Capítulo 91 - Monstro engolindo monstro
A nevasca parecia ter se intensificado, mas Safira e Leona estavam bem agasalhadas, camufladas junto ao todo branco da neve.
Elas observaram um grande grupo de mortos-vivos comandados por um cultista deixarem o castelo e marcharem em direção a vila.
Nenhuma das duas ficou preocupada, afinal aqueles monstros topariam com Colin, e existiam poucas pessoas no mundo que conseguiriam feri-lo.
— Devíamos entrar. — Sugeriu Safira.
— Ficou doida? Viu quantos monstros saíram lá de dentro?
— Eu vi, mas você está aqui. Você é forte como Colin, não é?
Leona fez uma careta estranha.
Em partes ela concordava com Safira e, agora que estava na adolescência, ela sentia uma extrema vontade de se provar, assim como a companheira. Mesmo que essa vontade vá contra os desejos daquele com quem ela divide a alma.
— Tá! — ela respondeu — Mas se algo sair do controle a gente corre, tá bom?
— Certo!
Esgueirando-se pelo ponto cego, elas foram até a entrada do castelo que não tinha vigias. Mesmo habitado, aquela construção de pedra parecia mais um lugar completamente abandonado.
Entraram por um buraco na lateral do castelo e encontraram um lugar escuro. O lugar estava silencioso, porém, ainda ouviam o sibilar do vento que passava pelas numerosas rachaduras do castelo de pedra.
Dando um passo de cada vez, elas caíram em um corredor com as paredes úmidas e mofadas.
Entre um tijolo e outro escorria um lodo escuro e grudento. Ambas se perguntaram de onde saíram tantos monstros se o que viam eram somente ruínas.
Tap, Tap, Tap!
Elas encostaram na parede ao verem cultistas passarem num corredor a frente carregando tochas. Por ser uma pandoriana, Leona não tinha dificuldade para enxergar no escuro, então guiou Safira para onde os cultistas haviam ido.
Se depararam com outro corredor e, no fundo deste, havia um portal.
— Eles passaram por ali? — sussurrou Safira.
— Provavelmente, o cheiro deles some depois dali. Vamos entrar?
Leona se afastou rapidamente de onde espiava e Safira fez o mesmo. Dois cultistas e um monstro saíram de dentro do portal.
O monstro era um licantropo de quase três metros de altura. Suas patas eram enormes, assim como seus dentes. Ele babava descontroladamente e rosnava feito um animal selvagem.
Parando abruptamente no corredor, o lobisomem farejou o ar duas vezes e isso deixou os cultistas atentos.
Leona e Safira se apressaram para se esconder e entraram no primeiro quarto em ruínas que encontraram.
Safira apressou-se para se esconder perto de um armário todo destruído e Leona ficou no teto, escondida atrás de um enorme lustre no qual ela tomou cuidado para balançar minimamente assim que ela foi para cima dele.
Entrando de mansinho no quarto escuro, o lobisomem farejava enquanto olhava para os dois lados. Os cultistas sacaram suas adagas, dando um passo de cada vez.
Colocando a mão no cabo, Safira desembainhava sua espada lentamente. O lobisomem, estava chegando próxima a ela, mexendo o focinho cada vez mais. Percebendo faltar pouco tempo para ser descoberta, Safira avançou contra o licantropo. Cingiu sua espada acima da cabeça e a desceu com a pretensão de degolar o lobisomem, mas os reflexos do animal eram aguçados.
O licantropo saltou para trás desviando da espada de Safira. Os cultistas levaram um susto, mas não tiveram tempo de reagir.
Aproveitando que os cultistas estavam atônitos, Leona saltou do lustre e caiu atrás deles.
Um deles se virou em uma estocada, mas Leona foi mais rápida, segurou sua mão e torceu o braço de seu oponente.
[Pancada!]
Antes que pudesse gritar, Leona o nocauteou com um soco no queixo de baixo para cima. O cultista quebrou o pescoço assim que bateu a cabeça no teto de pedra.
Crack!
O outro cultista ao lado encarou a pandoriana assustado e Leona o nocauteou arrancando o maxilar de seu oponente com as costas do punho cerrado.
Se esquecendo completamente de Safira, o lobisomem ficou frente a Leona e rosnava em demasia. Os instintos animais de Leona falaram mais alto. Ela ficou de quatro, seus pelos se ouriçaram e ela começou a rosnar como o lobisomem.
Num salto, o lobisomem avançou, segundos depois, ele e Leona estavam atracados em uma briga de cães.
Iam de um lado para o outro naquele quarto pequeno.
Aproveitando uma brecha, Leona se esquivou das garras do lobisomem, apoiou as duas mãos no chão e o chutou no abdômen, fazendo-o transpassar a parede num estrondo e, consequentemente, deixando o castelo todo em alerta.
Aproveitando o momento, Safira deixou o quarto pelo buraco na parede deixado pelo lobisomem e em segundos o corredor antes vazio se encheu de cultistas. Por outro lado, sua companheira resolveu usar o castelo inteiro como ringue, jogando o lobisomem de um lado pro outro sem se preocupar com nada ou ninguém.
Aquele era um confronto entre dois animais selvagens, então os cultistas chegaram a um consenso. Resolveram cuidar de Safira primeiro antes de ajudar o licantropo.
Sem perguntar nada, um deles avançou com sua espada em punhos naquele corredor estreito.
Thing! Crash!
Safira rebateu o golpe que veio de cima para baixo e se recuperou em uma velocidade impressionante, atravessando a garganta do cultista com sua espada.
— I-Impossível! — disse um dos cultistas apontando com as mãos trêmulas. — Vamos morrer!
Safira havia acabado de matar um dos melhores guerreiros de maneira extremamente fácil.
— Não fale bobagens! — outro cultista deu um passo à frente — Aquele idiota atacou com a guarda aberta. Olhem para ela, é só uma garota!
Segurando duas adagas, o cultista avançou rapidamente.
Thing! Thing! Thing!
Ele se movia bem. Depois de defender alguns golpes dele, Safira percebeu que o homem a sua frente era experiente em combate corpo a corpo.
Thing! Thing! Thing!
Pressionando-a, ele se movia para cima e para baixo bem rápido, fazendo Safira recuar alguns passos. Ele não parou, continuou a pressionando, assumindo o protagonismo daquele combate.
Em partes aquilo a deixou irritada, já que se pudesse usar magia o inimigo a sua frente já teria sido morto, mas isso não era um empecilho, não para ela.
Durante seu treinamento com Morgana, Safira passou a se sentir excitada quando enfrentava um inimigo mais poderoso. Ela não conseguiu vencer sua tutora Morgana nenhuma vez, mas aqueles cultistas não estavam nem aos pés de sua tutora.
Os cultistas eram como formigas se comparados aos vampiros, e pensar nisso só a deixava com mais fome de vitória.
Depois de trocar mais alguns golpes com seu oponente, ela recuou um salto.
Atenta ao ambiente, observou as paredes, o buraco, ouvi o som da luta de Leona e olhou por cima dos ombros de seu oponente. Depois de meio segundo conseguiu contar seis cultistas além daquele que enfrentava.
— Está com medo, pirralha? — perguntou o cultista — Você é bem forte para uma garota tão nova, se ajoelhe e implore por sua vida, então talvez eu a deixe sair inteira daqui.
Safira o ignorou, focando nas lâminas de seu oponente. A lâmina feita do dente de um bakurak era algo poderoso, tanto para aplicar magia quanto para destruir outros materiais. Seu oponente parecia não ter percebido o desgaste em suas lâminas depois de tantos golpes contra sua espada.
Depois de esboçar um sorriso, ela deu um passo à frente.
Seu oponente notou a mudança de postura e seu semblante ficou sério. Mesmo que lutasse contra uma garota, ele sentiu um arrepio na espinha.
Algo instintivo dentro dele sinalizou para que ele corresse dali o mais rápido possível, mas ele ignorou esses impulsos. Aprendeu que deve sempre manter a calma em uma batalha como aquela.
Apertando o cabo da espada, ele a esperou avançar e ficou surpreso com a velocidade com que ela o fez. Safira correu tão rápido que o tempo de reação de seu oponente foi quase nulo, mas para sua sorte, Safira não o atacou, apenas passou direto por ele indo em direção a seus companheiros cultistas.
Ele se questionou se aquele tempo de reação era o uso de magia, e se era, como ela conseguia usar magia em um lugar onde a ante magia imperava?
Os outros cultistas fizeram a mesma cara de surpresa ao verem a garota correndo em sua direção. Safira saltou, bateu o pé na parede e degolou dois cultistas.
Vush!
Num giro, cortou o braço e a cabeça de um e, em mais um giro, conseguiu partir um cultista ao meio, terminando seu movimento cravando sua Lâmina na goela de outro.
Tudo aquilo foi rápido demais, assim que o cultista que a enfrentava se virou, viu seus amigos caírem desmembrados. Safira conseguiu fazer o que queria, causar pânico no coração do inimigo.
Aquele homem a encarou e um pânico crescente tomou conta de seu coração. No escuro, ele viu a silhueta de uma garota com chifres esboçando um sorriso.
— Um demônio…
O corredor em que estavam era estreito, onde só restava ao cultista duas simples opções, lutar ou fugir.
Ele se sentiu encurralado.
Apavorado, o homem soou frio e decidiu partir em direção a sua oponente, mas seu medo fez com que sua guarda ficasse toda aberta.
Apertando o cabo de suas adagas, ele deu um berro e partiu para cima de Safira.
[Aaaaaaah!]
Safira apoiou o pé direito na frente, flexionou levemente seus joelhos e ergueu a espada na altura do busto.
— Olhe para você, está cheio de aberturas…
Vush!
Antes de seu oponente atingi-la, Safira o cortou ao meio. O corte, limpo e liso, pegou no lado esquerdo do ombro e varou o lado direito do quadril.
O corpo do cultista deslizou lentamente até cair no chão.
Como se saísse de um transe, Safira olhou o corpo no chão e ficou bastante ofegante. Ela tocou o ventre e respirou forte, sentindo uma sensação em que ela já sentiu outras vezes ao desmembrar ou decapitar alguém.
Ela sentia um fio de energia que começava no meio de suas pernas e passava por todo seu corpo. Aquilo foi forte, bem mais forte que da última vez.
[Estrondo!]
O corpo do licantropo rolou até os pés dela. Leona limpou o sangue das mãos na parede conforme ela se aproximava de Safira. A pandoriana bateu os olhos na companheira levemente corada e ergueu uma das sobrancelhas.
— Tudo bem?
Safira fez que sim com a cabeça e encostou na parede para recuperar o fôlego.
— Tô legal, só preciso de um tempo…
Ela jogou o cabelo para trás, suspirou e abanou o rosto. Sentiu seu corpo bem quente apesar de estar fazendo quase zero graus naquele lugar. Leona olhou para baixo vendo todos aqueles homens mortos.
— Você não pegou leve com eles.
Depois de alguns segundos, Safira deu mais um longo suspiro se recuperando por completo.
— A gente não precisa ter pena, eles não teriam pena de nós.
— Eu sei. — Leona deu dois tapinhas no ombro de Safira — Vamos entrar no portal ou esperar pelo Colin?
Safira foi na frente.
— Vamos entrar, Colin dará um jeito de nos encontrar.
Leona deu de ombros.
— Você quem sabe. Tá tudo bem mesmo?
— Tá, não precisa se preocupar comigo.
Se virando, Safira encarou melhor a amiga. O agasalho de Leona estava cheio de cortes, mas seu corpo estava sem nenhum arranhão. Ela deu de ombros e caminhou até parar frente ao portal.
— Portais são coisas mágicas, não são? — perguntou Safira — Então, por que isso está aqui?
— Existem um punhado de teoria para isso, a mais plausível é que o portal é um lapso, uma distorção da realidade. É como se ele existisse e, ao mesmo tempo, não. Ou, significa que é magia de outro mundo, algo que nem mesmo a ante magia consegue bloquear.
— Hum… Onde aprendeu isso? Nas bibliotecas daquele castelo de vampiros?
— Exatamente.
Safira deu um passo, mas Leona segurou seu pulso.
— Pode ser perigoso avançar. Se o que eu disse estiver correto, isso pode nos levar a um lugar de outra dimensão ou realidade. E eu suspeito que seja…
— Seja o quê?
— O abismo…
Safira engoliu o seco e deu um passo para trás. Aquela informação travou por completo seus impulsos. Uma coisa era se provar em meio a cultistas sem muito talento, a outra, seria entrar em uma fenda que levaria ao lugar mais perigoso dentre todas as realidades conhecidas.
Engolindo o seco, Safira encostou na parede e cruzou os braços.
— Vamos esperar Colin voltar — ela disse — Criaturas de nível superior não devem conseguir passar pelo portal. A gente deve conseguir matar qualquer coisa que sair daí de dentro.
— Certo.
Não muito longe dali, Colin se aproximava. Seus agasalhos eram totalmente negros, deixando-o bem destacado naquela imensidão branca, e era isso que ele queria. Ele não sabia o caminho exato do castelo, então, as coisas que apareciam em seu caminho ele matava, traçando seu caminho até o objetivo.
Mesmo sendo noite, Walorin o observava do pico de uma montanha com a bruxa gélida ao seu lado. Esboçando um sorriso e com a mão na cintura, ele olhou para o lado encarando sua companheira inexpressiva.
— Por que não muda essa cara? Eu disse a você que o errante acharia o caminho.
— Hunf… Ele nem sabe aonde está indo. Deve estar tão perdido quanto você.
Walorin deu de ombros.
— Você confia em mim ou não?
— Tenho escolha?
Walorin abriu um sorriso debochado.
— O que você sabe sobre o vazio? Bledha só disse para irmos atrás dessa coisa, mas não nos disse o que é nem com o que se parece. Só disse que estaria no Norte.
A bruxa apoiou o indicador no queixo e começou a pensar.
— São só boatos, mas vazio é o nome de uma joia, uma joia usada para selar coisas poderosas.
— Demorou todo esse tempo para me falar isso?
— Em vez de ficar dando em cima de mim, você deveria se preocupar em fazer seu dever de casa. Por isso fazer missão com você é um saco.
Apoiando a mão no peito, Walorin fez beicinho.
— Palavras machucam, sabia? Mas me diz aí, já que é a sabichona, me diga com quem estava o vazio antes de ele desaparecer no esquecimento e porque Bledha tem tanta certeza que está no Norte?
Aquela era uma pergunta difícil de responder. Haviam dezenas de especulações, mas tudo apontava para um único ser.
— Provavelmente com Arthur, o Lich Rei.
Aquele era um nome famoso milênios atrás, em uma era onde o Norte cultuava a forma mais pura da magia. A lenda dizia que em uma era onde colossos ainda vagavam a esmo pelo norte, Arthur, o Lich Rei junto a seus servos mais fieis, unificaram todas as tribos do Norte para se proteger da guerra que se intensificava pelo continente.
Diziam que ele era tão forte que pediu aos arquimagos mais poderosos da era para criarem uma pedra capaz de selar parte de seu poder enorme.
A lenda não diz como ele morreu, nem como seu reinado desapareceu. O Norte era sempre cheio de segredos, muitos deles envolvendo o uso da magia. Depois da era de Arthur, Xamãs pregaram agressivamente contra a magia, e com o tempo ela se perdeu. O Norte se isolou do resto do continente e suas tribos viveram de modo cada vez mais tribal, indo para partes bem isoladas do Norte.
“Como vou encontrar uma joia no meio de todo esse gelo?” pensava.
Walorin estava matando o tempo, e seguir Colin era algo que ele estava achando divertido. O caído era insubordinado e deixava a vida o levar.
Para ele não havia com o que se preocupar. Se encontrasse a joia tudo bem, mas se não encontrasse, paciência.
— Nossa… — ele suspirou — a gente tem que achar uma múmia agora? Lichi Rei, “O herói do Norte”, aposto que era só um merda qualquer que apenas teve sorte.
— Se eu fosse você, não desdenharia. Dizem que o fantasma dele ainda vaga pelo norte.
Fantasmas não colocavam medo em Walorin, mas ele ficou preocupado com a segurança da bruxa. Se a lenda fosse verdade, então Lich Rei ainda estava vivo, ou pelo menos o que restou dele.
Mesmo que fosse confiante sobre sua própria força, Walorin não sentia um bom pressentimento desde o início daquela missão. Pensou que seu corpo estava reagindo a Colin, mas provavelmente era outra coisa.
O sorriso que estava sempre em seu rosto se desfez.
— Bruxa, me prometa uma coisa, se as coisas ficarem perigosas você tem que fugir, entendeu?
Ela achou aquele papo estranho, ainda mais pelo ar sério do companheiro.
— O que foi, se assustou com a história de um fantasma?
— Me prometa.
A bruxa assentiu depois de encarar o semblante sério do companheiro.
— Tá, tá, eu prometo. Satisfeito?
— Bem melhor assim hehe. Que tal a gente se aquecer?
Revirando os olhos, a bruxa deu as costas e começou a andar em direção a nevasca.
— Só um beijo, que tal? Tô curioso para saber se sua boca é quente, se for, já dá para imaginar outras coisas hehe.
— Vai se foder, Walorin!
— Uuuu que agressiva, mulheres selvagens são o meu tipo preferido, sabia?
— Da próxima vez você vai fazer missão com Ehocne, ela é agressiva o suficiente para você, seu idiota!
Walorin fingiu colocar o dedo na goela e vomitar.
— Aquela mulher é doida e você sabe que eu só tenho olhos para você, né?
— Sei…
Depois de saber que o vazio era uma joia, Walorin tentava imaginar o que Bledha queria com algo capaz de selar um grande poder. Poderia ser o próprio imperador de Ultan, mas ele não deveria ser alguém tão poderoso a ponto de selarem seu poder em uma joia.
Só havia um ser capaz de fazer Bledha tomar uma decisão dessa.
— Bruxa! — chamou Walorin — Bledha quer matar a gente, né?
Ela olhou por cima dos ombros encarando o companheiro.
— Por que diz isso?
— Aquela doida quer selar Graff, não quer?
Ela assentiu.
— Provavelmente, mas não acho que isso se limita apenas a ele, e sim a toda terceira geração.
Apesar de não achar Graff um perigo iminente, Walorin era cauteloso em relação a ele. Com Bledha tomando uma decisão assim, só poderia significar que ela pretendia agir durante o torneio de guildas, ou talvez depois dele.
— O velho não é idiota — ele disse — Ele também deve estar tramando algo.
— Disso tenho certeza.
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