Capítulo 202 – Segredo de Tithorea
A fraca luz da vela bruxuleava sem parar em um corredor escuro. O som de botas ecoava no corredor, se aproximando de uma espessa porta de madeira. Um homem, segurando uma lamparina, destrancou a porta e desceu as escadas giratórias acompanhado de duas freiras.
Quanto mais desciam, mais frio ficava.
Passaram por um guarda corpulento de batina cochilando em uma cadeira e seguiram mais afundo no corredor. A luz fraca iluminava celas dos dois lados, com moribundos abraçando os próprios joelhos ou dementes balbuciando coisas sem sentido.
Aquele homem de feições grosseiras, tinha uma chamativa cicatriz na testa. Entregou a lamparina para uma das freiras e parou frente a uma cela. Enfiou as mãos nos bolsos e retirou um molho de chaves.
Enfiou na fechadura e ela estalou.
Clack!
Empurrou a porta de ferro e as dobradiças rangeram.
A freira devolveu a lamparina para o homem e ele adentrou na sela, indo mais ao fundo. Havia uma garota ajoelhada com os braços estendidos por correntes.
Seu corpo estava repleto de cicatrizes, e seu cabelo escondia seu rosto. Abaixo dela havia um círculo mágico roxo que iluminava parte da cela, dando um tom bem sombrio ao recinto.
— Acorde! — ordenou o sacerdote.
A garota de cabelo escuro ergueu a cabeça, encarando aquele homem. Seus olhos amarelados arregalaram, se assustando com o que viram.
Ela tentou se mover, mas foi recebida com uma brutal descarga elétrica. Berrou tão alto que o guarda cochilando no final do corredor acordou.
Apressado, ele foi até a origem do barulho e levou outro susto ao ver quem era.
— S-Sacerdote Donovan! N-Não vi o senhor chegar.
— Claro que não viu. Vim pegar a garota para mais uma sessão.
— S-Sim! Fique à vontade, senhor!
O guarda prestou continência e afastou.
Donovan encarou a garota com repulsa. Caminhou até ela e, a cada passo que dava, a garota ficava ainda mais assustada. Ela não se mexia, mas era nítido em seu semblante.
Frente a ela, Donovan toucou sua testa com o indicador, e ela desmaiou. O círculo abaixo dela parou de brilhar e as correntes que a seguravam se afrouxaram, soltando-a.
Ela foi ao chão, e as freiras se apressaram, arrastando a garota para fora.
Fizeram todo caminho de volta até uma sala médica bastante arcaica.
A sala fedia a sangue.
Havia macas e camas ensanguentadas, produtos de alquimia e também de tortura. Outros auxiliares arrastavam mais corpos para fora, de homens e mulheres.
Donovan amarrou a garota em uma cama, a despiu e a acordou levando uma substância má cheirosa até seu nariz. Ela acordou assustada. Ficou mais assustada ainda quando reconheceu o lugar que estava.
Donovan vestiu um avental branco, luvas e máscara. Com ele havia uma assistente, que se vestia da mesma maneira. Eles a amordaçaram e começaram a preparar tudo, esterilizando os objetos.
A garota gemia em desespero, mas era inútil.
— Experimento 33. — A voz de Donovan estava abafada pela máscara — Vamos começar os procedimentos. — Ele olhou para sua assistente — Qual as últimas atualizações sobre o experimento 33?
A mulher preparava uma vacina.
— O experimento conseguiu “abençoar”, duas cobaias com êxito na sessão anterior. Me orgulho dizer que ela é um dos melhores experimentos até agora, e também um dos mais resistentes.
— Perfeito! — Ela entregou a agulha a Donovan — Só mais algumas sessões e você terá sido um sucesso absoluto. — Donovan aplicou a agulha no pescoço do experimento 33, a deixando anestesiada, mas consciente.
Com um bisturi, Donovan rasgou o abdômen do experimento. Pegou outra agulha e aplicou no corte, retirando uma quantidade considerável de sangue. A assistente pegou um frasco, a agulha de Donovan e o despejou dentro daquele recipiente, guardando em uma caixa de prata.
Aquele procedimento continuaria até que tivessem retirado cerca de dois litros de sangue do experimento.
Era um processo que acontecia ao menos duas vezes por semana a pelo menos um ano. O experimento 33 era um dos mais promissores desde o começo, sendo um dos únicos sobreviventes de um grupo de quinhentas pessoas.
Após algumas horas, a garota foi devolvida ao seu cativeiro, e as dezenas de frascos foram levados por Donovan a Alexander, o pontífice, que conduzia uma missa em nome a sua deusa.
Donovan aguardou até que a missa encerrasse e ambos foram até um prédio restrito. Caminharam em direção aos calabouços e encontraram várias pessoas feridas no canto de um salão mal iluminado.
A maioria era moribunda, apenas esperando o abraço da morte, mas Alexander havia prometido que salvaria aquelas pessoas. Ele havia dito que Tithorea estava mais próxima deles do que nunca, que em suas mãos, estava um sangue abençoado, o sangue da própria Deusa.
— A deusa resolveu dar uma segunda chance a vocês! — disse Alexander em um tom firme — Eu, como seu fiel emissário, vim dizer o que a Deusa quer que vocês façam para serem salvos.
Desesperados, os moribundos fariam qualquer coisa.
Donovan abriu a caixa de ferro com dezenas de frascos e Alexander pegou um deles, jogando para um homem de idade avançada.
— Temos um novo inimigo, alguém impiedoso que ameaça à segurança de nossa comunidade, nossa instituição. Tithorea ordenou que vocês vaguem na direção do território do demônio nomeado Colin, o carniceiro, e o destruam completamente! Não se importem com seu povo, se eles estão com um demônio, então eles também são demônios, não merecem piedade alguma! Sejam abençoados com o sangue da Deusa e partam o mais breve possível.
O velho tirou a rolha com o dente e bebeu o sangue do frasco. Sentiu um amargor na garganta e começou a tossir demasiadamente. Caiu no chão de costas e se contorceu por alguns segundos, até que recuperou o fôlego.
Suas rugas desapareceram, sua fraqueza se foi. Sentiu como se tivesse vinte anos, no ápice de sua forma física. Os fiéis ficaram vislumbrados com aquilo, e avançaram contra Donovan, pegando os frascos e os tomando.
Os dois sacerdotes encaravam aquilo com um sorriso no rosto. Eles deixaram o recinto caminhando por um corredor de concreto.
— Então o experimento 33 é mesmo o mais próximo do poder da verdadeira Deusa. Ótimo trabalho, Donovan.
— Agradeço, meu senhor, mas me diga, o que de fato planeja? O carniceiro não deve ser um problema tão sério, já que nem exército ele tem.
Alexander assentiu.
— Você tem razão, ele não é um problema sério, mas Ayla, sim. Meus espiões disseram que os dois firmarão um matrimônio político. Aquela mulher usará o carniceiro e sua sede de sangue pra me atingir. Usaremos o pretexto para esmagarmos os dois, começando pelo lado mais fraco.
Donovan assentiu.
— Em relação ao experimento 33, quer que continuamos a fazer frascos? Acredito que chamaremos atenção da Diocese. Sacerdote Heien pode não gostar do que estamos fazendo aqui.
Alexander assentiu e parou no corredor.
— Temos muito a agradecer a Diocese, mas eles não conseguiram recriar a Deusa, nós, sim. Bastam nossos feitos se tornarem públicos e nossa influência espalhar, que seremos nomeados como aqueles que detém a verdadeira palavra, é apenas questão de tempo. — Ele respirou fundo — Os outros experimentos não dão resultados satisfatórios quanto o experimento 33, pode se livrar deles.
Aquela era uma atitude inesperada vindo de Alexander, mas Donovan entendeu que assim que atacassem o território do carniceiro, a guerra estaria oficialmente declarada. A vantagem seria de quem atacaria primeiro, e eles não teriam mais tempo para cometer falhas.
— Farei como ordenado, senhor.
— Diga para Rian que ele irá liderar a marcha dos moribundos. Não espero nada menos que o sucesso desta missão.
Donovan fez uma reverência.
— Como queira, senhor.
Ainda havia uma questão incomodando o pontífice.
— Me diga, Donovan, qual a sincronia do experimento 33 com a grande árvore.
— Acredito que seja uma sincronia de 90%, senhor. Mais algumas semanas e será uma sincronia perfeita.
Alexander assentiu.
— Tenho alguns outros assuntos para tratar. A gente se vê, Donovan.
— Claro, senhor.
Aqueles dois se dividiram em uma bifurcação.
Alguém estava à espreita, escondido no escuro sem levantar suspeitas enquanto absorvia mais e mais informação. Ibras, o salteador, continuava a espioná-los como Colin o ordenou. Quanto mais ele observava o pontífice e seus homens, mais assustado ficava.
Só mais alguns dias espionando e ele partiria para contar a Colin tudo que descobriu, mas a cada minuto as coisas ficavam mais perigosas.
Mesmo sendo um espião habilidoso, ele temia por sua vida.
Os gritos de euforia ecoavam em uma taverna. Bêbados, felizes demais, contavam junto ao trovador, acompanhando uma balada famosa da antiga.
A balada, cantavam sobre a gloriosa era dos vampiros, de quando os seres da noite causavam pânico antes de desaparecerem após o confronto com os caídos.
Nos fundos daquela taverna, aconteciam negócios escusos. O líder regional era um atuante assíduo do submundo daquela cidade tão próspera localizada na fronteira do império do sul.
Um dos servos chamou o líder que estava de pé encarando uma pintura do oceano em noite de tempestade.
— Senhor, ela chegou…
O líder, de feições grosseiras, braços fortes, pele clara e cabelo escuro, encarou seu servo por cima do ombro.
— Mande-a entrar.
O servo assentiu e se retirou.
Samantha adentrou. Ela estava com o cabelo cortado na altura do ombro, que ficava mais curto na parte de trás. Havia uma cicatriz no formato de corte vertical na bochecha esquerda, e seus olhos pareciam mais sérios que o normal.
Seu corpo estava coberto por uma capa preta, e abaixo dele estava uma armadura de couro leve.
Ela segurava um saco marrom que não parava de gotejar sangue.
— Aí está! — Ela jogou o saco na direção do líder e uma cabeça de Orc saiu rolando de dentro do saco.
Após abrir um sorriso, ele se virou, encarando Samantha.
— Veja se não é a cabeça do Foice de sangue. Deve ter sido difícil capturá-lo, mas você nunca falha, não é? — Ele caminhou para os fundos, abriu um cofre e retirou um saco gordo de moedas, jogando para Samantha — Aqui está sua parte. Espero que faça bom uso dela.
Samantha abriu o saco para conferir as moedas. Percebendo estar tudo nos conformes, guardou o saco em sua bolsa amarrada em sua cintura, a mesma bolsa que Colin havia comprado para ela antes da queda de Ultan.
No momento que preparava para se retirar, Samantha ouviu chamarem seu nome.
— O quê?
Aquele homem caminhou até ela.
— Samantha Leerstrom, aprecio os seus serviços. Não só eu, mas toda organização. — Ele se afastou, pegando um copo, uma garrafa de vinho debaixo da mesa e a enchendo — A maioria não acreditou quando viu você trazendo a cabeça de um dragão puxada por cordas, mas aqui está você. — Ele apontou com o queixo para a cabeça do Orc — Conseguiu até mesmo se infiltrar no esconderijo das foices de sangue e trouxe o líder deles para mim, fascinante.
Ela franziu o cenho.
— Diga logo o que você quer.
Após um sorriso, ele bebeu um gole do vinho que desceu amargo por sua garganta.
— Tinha um homem, um amigo do centro-leste, que me fornecia escravos, não só para mim, mas para vários dos meus sócios. Sabe quanto dinheiro escravos dão? Ainda mais se forem Elfas, não consigo nem mensurar o valor. Tínhamos uma rota segura, um esquema que funcionava e sempre funcionou, mas há alguns dias eu soube que meu amigo duque foi morto, junto com todos os seus homens.
Samantha tinha nojo de mercadores de escravos, mas continuou quieta, apenas ouvindo com atenção.
— Sem ninguém para manter a rota segura, ela acabou sendo infestada de monstros, e eu perdi uma das minhas principais fontes de renda. Há alguns fortes com vários escravos para serem transportados, mas o risco de perder a mercadoria no transporte é bem alta.
— Não irei transportar escravos para você. — Respondeu Sam rispidamente.
— Não é isso que irei pedir. — Deu mais uma golada no vinho — Até pouco tempo, havia turbulência no centro-leste, mas ainda era controlado. Agora, parece que há certa agitação, dizem que o homem que assumiu o lugar do duque está desestabilizando tudo, organizando soldados, tomando tudo para si. Os contrabandistas estão com medo dele, os salteadores não se arriscam a avançar por aquele território e eu fico cada vez mais pobre. — Ele bebeu mais um pouco — O que quero é bem simples, faz tempo que não me reúno com toda organização, e essa é uma ocasião especial. Me acompanhe até a reunião com eles, lá decidiremos o que fazer com esse homem. Posso te apresentar a eles, você ganhará mais dinheiro, conhecerá os principais nomes do submundo do império do sul, o que me diz?
Samantha ficou com os olhos semicerrados encarando seu contratante. Fazia alguns meses que ela fazia certos trabalhos para aquele homem, e ela sabia como aquela organização era um estorvo para o império do Sul.
Eles eram influentes demais para tramar a queda de um reino se quisessem. Para ela, era questão de tempo até seus alvos caírem, já que os melhores assassinos do submundo trabalhavam para eles, mas todos eles se reunirem para eliminar um único alvo era um evento atípico.
— Quem ele é? — indagou — Se você quer uma reunião com todos da organização, então significa que ao menos influente ele é. Um ditador? Líder de um exército poderoso?
Aquele homem alisou o cabelo para trás e se sentou dando um suspiro.
— Não ouviu o que eu disse? Ele acabou com Otto e seus subordinados em algumas horas. — Suspirou novamente — Dizem que ele lidera um grupo de extermínio. Alguns de meus homens já visitaram um local depois dos trabalhos dele, diziam deixarem um cenário pós-Guerra.
Samantha assentiu e deu dois passos à frente.
— Isso não é o suficiente pra me convencer. Por que não diz a verdade? Vocês estão com medo dele vir atrás de você e da organização.
— Hehehe Quem não estaria com medo. Meus informantes dizem que ele se casará com a rainha de Runyra, e pior, dizem que aqueles dois se apossaram do território hostil. Sabe o quão absurdo isso soa?
— Então é isso? Querem entrar em guerra contra alguém assim?
— Não consegue perceber os padrões? — Ele encheu o copo novamente — Eles estão se expandindo, é questão de tempo até chegarem até aqui, na fronteira do Sul com o centro-leste. Se me lembro bem, você é de Ultan, certo? — bebeu um gole do vinho — Quer viver todo aquele inferno novamente? Agora que as coisas se estabilizaram, vem um desgraçado e decide jogar tudo no caos mais uma vez. Isso tem que acabar antes que o Carniceiro do centro-leste comece a gostar da ideia de ter poder e decida colocar nossas cabeças em estacas.
Samantha ficou impressionada com a cautela da organização, estavam de fato considerando o carniceiro uma ameaça, talvez a maior ameaça desde a queda de Ultan.
— Certo, o que sabe sobre ele além do fato de que ele é forte o suficiente para tomar o território hostil? Já mandou espiões para vigiá-lo? Quantos homens temos que matar até chegar a ele? Qual árvore ele pertence?
Aquele homem se abaixou, abriu a gaveta e colocou um calhamaço de papéis em cima da mesa. Samantha começou a revisá-los. Foleou alguns papéis e suspirou.
— É tudo que tem dele ou dos carniceiros? Isso não adianta nada. Só tem informações superficiais aqui.
— Quer que eu faça o quê? Os espiões estão mantendo cautela, não querem se aproximar demais e serem mortos.
Samantha engoliu o seco ao avistar o retrato bem realista desenhado a mão de Colin, Alunys e Leona. Recuperou imediatamente a postura para seu contratante não desconfiar de nada.
— Quem são? — Indagou.
— O cara é o líder dos carniceiros, as outras duas são suas subordinadas diretas. Pelo que soube, o cara é o músculo e elas são o cérebro.
Samantha abriu um sorriso.
— Sério? — Ela debochou — O cara até entendo, mas essas duas? A Elfa de óculos parece uma medrosa e essa pandoriana parece inofensiva.
— Não os subestime.
— Não estou. — Samantha jogou o calhamaço de papéis na mesa — Certo, quando é essa reunião?
Ele bebeu mais um gole do vinho.
— Amanhã, ao anoitecer, já está tudo acertado. Será na estalagem do pé de ogro.
— Entendi. Eu aceito acompanhá-lo.
— Ótimo! Leve sua melhor arma, aqueles miseráveis devem levar alguns criminosos famosos do Sul para demonstrar força. Acredito que você não seria intimidada por eles, certo?
Samantha abriu um sorriso de canto e empinou o nariz.
— Devolverei o dinheiro que me deu hoje se algum deles tiver o currículo tão vasto quanto o meu.
Ele estalou o dedo e apontou para Samantha exibindo seu sorriso dourado.
— Essa é minha Samantha, nos vemos amanhã, certo?
Ela deu as costas e desceu o capuz da capa até os olhos.
— É, a gente se vê amanhã.
Assim que fechou a porta atrás dela, Samantha apoiou as costas na parede e deu um longo suspiro enquanto suas pernas bambearam. Ela não pensou que Colin estivesse morto, mas ter a certeza que ele estava vivo a pegou totalmente de surpresa, e o melhor, Alunys e Leona estavam com ele.
Se ele era mesmo o cara dos boatos, significava que ele estava preparando algo grande, grande o bastante para colocar o submundo do império do sul em seu encalço.
Pelas histórias que ouviu, julgaria que Colin havia se tornado um monstro, mas descartou a ideia quando avistou a foto de Alunys, ao menos a Elfa estaria lá para impedi-lo.
Durante meses ela vagou sem rumo, preenchendo seu vazio caçando criaturas e monstros, agora, ela sabia muito bem aonde ir, mas não poderia deixar que o submundo do império do sul fosse um problema.
Ela havia se decidido. Amanhã, ao anoitecer, ela daria um jeito em toda organização e nos mercenários que estivessem com ela. Seria uma tarefa árdua, mas ela não perderia essa chance já que toda organização compareceria.
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