena do garoto morto, mas cadáveres não precisavam mais de roupas.
Ele entendia de guerras e estratégias, vivenciou isso muito bem em seu game preferido lutando contra tiranias e vencendo inimigos inimagináveis. Mas sabia que aquilo diferia dos games, ali não teria respawn, muito menos um botão de continue.
— Vista isso se quiser sobreviver — ela encarou a roupa e em seguida olhou confusa o seu salvador. — Guerras não costumam ser gentis com crianças e muito menos gentil com garotas como você. Se você se parecer com um garoto, evitará muitos problemas. Isso até encontrar alguém em que possa confiar.
Ela apanhou as roupas no chão e tornou a encará-lo novamente.
Colin se virou de costas e cruzou os braços, esperando que ela se trocasse.
Ouviu o barulho de pano rasgando, depois ouviu o barulho de tecido raspando na pele até parar de vez.
Ele se virou, vendo a garota vestida como um garoto. Colin colocou a mão na cintura e puxou sua adaga. Arregalando os olhos, a garota deu alguns passos para trás.
Girando a adaga pelo cabo, Colin atirou a lâmina próximo aos pés dela. Com o dedo indicador, ele apontou para o cabelo.
— Precisa cortar o cabelo também, eles estão longos demais. Mas não corte tão curto a ponto de deixar suas orelhas e chifres à mostra.
Ela franziu os lábios e fez que sim com a cabeça.
A garota fez um rabo de cavalo e com a adaga afiada o cortou, jogando o que um dia foi seu cabelo na relva.
Visitando um fragmento de suas memórias, Colin recordou-se dos cabelos da mãe, que eram enormes, assim como os dessa garota antes de sua doença se agravar.
Erguendo a mão, Colin fez um gesto pedindo a adaga de volta.
A garota caminhou cautelosamente até ele.
No momento que Colin ergueu a mão para apanhar a adaga, ela fechou os olhos e virou o rosto.
Sem entender nada, Colin pegou a adaga gentilmente e ela abriu os olhos o encarando, dando dois passos para trás.
O lugar estava destruído, completamente devastado.
As pessoas não passavam de cadáveres espalhados pelo vilarejo e Colin os via somente assim, como cadáveres.
Ele encarou novamente a garota e coçou a nuca.
“Mesmo sendo cadáveres, acredito que até mesmo eles merecem ser enterrados com dignidade… é o que eu gostaria que fizessem comigo. Que seja! Essa será a primeira e última vez que ajudo alguém que já está morto”.
Levando quase toda manhã, ele fez dezenas de covas rasas com os equipamentos de cultivo que encontrou ao redor do vilarejo. Então, começou a arrastar os corpos um por um até uma montanha de cadáveres.
Entre os corpos, ele não viu ninguém com chifres como os da garota que o observava.
Agachando-se perto de um corpo próximo à árvore de enforcados, Colin o segurou pela gola da camisa ensanguentada e arrastou o primeiro cadáver até a cova.
Era um velho desdentado onde os corvos já haviam começado a devorar sua carne, mas ainda estava parcialmente inteiro.
O segundo cadáver que carregou foi de uma garota, mais nova do que aquela que encarava Colin em um canto.
A menina continuava ali parada, observando-o realizar todo trabalho.
— Não vai me ajudar? — perguntou Colin jogando outro cadáver na cova. — Você conhecia esse pessoal, né?
Ela continuou sem dizer uma única palavra.
— Olha, garota, sei que está traumatizada pelo que vivenciou aqui, mas estou exausto. Não sei se consigo enterrar todos antes do entardecer. Quer que eu os deixe aqui? Sendo devorados pelos corvos, ratos e qualquer tipo de verme? — Colin virou a cabeça encarando a mulher que julgou ser a mãe da garota ao lado dela. — Quer deixá-la aqui como comida para os ratos?
Virando a cabeça, ela encarou o rosto sereno daquela mulher sem vida. Seus lábios começaram a tremer e lágrimas brotaram dos cantos de seus olhos.
Mordendo os lábios, ela conseguiu segurar o choro e logo depois se ergueu.
— E então, vai me ajudar?
Após assentir com a cabeça, a menina esfregou os olhos com a manga da camisa.
— Ótimo, então vem logo, temos muito trabalho a fazer.
Apressada, ela correu até ele e o ajudou a carregar outro corpo até uma cova.
A pequena tinha dificuldades, mas mesmo assim continuou dando o máximo de si.
Eles conseguiram enterrar todo vilarejo antes do entardecer, deixando apenas mais um corpo para ser enterrado. Quando apanharam o cadáver da mãe da garota, ela relutou por alguns instantes.
Seu semblante permaneceu abatido e as lágrimas que escorriam sobre sua pele rosada diziam muito sobre o que ela sentia. Mesmo em um mundo como aquele, crianças continuavam sendo apenas crianças.
Colocaram o corpo de sua mãe com cuidado na cova, cruzaram seus braços e ajeitaram seu cabelo.
Colin não teve a chance de enterrar a própria mãe, e aquilo o fez ter lembranças dolorosas. Por algum milagre, ele havia sobrevivido e fora lançado a outro mundo bem pior que o seu de origem.
Talvez aquela fosse uma punição ou um recomeço, mesmo que fosse um purgatório, ele encararia tudo aquilo de frente.
Com uma pá enferrujada, começou a jogar terra em cima do corpo da mulher, enquanto a garota segurava a borda de sua calça e se mantinha firme o máximo que conseguia.
Com os pés, Colin vasculhou algum pedaço de madeira nos destroços e o apanhou. Pegou também um pequeno pedaço de corda e fez uma pequena cruz, cravando naquele túmulo improvisado.
— Quer dizer algo? — perguntou ele enquanto se erguia.
Ela continuou em silêncio.
Pigarreando, Colin levantou a voz, dizendo qualquer coisa que viesse a sua cabeça. Ele nunca foi bom em discursos, mas se esforçou.
— Vocês viveram ao seu modo, espero que não tenham se arrependido disso. Espero que possam descansar em paz e encontrar a tranquilidade que merecem. Que os Deuses os recebam com amor e os guiem para uma nova jornada, onde possam encontrar alegria e prosperidade. Que suas memórias sejam preservadas — ele olhou de canto para a garota. — E suas histórias sejam contadas para inspirar futuras gerações. Descansem em paz…
Respirando fundo, Colin se virou de costas, caminhando para perto de um balde com água onde lavou as mãos sujas de terra.
Lavou também o seu rosto suado.
A garota não conseguiu segurar o choro.
Ela ainda continuava ali, ante aquela cova, completamente arrasada. Ajoelhando-se, ela chorou ainda mais alto, quase berrando.
Mesmo para alguém como Colin, acostumado com a dor causada por uma perda, era doloroso observar aquela cena.
Ele caminhou até a garota ficando ao seu lado, depois, deu uma boa encarada nas dezenas de corpos que havia enterrado.
— Você precisará ser forte agora. Será obrigada a crescer mais rápido que outras crianças… enfim, adeus e boa sorte, você precisará — Colin se virou.
O primeiro passo de Colin era reunir mais informações. Ele não sabia como outras pessoas iriam reagir-lhe. Uma parte de si, estava com medo, a outra estava ansiosa, sedenta por exploração, mesmo que de alguma forma pudesse morrer.
Não demorou até que saísse do vilarejo.
Olhou por cima dos ombros e viu aquela mesma garota o seguir, esforçando-se para acompanhar seu ritmo acelerado.
Carregar todos aqueles corpos não foi nada fácil. Até mesmo Colin estava exausto, mas ele tinha pressa.
Franzindo o cenho, Colin se apressou ainda mais, ele não estava a fim de ser “babá” de ninguém, muito menos de uma garotinha magricela, fraca demais para se proteger sozinha.
Ele não queria cuidar dela porque não tinha um manual de sobrevivência. E ao julgar por sua breve estadia naquele mundo, era perigoso demais ficar perto dele.
Colin deixou a vila para trás, seguindo pela estrada de barro que se estendia à sua frente.
À medida que caminhava, era possível ver a paisagem exuberante ao seu redor: vales verdes e florestas magníficas que pareciam se estender até o horizonte.
A beleza natural era simplesmente espetacular.
Enquanto caminhava, Colin ergueu os olhos para o céu e contemplou as majestosas montanhas que pareciam tocar as nuvens.
Ao longe, muito ao longe, ele pôde vislumbrar um enorme castelo, mas sua mente o alertou: “Deve ser algum reino hostil, melhor não seguir por ali.” Mesmo assim, ele se viu tentado a explorar a região e descobrir mais sobre tudo que o cercava.
Caminhou mais um pouco e ficou irritado de a garota ainda o seguir. Parando de se mover, ele olhou para trás, encarando-a exausta.
A pequena estava ensopada e arfava demasiadamente. Se ela se esforçasse mais um pouco, desmaiaria.
— Por que está me seguindo?
Ela continuou em silêncio, apenas se esforçando para recuperar o fôlego.
Colin se aproximou da garota e a encarou nos olhos. Ela estava assustada com o semblante sisudo de Colin, mas não recuou.
— Você não pode vir comigo, é perigoso. Vá logo encontrar o seu caminho, dê o fora daqui!
Com as costas da mão, ela limpou o suor da testa e continuou em silêncio.
— Merda, garota, é melhor você-
Toc! Toc! Toc!
Escutando o som de trote que vinha ao longe na estrada, Colin se virou para frente e avistou uma carruagem se aproximando.
Em todo seu conhecimento vasto em jogos online, ele sabia que carruagens eram usadas normalmente por nobres ou pessoas importantes.
“Talvez seja um erro ficar na estrada em tempos de guerra.”
Ele se virou para a garota e disse:
— Esteja preparada, se você se sentir ameaçada, é melhor correr, me ouviu? — ela engoliu em seco e fez que sim com a cabeça.
Em suma, ele não deveria se importar com ela, mas de alguma forma se importou.
Calmamente, a carruagem parou próxima a eles.
Suas rodas eram grandes o suficiente para ser do mesmo tamanho ou maior do que uma criança.
Era completamente negra por fora e o vermelho carmesim enfeitava seu interior luxuoso.
Um homem alto segurava as rédeas enquanto um rechonchudo de vestes pomposas fumava um grosso charuto em seu interior.
Ele abriu a porta da carruagem e disse em tom de deboche:
— Olhe, Thomas, vítimas da guerra! — O homem que tomava conta das rédeas os olhou com desprezo.
O rechonchudo procurou algo e ofereceu a Colin uma vasilha com restos.
— Devem estar famintos, podem pegar, é de vocês! Não deve ser muito, mas vocês não devem ter muita escolha, não é? Háháhá!
Esse era o tipo de pessoa que Colin mais odiava.
“É um nobre bem clichê. Arrogante, prepotente e gordo.”
Após apanhar os ossos com um sorriso no rosto, Colin encarou o nobre.
— Obrigado senhor, mas posso lhe fazer um pedido?
— Faça! — disse o nobre com um sorriso.
— O senhor pode nos dar carona até o vilarejo mais próximo?
O homem nas rédeas encarou o nobre de soslaio através de uma pequena janela da diligência. Colin conhecia aquele olhar. Era o olhar de pessoas maliciosas e cruéis, o mesmo olhar dos soldados que o capturaram.
— Claro, meu jovem, mas você terá que pagar logo depois, está bem?
“Pagar?”
— Não tenho dinheiro…
Sorrindo, o nobre disse:
— Bobinho, não quero dinheiro, quero outra coisa.
Sentindo cala frios na espinha, Colin engoliu em seco. Ele sabia muito bem que aquilo era perigoso, mas o nobre pareceu não se incomodar com ele, muito menos o chamou de Elfo Negro.
“Talvez nem todos odeiem os Elfos Negros.”
Se virando, Colin encarou a garota que estava com os lábios franzidos enquanto mantinha os punhos cerrados na altura do pescoço.
Ela estava receosa, provavelmente sabia o que o nobre iria pedir, e depois do que sofreu, era melhor evitar pessoas como nobres ou soldados.
— Pode esperar um pouco, senhor? Preciso falar com meu irmão sobre isso.
— Irmão? — perguntou o nobre erguendo uma das sobrancelhas.
— Sim, bem… pais diferentes…
— Oh sim! Tudo bem com o pequeno?
— Na verdade, não, mas eu já resolvo.
Afastando-se, Colin caminhou para perto da garota. Passou por ela e caminhou um pouco mais longe. Ele não queria que o nobre escutasse sua conversa.
Ela o seguiu como esperado.
Parou frente a ela, mas não tão perto.
— Me escuta com atenção! — disse ele murmurando enquanto encarava timidamente a carruagem do nobre atrás dela. — Já que você está me seguindo por aí, vim dizer que estou indo viajar com o nobre…
Ela cerrou os olhos e sacudiu a cabeça fazendo que não.
— Não? Como assim, não? Ele é nossa única chance de conseguir algum dinheiro, e outra, o cocheiro dele tem braços fortes, provavelmente é um ex-soldado. Estaremos seguros com eles.
“É claro que não estaremos seguros, principalmente com eles.”
Ela deu alguns passos para trás enquanto sacudia a cabeça.
Não havia como fazê-la entender, afinal, ela não tinha culpa. Suspirando enquanto coçava a nuca, Colin encarou o céu anuviado e se concentrou nos corvos que pareciam o acompanhar onde quer que fosse.
Assumiu uma expressão séria e seus olhos pareciam transmitir um claro sinal de perigo. A garota sentiu isso de imediato, mas continuou imóvel.
— Se eles tentarem algo, matarei o nobre e o cocheiro, igual fiz com aquele soldado — seu tom era ameaçador o bastante para causar arrepios a ela. — Preciso que entre no seu papel de irmão mais novo ou a deixarei para trás… E você sabe o que acontecerá caso descubram que você é uma garota, não sabe?
Aquilo foi um golpe baixo, até mesmo para Colin.
Não era uma maneira muito afável de lidar com a situação, mas Colin considerou que a garota precisava contribuir, já que pretendia segui-lo por aí.
Ele precisava conquistar a confiança do nobre.
Matá-lo agora seria loucura, pois, o cocheiro provavelmente guardava uma espada consigo e a adaga de Colin não seria o suficiente.
Dando as costas a ela, Colin retornou para perto da carruagem, e como ele suspeitava, ela ainda estava o seguindo.
Parou ante a porta aberta da carruagem e disse ao nobre:
— Estamos prontos, senhor!
— Ótimo! Vamos, entrem logo!
Galgando os degraus, Colin se sentou ao lado do nobre, a garota parou perto aos degraus e o encarou no fundo dos olhos. Colin fez que sim com a cabeça e ela subiu, ficando ante a ele.
Ela tremia como o celeiro que se esconderam da tempestade.
— Ótimo! — O nobre açoitou a garota com seu olhar de cima a baixo. — Qual seu nome, meu rapaz?
— Ele é uma garota, senhor — pega de surpresa, ela encarou Colin com os olhos arregalados, e de alguma forma, se sentiu traída. — É melhor viajar assim, o senhor entende, não entende?
Sorrindo ele disse:
— Mas é claro, vocês são crianças espertas. O que eu estava fazendo dando meus restos a vocês. Vamos… me entregue.
Colin devolveu-lhe a vasilha com restos e o nobre as jogou pela janela.
Com o estalo dos chicotes, o garanhão tornou a trotar devagar.
Após a revelação, a garota começou a tremer ainda mais intensamente, seu olhar fixo em Colin agora expressando raiva.
Lágrimas ainda corriam pelo seu rosto.
No entanto, tudo fazia parte do plano de Colin, e o elemento surpresa era fundamental.
Ele sabia que precisava manter a garota no papel de vítima, mesmo que ela não soubesse que ele estava jogando com a nobreza.
— Não chore, minha jovem, não farei nada a você!
Enfiando as mãos no bolso, ele ofereceu um lenço a ela.
Uma pequena gaiola em cima de uma estante coberta por um pano fazia barulho como se tivesse algo ali dentro.
Colin apontou o dedo para a gaiola e perguntou:
— O que é isso?
O nobre retirou o pano e revelou uma pequena Fada. Era um pouco menor do que a mão de um homem adulto. Seus cabelos eram esverdeados, suas orelhas pontudas e parecia vestir trapos. Aquele ser miúdo estava com a boca selada.
Os olhos de Colin brilharam por um instante.
“Então este mundo é mesmo mágico.”
— Não é fantástico, crianças? — disse o nobre sorrindo. — Comprei de um idiota de um circo de quinta. Custaram-me algumas moedas, mas valeu a pena. Fadas são extremamente raras neste continente, não é uma gracinha?
O olhar de Colin e o da Fada cruzaram por um instante.
A Fada grunhiu e tornou a balançar a pequena gaiola.
O nobre, sem paciência, cerrou o punho e golpeou a lateral da gaiola três vezes.
Bam! Bam! Bam!
— Fique quieta, aberração! — exclamou ele.
Por enquanto, o plano desesperado de Colin estava correndo bem.“Agora é só aguardar a oportunidade para arrancar a cabeça desse filho da puta”.
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