Capítulo 52 - Véspera de Sangue - Parte 03
Depois de um longo bocejo, Safira se aproximou da cozinha enquanto coçava o olho. Vestindo nada mais que uma regata branca e um short curto, ela sentiu um cheiro ótimo, o cheiro de bolo de chocolate e algum outro tipo de assado.
Ao alcançar a cozinha, viu Brighid anotando coisas em uma folha de papel. Ela estava com seu clássico avental bordado, seu cabelo estava com trança que escorria por seu ombro. Ela parecia bem feliz cantarolando sozinha.
— O que está fazendo? — perguntou Safira sentando-se no banco de madeira da bancada.
— Bem, Stedd e o pessoal irão vir almoçar aqui, então pensei em fazer algo gostoso para eles. Eles já devem estar chegando, por que não tira esse pijama?
Safira bocejou mais uma vez e coçou a ponta do nariz com o indicador.
— Almoço? Já tá tão tarde assim?
Brighid fez que sim com a cabeça.
— Devia diminuir a intensidade do treino. Sua sorte é que não temos aula hoje.
Safira abanou uma das mãos.
— Tudo bem, vou me trocar… — disse Safira se retirando para os fundos.
Minutos depois ela retornou, tendo trocado somente sua regata por uma blusa branca larga e em seus pés ia um chinelo de palha. Brighid havia soltado o cabelo que, devido às tranças, ficava cacheado nas pontas. Assim como Safira, ela vestia uma blusa branca larga, short curto e chinelo.
Toc, Toc, Toc!
Brighid foi até a porta e a abriu, se deparando com seus convidados. Stedd usava óculos de lentes avermelhadas. Seu cabelo prateado parecia bagunçado. Ele usava também uma blusa interior branca, uma calça preta e chinelos de borracha.
Por cima da blusa, usava um tipo de sobretudo com estampas de flores bordadas das mais variadas cores, onde as mangas tinham uma abertura larga e iam até o ante braço.
Elhad basicamente vestia as roupas de treino, uma regata preta, short e chinelo. Assim como Brighid, seus longos cabelos pretos estavam soltos, e eram de um liso invejável. Já Sashri, usava uma blusa de crochê preta bastante justa, saia rodada que ia até metade da coxa e chinelos pretos. Seu cabelo branco combinava perfeitamente com seus olhos rosados e sua pele acinzentada, quase azul.
— Enfim chegamos! — Stedd passou por Brighid e entregou uma garrafa de vinho a ela, entrando no recinto com as duas mãos no bolso.
Elhad entrou em seguida e nas mãos, Sashri levava uma vasilha de vidro contendo a especialidade da sua terra natal, algo parecido com estrogonofe de frango.
— Huum! — Grunhiu Stedd — O cheiro tá uma delícia!
Assim que entrou, ele se sentou na cadeira, de frente para Safira. Não que ela odiasse Stedd, mas o achava muito folgado e atrevido.
Safira encarava Stedd com o cenho franzido.
Percebendo, ele abriu aquele sorriso que destacava bastante seus caninos.
— O que foi, chifruda? — zombou ele — Algum problema?
— Sim, eu tenho, e ele se chama Stedd.
— Uuuu! — Stedd apoiou as mãos no peito — Assim você me magoa, sabia?
Elhad se sentou na cadeira ao lado de Stedd.
— Já vão começar com isso vocês dois?
— Que isso, a gente só estava brincando, não é. chifruda?
— Hum! — grunhiu Safira virando o rosto.
Na cozinha, Sashri e Brighid conversavam de forma descontraída. Trocavam ideias de receitas já que as duas amavam cozinhar. Elas preparavam as coisas enquanto o resto esperava na mesa.
Já Stedd e Safira continuavam se alfinetando como se fossem irmãos que provocavam mutualmente sem parar, mas, no fundo, se davam bem.
— Me diz aqui, chifruda, já sabe usar aquela porcaria que você chama de espada?
— Porque não vamos pro estádio de treinamento e eu te mostro?!
— Olha só, Elhad, parece que você está treinando uma selvagem hehe. Nem seu mestre aqui pode comigo, o que faz você achar que tem alguma chance?
— Sabe o que eu acho? Você é do tipo que gosta muito de falar, mas não faz nada, igual aos nobres da universidade. O que esperar de alguém que se veste como um bobo da corte, né?!
Stedd ergueu uma das sobrancelhas.
— O que tem de errado com minhas roupas? Essa é a última tendência de moda em Rontes. Isso é estilo!
Safira deu de ombros.
— Parece que fazem roupas de qualquer jeito hoje em dia e chamam isso de moda. Que bom que sempre existem idiotas como você para comprar!
— Ora sua…
Sashri chegou com os pratos encerrando aquela troca de carinhos disfarçada de discussão, e Brighid chegou com suas badejas de vidro cheias de comida.
Em cima da mesa havia de tudo, arroz, frango, legumes e diversos outros tipos de grãos e frutas. O cheiro estava ótimo e pareciam bem apetitosos. Sem perder tempo, todos começaram a se servir e aproveitaram aquele almoço delicioso.
Jogaram um pouco de conversa fora, passando por todo tipo de assunto. Stedd falou sobre como os nobres eram metidos, Safira falou um pouco de seu treinamento e Brighid falou sobre Colin, Alunys e Kurth, se questionando se eles estavam bem, se estavam se alimentando direito ou se Colin tinha se metido em alguma outra confusão.
Safira a tranquilizou, dizendo que por mais que Colin fosse um garoto problema, ele sabia se cuidar. Aquele almoço continuou de forma descontraída por boa parte da tarde, até que chegou a hora de irem embora.
Antes de irem, Stedd enfiou a mão no sobretudo colorido e retirou uma carta com um selo imperial, colocando-a na mesa. Todos olharam para o selo e logo depois olharam para Stedd sem entender nada.
— Um selo de algum império oriental? — perguntou Sashri — Como você tem isso?
Usando a unha afiada do mindinho como palito de dentes, Stedd abriu um sorriso e logo depois apoiou a mão sobre a carta, a arrastando até Brighid. Nem mesmo ele havia lido o documento, o que sairia dali, seria uma surpresa.
— Recomendo que a mais forte da nossa futura guilda leia para que todos fiquem a par do que se trata.
Erguendo o braço em direção a carta, Brighid a apanhou e, antes de abrir, olhou para todos seus companheiros que a encaravam com certa curiosidade. Então, ela retirou o selo e apanhou a carta no envelope, a desdobrando sem muita pressa.
Em voz alta, ela começou a ler.
— Olá, filho, como tem passado? Espero que não esteja dando trabalho para seus irmãos. Como sabe, sua mãe e eu estamos no continente oriental travando uma guerra brutal contra cinco dinastias imperiais bem poderosas, e acredite, estamos sofrendo uma grande pressão, tanto sua mãe quanto eu. Estamos servindo ao império Song, que teve recentemente seu único herdeiro homem morto em batalha. Alguns selvagens nômades que vieram das montanhas têm realizado cercos em cidades inteiras, as sitiando e depois tomando-as. Seu irmão mais velho tem estado bem ocupado com os assuntos dele, e seus outros irmãos são intensos demais para assumir a responsabilidade que estou prestes a colocar em suas mãos. Em algumas semanas, a única herdeira da terceira dinastia do império Song chegará ao ocidente em um navio que levará seda e tecidos. Sua missão será cuidar dela, já que a universidade é bem protegida pelo imperador de Ultan e seu exército. Consegui convencer o imperador Song a confiar em mim para tal missão. Proteja a garota e se possível treine-a. Seu irmão me escreveu dizendo que você está juntando companheiros fortes, vai ser ótimo se ela souber se defender. Se o império Song for vencedor nesta guerra, então você e seus amigos serão recompensados pelo próprio imperador Song. Assinado: Jack Ubiytsy.
Todo recinto ficou em silêncio por um instante, tentando digerir o que acabaram de ouvir.
— Isso é sério? — perguntou Sashri — Eu sabia que os Ubiytsy eram malucos, mas se meter em uma guerra de dinastia daquele continente superou todas as minhas expectativas.
Stedd fez que sim.
— Meu pai é um homem honesto, ele não mentiria em relação a isso. Se eles estão tendo problemas para um trabalho como esse, então o negócio é sério mesmo. O único problema seria ir até o porto buscar a tal herdeira. Ultan não tem acesso ao mar que fica ao Leste dominado por outros pequenos principados que não são aliados do império.
— E qual seu plano? — perguntou Elhad de braços cruzados — Esse navio deve chegar em breve até o ocidente. Sem contar que podem ter espiões que podem tentar assassinar a herdeira já que a guerra do oriente é bem mais sinistra que a que acontece nesse continente. Orientais não são brincadeira, e para piorar, seu pai vai nos meter no meio disso tudo.
Stedd deu de ombros e abriu um sorriso.
— Você ainda pensa como plebeu. — disse Stedd — Se deixarmos a herdeira forte, podemos tirar proveito disso. Fazer amizade com algum imperador do oriente é algo bem lucrativo. Eles têm bastante seda, uma agricultura forte e uma tecnologia tão avançada quanto aquela fabricada pelos anões. Eu queria esperar até que Colin e os garotos retornassem, mas parece que não tem outra maneira — Ele fez uma pequena pausa — A viagem a cavalo daqui até o porto leva três dias para ir e três para voltar, isso sem considerar os perigos da viagem. Safira vem treinando como louca, não é? Não se propõe a ir, chifruda?
Safira deu de ombros. Ela já estava cansada de só ficar parada treinando incessantemente, ela queria partir para ação e mostrar o resultado do seu treinamento.
— Por mim tudo bem. Não deve ser tão difícil trazer essa moça para cá em segurança. E todo mundo vive dizendo que a forma de aprender magia dos orientais é bem mais avançada que a nossa, eu gostaria de ver isso em primeira mão.
— Então eu também vou! — disse Brighid — Não posso deixar Safira ir sozinha em uma missão tão longa.
— Sei me cuidar!
— Sei que sabe, eu vou só para garantir.
— Nesse caso eu também vou. — disse Sashri espreguiçando-se na cadeira — Estou precisando esticar as pernas um pouco.
— Que maravilha, uma missão só com as meninas! — disse Stedd se erguendo — Acabei de retornar de uma missão, então estou um pouco cansado para outra, espero que vocês não se importem. Não é, chifruda?
Safira franziu o cenho.
— Não tô nem aí para você — respondeu.
— Que bom hehe. Vou indo nessa, podem ficar com a carta. Eu poderia ficar e ajudar vocês com a louça, mas sabem, né?! Sou um cara bem ocupado. Vamos lá, Elhad, temos aquele “problema” para resolver.
Elhad se ergueu e fez uma reverência.
— Obrigado pela comida, estava ótima. Sinto muito por não poder ajudar com a louça…
Brighid sacudiu uma das mãos.
— Não precisa se preocupar, tá tudo bem.
— Sempre saindo quando tem que arrumar as coisas — disse Safira — Não é mesmo, mestre?
Elhad engoliu o seco e deu um tchau, deixando o apartamento. Sashri pegou os pratos sujos e levou para a pia da cozinha. Safira pegou as vasilhas e Brighid retirou o resto da mesa. Elas continuaram ali por muito tempo, jogando conversa fora e aproveitando para se conhecerem melhor.
Deixando o dormitório feminino, Stedd assoviava alegremente com as mãos no bolso enquanto Elhad estava logo atrás.
— Fez aquilo de proposito de novo? — perguntou Elhad.
— O quê?
— A missão com a suposta herdeira.
— Sim, mas foi uma surpresa Sashri querer ir com elas. Acho que ela gostou da monarca e da chifruda. E aquela carta foi uma surpresa até mesmo para mim.
— Você é mesmo um cretino, sabia que Safira não iria recusar, não é?
Stedd deu de ombros.
— Por sorte ela se parece um pouco com o nosso elfo negro Colin, então provavelmente ela não fugiria de uma briga.
— E o que você tem de tão importante para fazer agora?
— Eu? Dormir. Eu só não estava a fim de lavar louça, e você me deve uma porque eu te salvei dessa.
— Você não presta mesmo.
O teto daquela caverna era quase todo feito de espeleotemas — rochas formadas em cavernas — que se estendia por quilômetros, alcançando todo aquele labirinto subterrâneo. Era comum ter bastante morcegos e pequenos seres abissais que ficavam andando pelas paredes rochosas. Alguns deles se pareciam com lagartos luminosos e insetos que brilhavam como um orbe, criando uma flora totalmente única dentro daquele lugar.
A sorte de Colin era que Eilika enxergava perfeitamente no escuro e, alguns animais e insetos abissais permitiam que ele pudesse caminhar com segurança. Após fazer mais uma varredura no local com seus ratos sombrios, Eilika acabou encontrando uma passagem secreta que era bem próxima da superfície, o que deixava o lugar apertado, bastante quente e abafado.
Se arrastando por aquele buraco, tanto Colin quanto Eilika suavam como se estivessem dentro de um forno. Se arrastando mais um pouco, Eilika se deitou no chão. Ela estava no alto, enxergando a primeira grande vila dos vampiros de uma altura consideravelmente alta. Se espremendo, Colin arrastou ficando ao lado de Eilika.
— Aii, cuidado! Não é porque sou pequena que você deve ser grosseiro!
— Desculpa, o que está vendo?
Lá em baixo haviam alguns humanos bem magros vestindo trapos e com grilhões nos pés segurando picaretas e as batendo contra as rochas. Outros, carregavam pedras e montavam construções imponentes. Assim como algumas crianças arrastavam estátuas de vampiros para um lugar que se parecia com um templo.
— Escravos? — perguntou Colin.
— Parece que sim, estão usando até crianças. Algum plano? — perguntou Eilika — Não podemos chegar lá em baixo fazendo barulho, e infelizmente não temos como ajudar essas pessoas por enquanto.
Colin olhou no fundo dos olhos de Eilika.
— Sobe nas minhas costas. — disse ele — Vamos descer sutilmente.
— Sutilmente? — Ela ergueu uma das sobrancelhas — Você não é nada sutil.
— Confia em mim.
Eilika franziu a testa e olhou no fundo dos olhos de Colin por alguns segundos até que cedeu.
— Tá, tá, você venceu, mas é melhor que seja sutil mesmo!
Colin tirou a mochila e Eilika subiu em suas costas. Assim que subiu, Colin colocou a mochila novamente, deixando Eilika bem colada ao corpo dele. Ela era pequena e magrela, Colin nada sentiu além de ossos, e o peso de Eilika era quase inexistente para ele.
— Se segura!
Eilika passou os braços pelo pescoço de Colin e sua cauda passou pelo abdômen dele, dando uma volta completa.
Se arrastando mais um pouco para fora do pequeno buraco, Colin se deixou cair em queda livre. Ainda no ar, ele bateu palmas e conjurou uma adaga de raios, cravando na parede.
[Derrapa!]
Ele derrapou pela parede enquanto tentava se segurar, desceu devagar até que parou. Mesmo tendo descido um pouco, eles ainda estavam bem alto. De lado, com a adaga cravada na rocha e os dois pés apoiados na parede, Colin olhou ao redor.
— Você não tá pensando mesmo nisso, está? — perguntou Eilika com temor na voz.
Colin apenas abriu um sorriso de canto.
— Segura firme!
Faíscas começaram a emanar do corpo de Colin e com um impulso, ele saltou colado a parede, começando a correr nela bem rápido em direção ao chão.
— Isso não vai ser nada sutil! — berrou Eilika antes deles chegarem ao chão em um baque.
[Tremor!]
Ouvindo a barulheira, alguns humanos se aproximaram e não viram absolutamente nada além de poeira que vinha do teto direto para o chão.
— O que foi isso? — perguntou um vampiro se aproximando — Ele olhou em volta e não viu mais nada — Foi só um deslizamento, voltem já ao trabalho.
— Eu disse que essas ruínas seriam uma péssima escolha para trazer o clã — reclamou outro vampiro.
No escuro, afastado de todos, Colin recuperava seu fôlego escondido atrás de uma estalactite.
— Viu?! Deu tudo certo! — disse ele encarando o cenho franzido de Eilika por cima dos ombros.
Ainda nas costas de Colin, Eilika puxou a orelha dele.
— Da próxima vez deixa a sutileza comigo!
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