Capítulo 273 - Matrimônio Sagrado.
O inverno em Valéria não castigava com tanta severidade como em outras terras. Ainda assim, uma brisa gélida soprava pelas ruas, envolvendo as pessoas em seus mantos de lã e casacos pesados. Apesar do frio, a cidade estava viva e pulsante, com suas vielas e praças cheias de vida.
No coração da cidade, erguia-se majestosa a catedral, uma verdadeira joia arquitetônica. Suas paredes de pedra cinza pareciam brilhar com a neve que caía suavemente sobre elas, enquanto as torres se elevavam em direção ao céu, como guardiãs da fé.
A catedral era conhecida por abrigar cerimônias sagradas, mas naquele dia em especial, a atmosfera estava eletrizante, pois se celebrava o primeiro matrimônio com a benção da Santa Brighid.
As ruas que levavam à catedral estavam enfeitadas com orbes e flores, criando uma atmosfera mágica e acolhedora. As luzes se refletiam na neve, criando um brilho suave e encantador.
Os passos apressados dos transeuntes criavam uma sinfonia de sons abafados pela neve fofa que cobria o chão.
A cidade estava viva e animada com o evento.
Na catedral, a luz das velas banhava o interior com uma aura dourada. Os bancos de madeira esculpida estavam preenchidos com convidados, nobres opulentos que se reuniam para testemunhar esse momento histórico.
Suas vestimentas exibiam riqueza e requinte, com tecidos luxuosos e detalhes elaborados que ressaltavam seu status.
No altar, o sacerdote erguia-se imponente, vestido com uma túnica branca adornada com símbolos sagrados. Seus gestos eram suaves e reverentes, evocando a presença divina. Sua voz ressoava pela catedral, transmitindo serenidade e fé aos corações presentes.
O noivo, Anton, trajava um elegante terno escuro que realçava sua figura esguia. Os detalhes cuidadosamente trabalhados do traje revelavam a atenção aos detalhes e o bom gosto. Seu rosto irradiava alegria e antecipação, enquanto seus olhos brilhavam com entusiasmo.
A noiva, Charllote, era um verdadeiro vislumbre de beleza. Seu vestido de noiva era uma obra-prima da costura, feito de seda pura e renda delicada. Cada detalhe do vestido parecia ter sido esculpido à mão, com bordados reluzentes que capturavam a luz e realçavam sua elegância. Seu véu fluía como uma nuvem de renda, emoldurando seu rosto radiante e realçando sua beleza natural.
Naquele dia, Valéria celebrava um matrimônio especial, abençoado pela Santa Brighid.
A cidade estava impregnada de um ar de magia e emoção, enquanto os sinos da catedral ecoavam pelos arredores, anunciando a união sagrada.
O primeiro matrimônio com a benção da Santa Brighid seria um evento que ficaria gravado na memória de todos os presentes, como um momento de amor, esperança e renovação.
Os Leerstroms estavam na primeira fileira, bastante felizes com a realização, principalmente a mãe de Samantha, já que aquilo significava que seu nome voltaria a ser destaque, pois, a família de Anton era a mais rica do continente.
Vestida em um deslumbrante vestido azul, que realçava sua figura esbelta, Samantha encontrava-se discretamente afastada no canto da festa. Enquanto degustava os deliciosos petiscos e apreciava um cálice de vinho, observava o movimento ao seu redor.
Ela notava como os nobres a evitavam, conscientes da guerra que assolava o Leste e cientes de seu passado como membro da temida guilda do Rei Colin, conhecido pelos nobres como Carniceiro.
Enquanto observava, seus olhos pousaram na figura de seu pai, cumprimentado pelos nobres com reverência e respeito. Seu pai agora estava no centro das atenções, comandando com habilidade os jogos políticos da corte.
Olhou para outro canto do salão.
E agora eram as mulheres nobres que se aproximavam de Ophelia, sua mãe, procurando garantir uma promessa de casamento para sua adorável irmã mais nova, Elizabeth.
Samantha sentia-se uma testemunha silenciosa dos caprichos da alta sociedade. Ela sabia que sua mãe ansiava pelo prestígio e pela posição no topo da hierarquia social. Era irônico como agora eram as damas nobres que buscavam a sua aprovação para um casamento vantajoso.
Samantha era uma presença discreta nas conversas da alta sociedade, e isso não a perturbava. Ela não se encaixava na imagem idealizada de uma princesa cultivada por sua mãe e pelos demais nobres.
Enquanto observava o brilho das luzes e o movimento elegante dos convidados, Samantha sentia-se distante daquela realidade. Ela ansiava pela emoção e pelas batalhas dos campos de combate, sentia uma saudade profunda da adrenalina que percorria suas veias em meio ao caos da guerra.
Valéria, com sua tranquilidade aparente e comportamento impecável, parecia uma farsa para Samantha. Ela enxergava além da fachada encantadora, percebendo as máscaras que as pessoas usavam para se encaixar naquela ilusão de perfeição. Para Samantha, tudo aquilo não passava de um jogo de aparências, uma mentira que os nobres diziam para si.
— Casamentos são entediantes? — provocou Aoth, o irmão de Anton, segurando uma taça de vinho e exibindo um sorriso radiante. Seu terno azul-escuro realçava seus músculos, e seu cabelo longo e escuro adicionava um ar de mistério. Ele era um homem belo, digno do status de “homem mais rico do continente”.
Samantha soltou um suspiro e respondeu com um olhar indiferente.
— Eu me animaria se algum amigo estivesse comigo.
O sorriso de Aoth se alargou, como se estivesse se divertindo com a situação.
— Aqui estou. Meu irmão se casou com sua irmã, o que nos torna algo mais próximo do que meros amigos.
— Não torna nada. Se pudessem, tenho certeza de que vocês me tirariam o sobrenome, e não somos amigos.
Aoth, sem perder sua pose confiante, deu um gole em seu vinho antes de responder.
— Por que continua tão hostil, senhorita Samantha? Devia aproveitar e esquecer o que acontece no Leste, isso não é problema nosso.
Com olhos sérios, Samantha o encarou.
— Diz isso porque sua família e amigos estão aqui. — Ela rebateu.
— Os seus também. Ou vai me dizer que prefere estar com os selvagens? — Aoth retrucou, abrindo um sorriso convencido. — Foi estando junto deles que aconteceu o que aconteceu. Claro, foi uma fatalidade o que aconteceu com Wiben, mas seja realista, ele nunca teve chance, o mesmo com Colin. Em breve o Rei de Runyra irá cair, sabe por quê? Homens como ele não conseguem enxergar os seus próprios limites. É uma pena, ele poderia se tornar um grande nome na Era da Ascensão, mas será esquecido como Ultan.
As palavras de Aoth fizeram com que Samantha franzisse ainda mais o cenho, sua expressão de desaprovação intensificada.
— Você não é nem metade do homem que Wiben foi, e nem metade do homem que Colin é! Devia voltar para onde você é bem quisto, Lorde Aoth. Tenho certeza que outras nobres desejariam o mundo para conversar alguns segundos com você, mas eu não sou uma delas.
Aoth não se abalou, apenas sorriu de forma provocativa e bebeu mais um gole de vinho.
— Sempre gostei das esquentadinhas, sabia? — disse ele com um ar de deboche. — Você poderia viver aqui comigo, sua família, mas pelo visto sente saudade dos bárbaros, né? O que tanto te atrai neles? O estilo de vida rústico? O cheiro? — Aoth continuou provocando com um sorriso malicioso. — Não me diga que se deitou com o Rei de Runyra… uau… isso explica muita coi-
Paft!
Antes que Aoth pudesse terminar sua provocação, o rosto dele ardeu com um tapa certeiro.
A festa parou por um instante, e os cochichos maldosos ecoaram pelo salão. Samantha, por sua vez, olhou ao redor, encarando as pessoas que a julgavam, sentindo os olhares de reprovação sobre si.
O olhar furioso de sua mãe foi o mais doloroso, pois sabia que seria julgada antes mesmo de ter a chance de explicar suas ações.
Aquela provocação foi a gota d’água para Samantha.
Ela sentiu a fúria ardendo dentro de si enquanto olhava no fundo dos olhos de Aoth, seus dedos trêmulos apontando o indicador para o rosto dele.
— É melhor que fique longe de mim, Aoth. Não é nada bom testar a minha paciência — sua voz soou firme e carregada de determinação.
Com um gesto decidido, Samantha colocou sua taça de vinho em uma das bandejas que um garçom segurava, indicando sua partida iminente. Ela não tinha mais interesse em permanecer naquele antro de hipocrisia e falsidades.
Ela havia finalmente percebido que sua família continuava com suas vidas, indiferentes à sua ausência. Seu pai assumira o posto de líder da guarda com maestria, sua mãe havia alcançado um lugar de prestígio na elite de Valéria, uma de suas irmãs estava casada e a outra logo seguiria o mesmo caminho. Enquanto isso, Samantha se sentia cada vez mais deslocada naquele lugar.
Caminhando com passos pesados, ela subiu as majestosas escadas de sua casa, cujas proporções quase a faziam lembrar de um palácio.
Chegou ao seu quarto, onde a decoração suntuosa contrastava com seu sentimento de desconexão. Sem hesitar, abriu as gavetas de sua escrivaninha e encontrou a chave que procurava. Com ela em mãos, dirigiu-se ao fundo do guarda-roupa, onde um baú esperava pacientemente.
Ao abrir o baú, um conjunto de roupas singelas revelou-se diante de seus olhos. Eram as vestimentas que usava quando chegara a Valéria, uma lembrança do tempo em que ainda não havia sido tragada para o turbilhão de luxo e hipocrisia da sociedade nobre. Com cuidado, ela retirou o vestido azul e o dobrou meticulosamente, depositando-o ao lado da cama.
Samantha encarou atentamente sua imagem refletida no espelho, contemplando um corpo que carregava as marcas de batalhas passadas. Suas feições femininas se mesclavam harmoniosamente com uma definição muscular admirável. Os rastros de suas jornadas guerreiras eram visíveis, desde sua barriga trincada até suas pernas poderosas.
Ela começou a vestir-se para a jornada que estava prestes a trilhar. Uma camisa branca de lã abraçou seu torso, servindo como base para a imponente armadura de couro que sobreveio.
Deslizou sua perna torneada em uma calça preta de couro, enquanto suas botas, altas até o joelho, se firmavam no chão.
O cinto adornado com bolsos estrategicamente posicionados foi ajustado em torno de sua cintura, preparado para abrigar suas adagas afiadas em suas respectivas bainhas.
Por fim, ela envolveu seus ombros com uma capa escura.
Pronta para partir, Samantha dirigiu-se à escrivaninha e tomou um pedaço de papel, mergulhando a pena no tinteiro.
Com uma caligrafia firme, começou a escrever uma carta destinada a Elizabeth, sua irmã mais nova, compartilhando suas palavras de despedida.
No entanto, antes que pudesse concluir sua mensagem, um pressentimento aguçado a alertou sobre a presença de alguém à porta de seu quarto.
— Elizabeth? — disse Samantha, surpresa ao ver sua irmã parada à porta. — Você não deveria estar na festa?
— Bem… e-eu te vi saindo apressada, então… — Elizabeth olhou para Samantha, notando seu traje de equipamento. — Você vai embora? — A expressão da jovem entristeceu. — É por causa da mamãe?
Samantha caminhou até a cama e sentou-se, dando dois tapinhas no colchão ao seu lado. Elizabeth prontamente se juntou a ela, sendo envolvida pelo caloroso abraço de Samantha.
— Eu não vou embora, apenas ajudarei um amigo. — Samantha acariciou o cabelo da irmã. — Não se preocupe, volto o mais breve possível.
— Posso ir com você? — perguntou Elizabeth, aninhada nos braços da irmã. — Charlotte vai se mudar, papai nunca está em casa e a mamãe é tão chata… será um tédio sem você aqui…
Samantha sentiu uma pontada de dor ao ouvir as palavras de Elizabeth.
— Para onde vou é perigoso, muito perigoso… por isso não posso levar você, mas prometo que quando tudo estiver resolvido, irei buscá-la para morar comigo. O que acha?
Elizabeth se afastou um pouco, seus olhos brilhando com esperança.
— Sério? — sua voz transbordava de expectativa.
— Sim! Meu amigo é extremamente forte e habilidoso, tenho certeza de que resolverá tudo rapidamente. E então, estaremos juntas novamente, longe das garras da mamãe. — Samantha sorriu, acariciando o rosto de Elizabeth.
— Você vai matar outro dragão? — Elizabeth olhou para Samantha, seus olhos cheios de curiosidade.
Samantha riu suavemente e continuou a acariciar o cabelo da irmã.
— Com toda certeza! E desta vez, guardarei um dente de dragão especialmente para você. O que acha disso?
Elizabeth se aninhou novamente nos braços da irmã.
— Janice e as outras meninas não vão acreditar quando eu mostrar a elas! — Elizabeth exclamou, transbordando entusiasmo.
— Faça com que elas morram de inveja, hehe! — Samantha se levantou, pronta para partir. — Agora preciso ir, tudo bem?!
— Tá! — Elizabeth abraçou a irmã uma última vez. — Boa sorte, mana!
— Obrigada, e lembre-se de se comportar. Não dê motivos para mamãe pegar no seu pé. Seja uma boa menina até eu voltar, está bem?
Elizabeth assentiu com um sorriso determinado, prometendo a si mesma que seguiria à risca as palavras de sua irmã.
Samantha deixou o quarto, sentindo uma mistura de emoções em seu peito. A ansiedade a consumia, mas também havia uma chama de empolgação em seu interior.
Ela estava pronta para se juntar à guerra no Centro-Leste, ansiosa para fazer o que sabia fazer de melhor.
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