Capítulo 50 - Véspera de Sangue - Parte 01
Sentindo um cheiro delicioso de carne assada, Eilika abriu os olhos e viu Colin já vestido, sentado em um pedaço de tronco na entrada da gruta. Ele cutucava a fogueira com um graveto e observava o coelho assar.
Eilika pegou suas roupas e as vestiu rapidamente. Assim que terminou de calçar sua bota, ela se agachou próxima à fogueira e olhou o coelho com água na boca.
— Vai acabar babando meu coelho se continuar o encarando assim. — disse Colin.
Ela fez beicinho.
— Humpf! Se estiver achando ruim, pode deixar que eu mesmo caço o meu café.
Colin abanou uma das mãos.
— Deixa para lá. Dormiu bem?
Eilika fez que sim com a cabeça duas vezes.
— Sempre que uso aquela magia fico exausta. Meu sono é melhor ainda, é como se eu tivesse bebido muito na noite anterior, mas acordo sem a parte da ressaca.
— Sei, e conseguiu mapear a cidadela subterrânea dos vampiros?
Ela fez que sim novamente.
— Depois do café da manhã eu te mostro, já que para eu mostrar a você precisarei gastar alguma energia.
— Entendi… De qualquer modo, eu acho que o café tá pronto.
Erguendo a mão, Colin apanhou o espeto no qual estava o coelho. Apoiou a ponta do espeto no chão e tirou uma adaga do bolso, cortando parte da perna do coelho e a entregando para Eilika, que encarou aquele pedaço suculento com os olhos brilhando.
— Cuidado, tá um pouco quente.
Ela apanhou o pedaço pelos ossos que vazavam na extremidade da coxa e assoprou algumas vezes antes de dar a primeira mordida.
Com um sorriso, Eilika encarou Colin enquanto sua cauda sacudia de um lado pro outro.
— Você sabe o ponto certo para assar um coelho. — disse ela de boca cheia — Devo admitir que estou impressionada.
Desta vez Colin retirou a outra parte da coxa e deu uma generosa mordida. Mastigou lentamente, sentindo o gosto da carne passar por toda sua língua.
— Quando eu era pequeno, meu pai me obrigava a caçar com ele já que morávamos no interior — Ele cortou parte do lombo do coelho e entregou para Eilika — Então, cozinhar o que a gente caçava fazia parte do processo. Se você acha que cozinho bem, então tinha que ver o meu pai, ele deixava até larvas gostosas.
— Larvas? — Eilika fez uma careta de nojo — Os doze que me livrem de comer algo assim!
— Você não é meio camundongo?
— Uhum! — grunhiu ela.
— Então por que o nojo de insetos? Não é isso que vocês comem?
— Meu paladar é totalmente humano nesse quesito. Cada pandoriano tem características próprias, Celeste, por exemplo, ela prefere comer capim a comida humana.
Partindo outro pedaço do coelho, ele mandou para dentro e deu outro pedaço para Eilika que fez o mesmo. Não demorou muito para deixarem o coelho apenas aos ossos. Colin abriu um cantil e bebeu a água gelada com o maior gosto do mundo, enquanto Eilika encarava a garganta de Colin e o canto de seus lábios que descia gotas d’água.
Percebendo, Colin a encarou e ela começou a mexer nos dedos.
— O que foi? — ele perguntou.
— Bem… — disse ela desviando o olhar enquanto sua cauda sacudia devagar — Quando Senhorita Lina pediu para que eu seguisse você… eu meio que vim apressada e esqueci de muita coisa, inclusive comida e água…
— …
— Se o senhor não se importar muito, poderia me dar um golinho? Só um golinho bem pequeno…
— Choveu muito ontem, por que não pegou água da chuva antes de desmaiar de cansaço?
Eilika coçou a nuca e olhou para o lado.
— Er… nem passou pela minha cabeça hehehe…
— É meio difícil de acreditar que alguém assim me derrotou mais de cinquenta vezes… Aqui! — Colin jogou o cantil — Da próxima vez vê se não esquece esse tipo de coisa.
Ela fez que sim com a cabeça algumas vezes.
— Prometo que não irei!
Abrindo o cantil, Eilika bebeu a água como se fosse alguém morrendo de sede, deixando somente o restinho. Colin pegou o cantil, mas não a repreendeu.
— E então, vai me mostrar aquela magia?
— S-Sim, só um minuto.
Erguendo-se, Eilika foi mais a fundo na caverna, pegou um pedaço de pedra e começou a rabiscar o chão, fazendo um grande círculo mágico. Assim que terminou, jogou a pedra longe e juntou as mãos, invocando novamente aquela aura escura, que se moveu inteiramente para dentro do círculo dessa vez.
Como se fosse água fervendo dentro de um caldeirão, a sombra borbulhava no círculo e secou em instantes. As bordas ficaram escuras e uma escuridão novamente cobriu o círculo por inteiro, dando lugar a uma maquete em miniatura da região. Era como se fosse 3d, tendo toda uma profundidade invejável que Colin só viu em maquetes tridimensionais.
— Uau… — ele deixou escapar por seus lábios.
Eilika suava tanto que parecia ter corrido uma maratona. Ela apoiou as mãos nos joelhos e logo depois sentou-se no chão, recuperando o fôlego.
— Só me dá um minuto… — disse ofegante.
Colin agachou-se perto da enorme maquete, observando um plano superior com algumas cavernas. Havia cavernas que levavam a entradas que davam em caminhos distintos, mas todas conectavam a uma enorme cidade subterrânea, maior até mesmo que a gigantesca capital.
Com a mão no queixo, ele tentava encontrar brechas e possíveis rotas de invasão mais segura.
— Aqui! — Eilika apontou com o dedo — A gente tá aqui, tem uma caverna deles aqui por perto que dá para uma entrada, mas teremos que caminhar bastante até alcançar a cidade principal. Pelo que soube, existem alguns clãs que cercam a grande cidade principal.
Nostradamus nomeou alguns principados importantes pelo que senhorita Lina me passou.
Eilika enfiou a mão no bolso e retirou um pano com runas escritas, abrindo no chão bem na frente de Colin.
— Isso estava junto ao vampiro que a gente capturou — Ela apontou o indicador para uma adaga pitoresca que parecia um brasão. E ao lado do Brasão estava a insígnia “A”. — Acho que entendi o que isso significa agora — Ela apontou para um principado que ficava logo abaixo do vilarejo de Aloron — Estudei pouco sobre a sociedade dos vampiros, mas sei que esse Brasão pertence ao clã Breto, eles são esquentadinhos e tem sérios problemas em seguir ordens.
Ela apontou para uma caveira com uma serpente saindo por um dos olhos, e debaixo estava a letra “N”.
— Esse são os Muguenis — disse ela — Eles estão abaixo do vilarejo Nerot. São um clã pior que os Breto se tratando de agressividade. Li uma vez que a maioria dos integrantes desse clã tem transtornos e são bem fáceis de atingir “A besta”.
Colin ergueu uma das sobrancelhas.
— A besta?
Ela fez que sim.
— Quando um vampiro fica fora de controle, eles conseguem atingir esse estado. Normalmente a força deles triplica junto a suas habilidades, mas o vampiro que atinge esse estado não volta ao normal, então ele tem que ser morto por outros vampiros já que fica descontrolado.
— Isso pode ser um problema…
— Talvez, mas o perigo de verdade está aqui, veja! — Ela apontou para o símbolo de um morcego e debaixo estava a letra “P”. — Esse é o símbolo do clã mais perigoso, eu soube os integrantes são da terceira geração de vampiros.
— E o que isso significa?
Eilika engoliu o seco.
— Esse clã existe antes do véu cair… Ninguém sabe como, mas parece que vampiros e lobisomens eram comuns neste mundo antes do véu cair e trazer outras raças. Há boatos que dizem que Alucard era um vampiro de terceira geração.
Pensativo, Colin olhou para baixo. A missão se tornava mais difícil a cada segundo que ele parava e pensava melhor. Um suor frio escorreu de sua testa e seus pensamentos começaram a ficar nublados.
Mesmo desejando um combate frenético, a verdade era que ele estava assustado, mas decidiu não demonstrar isso para Eilika, mas os instintos dela não mentiam.
Ela sentia a insegurança de Colin ao encará-lo.
— Colin! — Ela tocou seu ombro — Vai ficar tudo bem, tá?! A gente conseguirá resgatar suas crianças, mas precisaremos ser espertos ou acabaremos mortos.
— Estou bem, não precisa se preocupar comigo, preocupe-se com você.
— Hunf! Esse ar de fodão pode funcionar com Senhorita Lina e os outros, mas sinto medo em você só de cheirá-lo. Não precisa mentir para mim.
— … Não estou com medo por mim, estou com medo pelas crianças. E o resto dos clãs?
— Bem, parece que o resto está no palácio, eles não são tão importantes como os três que mencionei. Eles são praticamente a elite da sociedade vampírica. Todas as entradas de cavernas e locais abandonados levam a um desses clãs, a gente só tem que escolher direito por onde iremos, mas ressalto que todas as três alternativas são bem difíceis.
Colin analisou tudo mais uma vez. Ele teria que conseguir alguma informação com quem quer que fosse sobre Brey e Melyssa. Teria que encontrar alguém que soubesse sobre Alistar e como encontrá-lo. O problema seria se ele estivesse no palácio e mantivesse as garotas reféns lá. Mesmo estando mais forte, Colin não se via enfrentando Nostradamus e vencendo. Ainda mais depois do papo sobre a terceira geração, aquilo havia o deixado um pouco receoso a uma luta aberta.
Cogitava caso encontrasse as garotas, Eilika poderia fugir com elas e ele ficaria para trás para segurá-los. Contudo, o grande eclipse se aproximava e o número de soldados para ele enfrentar sozinho seria absurdamente alto. Mordendo o polegar, Colin não conseguia encontrar uma saída para aquela situação.
Sacrificar Eilika estava fora de cogitação, ele considerou que se alguma vida tivesse que ser perdida naquele resgate, então que fosse a dele. O que mais o assustava seria que ele retornasse sem as crianças e tivesse que encarar Meg e os outros após dizer aos quatro cantos do mundo que ele as protegeria.
Sem perceber, aqueles pensamentos que pairavam o fundo de seu âmago começaram a emergir, e pela primeira vez Colin pôde ver um cenário em que ele falhava de forma miserável.
Sua mente começou a lhe mostrar flashs onde as garotas estavam estiradas no chão, totalmente mutiladas. Imaginou até mesmo o cadáver de Eilika apodrecendo em um buraco qualquer. Suas mãos começaram a tremer e memórias passadas invadiam seus pensamentos. Ele se viu de pé frente a um caixão completamente sozinho. No caixão, sua mãe era velada em um lugar amplo, mas nenhum familiar havia comparecido.
Então, como uma represa rompendo a barragem, aqueles sentimentos vieram à tona. Ele sentiu a mesma solidão infindável que o consumiu até aquela tarde em que ele decidiu tirar a própria vida.
A respiração de Colin começou a ficar pesada e ele apoiou uma das mãos no peito. Começou a tremer como se estivesse debaixo de uma intensa nevasca. Ar não mais entravam em seus pulmões e ele começou a ver tudo ficar turvo. Seus pensamentos ficaram embaralhados e ele não conseguiu pensar em nada além do fracasso, pairando seus ombros.
[Tapa!]
Tudo parou, todos aqueles sentimentos haviam ido embora de uma única vez. Seu rosto estava ardendo e ele sentiu sangue em sua boca. Ao virar-se, viu Eilika com os olhos arregalados, orelha abaixada e uma expressão de susto.
— V-Você tá bem?! — Ela perguntou sem se aproximar.
Ele olhou para a companheira acuada e se sentiu culpado. Levantou-se e caminhou para fora, respirando fundo todo ar que conseguiu para os pulmões.
— Colin… — balbuciou Eilika sem se aproximar.
Ele virou-se para o lado e cuspiu sangue.
— Foi mal… — disse ele — Lembrei de algumas coisas e acabei entrando em pânico só de pensar naquilo tudo voltando… Acho que aqueles sentimentos nunca estiveram tão próximos de voltar quanto agora. Tem muito tempo que não me importo com alguém, e agora, parece que tem tantas pessoas que me importo que não sei como reagir. — Ele a olhou por cima dos ombros — Não precisa se arriscar tanto para me ajudar só porque Lina pediu. Você pode acabar jogando sua vida fora por alguém que acabou de conhecer. Entenderei se quiser voltar.
Eilika ficou em silêncio e olhou para o lado.
— Senhorita Lina não pediu para que eu te ajudasse, eu vim por conta própria…
Colin ergueu as sobrancelhas.
— O quê? Por quê?
— Percebi o quanto você estava obstinado. Vi você discutindo com senhorita Lina. Dividimos a alma, eu sei o que ela estava sentindo… Acredite em mim, senhorita Lina queria ajudar as garotas, mas ela ficou para proteger o povo do vilarejo, os irmãos dela e até mesmo os seus amigos.
Colin ficou em silêncio por alguns instantes.
— Eu… não sei o que dizer…
Ela balançou as mãos.
— Não precisa dizer nada háhá. Vim te ajudar porque sei que senhorita Lina faria o mesmo no seu lugar, então só vamos pensar em um plano, tá? E pensaremos juntos, nada de tentar fazer tudo sozinho.
Colin abriu um sorriso de canto.
— Obrigado, Eilika…
Ela fez que sim e coçou a ponta do nariz enquanto sorria.
— Por nada.
Colin caminhou novamente para o fundo e pegou sua mochila no canto pela alça e a jogou no ombro.
— Acho melhor irmos pela entrada que dá direto no clã Breto. Eles parecem ser os menos problemáticos. Vamos tentar fazer menos barulho possível. Eu sou rápido e você parece saber buscar informações.
Ela fez que sim com a cabeça.
Aproximando dela, Colin ergueu a mão para um aperto.
Eilika encarou a mão de Colin e depois olhou para cima, vendo um raro sorriso no companheiro de feições quase sempre sérias. Ela ergueu a mão apertando a mão de Colin. Por ter menos de 140 centímetros de altura, Colin parecia um gigante perto dela, e as mãos dela ficavam minúsculas perto da mão de Colin.
— Conto com você. — disse ele sacudindo as mãos.
— Vamos logo salvar essas garotas!
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.