Relatório:

    Raios de sol iluminaram meu rosto, já era manhã. Comecei a ligar as funções motoras antes de abrir os olhos, recapitulando a situação atual, quando algo encobriu a luz do sol nascente.

    Mais um dia acordando junto ao sol.

    Hoje foi diferente.

    Eu tive uma epifania.

    Preciso contar a Namae.

    Senti algo pressionando o peito. Um peso morno e ritmado, como a respiração de alguém adormecido.

    “Hmn…”

    Abri os olhos, apenas para ver tudo escuro – algo cobria minha visão.

    “Mazouga—”

    “Shhh.”

    Seus fios de cabelo desabaram sob meu peito, ela tapou meus olhos com as mãos. “Mazo—.”

    Eu tive uma epifania, não posso deixar isso para depois.

    “Sshhhh.” 

    “…O que isso significa?”

    “Continue dormindo em silêncio.”

    “Uh?”

    “Se você levantar, eu também vou ter que levantar, então continue dormindo.”

    “Vou me levantar só, você pode continuar na cama.”

    “Ficar sozinha dá medo.”

    Ouch—.

    “De que você tem medo?”

    “Que você esqueça.”

    Eu calei. Ela tirou as mãos do meu e desabou completamente sobre mim voltando a dormir.

    Droga.

    Minha epifania vai esperar.

    Corte
    ―切―
    Corte

    Neste dia, quebrando uma sequência perfeita de setecentos e vinte e três dias, acordei tarde, às dez, pra ser mais preciso.

    Estranhamente, consegui dormir de novo.

    Quando despertei outra vez, encontrei Mazou ainda agarrada em mim.

    Ela continua como quando fomos dormir, praticamente nua.

    Isso é um desperdício, pior, uma falta de respeito. O universo deve desgostar de pessoas justas para me enviar tamanhas provações logo de manhã. A ética reafirmou, ‘ela está inconsciente, seria estupro’. Corrigindo meus pensamentos, voltei ao estado racional, percebi que estava babando.

    Ouça aqui, entidade cósmica, eu tenho sido um bom homem. Não me dê punições vestidas de agrados.

    “Oe, Mazou-san, está tarde.”

    “Mhng… É domingo.” Ela não moveu um músculo, senti sua respiração ao peito a cada sílaba, o corpo de Mazou estava quente.

    “Uma coisa não anula a outra.”

    “Nunca é cedo num domingo.”

    “Mazougaharachou-san, estou com fome.”

    “Eu também.”

    Ruborizei. 

    “Então você quer…” Insinuei.

    “De comida, tarado.”

    Ela se levantou, limpou um filete de baba que escorria e caminhou cambaleante até o banheiro. Seus avantajados quadris rebolavam a cada passo torto.

    A rejeição não doeu. 

    Não dessa vez.

    Eu tenho algo mais importante para fazer.

    Epifania.

    Um momento de revelação, descobrimento, iluminação.

    Devo dizer a Namae imediatamente.

    Isso pode mudar completamente a forma como tratam Mazou.

    Não, a forma como tratam os Onis todos, talvez até mesmo todos os yōkais sejam afetados por esse descobrimento.

    O tipo de descoberta que se provada para pessoas erradas, poderia consumar meu desligamento.

    Aquelas que viram livros e filmes, ou lost medias.

    Uma puta epifania.

    Ergui o corpo para fora da cama, minha consciência pareceu demorar um pouco para se levantar também. Caminhei até o banheiro.

    Quando passei pela porta aberta enxerguei Mazou, estava na privada.

    Fantasmas soltam fluidos? Bom, ela come, come o suficiente para precisar.

    Mas não é nada que eu já não tenha visto.

    Na pia, comecei a escovar os dentes enquanto encarava um rosto avermelhado.

    Rubor. Tenho a sensação de que sempre estou envergonhado pela mera presença de Mazou. 

    “Namaueuchi.” Yup, eu me assustei.

    “Chora.”

    “Por que você está escovando os dentes?”

    “Er… Higiene?”

    “Mas antes do café da manhã?”

    “Sim…?”

    “Isso soa como fazer faxina e logo em seguida arrastar um cadáver por todos os cômodos.”

    “Você faz comparações descabidas.”

    “Sua boca vai ficar fedendo depois do café.”

    “Escovarei novamente, como sempre fiz.”

    “Que desperdício de pasta.” Escutei o som da descarga, ela começou a sair. “Bleh” Antes de sair, ela me ‘deu língua’ pelo reflexo do espelho.

    “Que hábito porco.”

    Pouco tempo depois, estávamos sentados à mesa, enquanto mastigava rápido, percebi algo óbvio que estava ignorando.

    “Mazou-san?”

    “Estou ouvindo.”

    “Você é uma exibicionista?”

    “Não.”

    “Então vista algo!”

    “Namaueuchi, qual o significado de exibicionista para você?”

    “Uma pervertida desfilar praticamente nua em plena vista, isso inclui atentado ao pudor e imputa assédio.”

    “Então está feito, só você está vendo, não creio que vá me denunciar às autoridades.”

    Coloquei a palma na testa, entrelaçando ela com a minha cabeleira ruiva. Irritado. 

    “Tsk—.” Levantei, fui até o armário do quarto e retornei com um haori rosa. “Eu insisto, vista-se.”

    “A carne só cai no prato do vegano.”

    “A carne é uma oferecida mentirosa, que quando está prestes a ser devorada, pula do prato e fala, ‘Era brincadeira! Você deveria ter visto sua cara’.”

    “Então para você, eu sou uma carne pronta para se devorar.”

    “Você me ouviu mal? Disse que você é uma carne demoníaca que brinca com a expectativa alheia.”

    “Oh… Eu ouvi mal.”

    Essa garota…

    “Não importa, vamos sair.”

    “Oh, sério? Pra onde?”

    “Preciso falar com um amigo.”

    “Isso me parece uma desculpa.”

    É os dois, mas você não precisa saber.

    Não agora, talvez seja assustador para você ser, de repente, uma das entidades mais importantes do mundo.

    Um motivo impossível de ignorar para não se extinguirem mais yōkai.

    A explicação de como os yōkai funcionam.

    Apressei Mazou o máximo que pude, mas novamente, ela não é nada ativa pela manhã.

    Quando finalmente a convenci que a saída ia valer a pena, a empurrei até a entrada entre trancos e barrancos, peguei a chave da moto pendurada no canto. E passei por Mazou, abri a porta.

    Eu estou lembrando de tudo?

    Chaves, armas, celular, Mazou.

    Sim, peguei tudo.

    Nheec—.

    Vai ser tudo perfei-

    Oh.

    Ao abrir a porta da minha casa, encontrei uma visita.

    Não a conheço, mas era familiar, com certeza desagradável.

    Meu instinto pediu para fechar a porta.

    Alta, feminina. Um e noventa, maior que eu.

    Cabelos ruivos, longos, um chapéu preto, roupas simples.

    Ela não tinha curvas memoráveis, não, nada de memorável.

    Seus cabelos vermelhos eram de algum tom bem parecido com o meu, tão comuns para mim que os vejo todos os dias no espelho.

    Nada nela deveria chamar atenção.

    Minto.

    Seus olhos.

    Completamente envoltos em algo parecido com uma membrana roxa, como se seus globos oculares fossem bolas de gude violeta, brilhantes.

    Exceto isso…

    Esquecível.

    Esse foi o sentimento que ela me passou. Alguém que não deveria parecer comum, mas que passaria despercebida até numa sala vazia.

    Uma existência que seria facilmente esquecida logo que tirasse meus olhos dela.

    Yōkai.

    Pior.

    Oni.

    Seus olhos violeta com kanjis, um para cada.

    ‘記 憶’1

    “Mazo—”

    Dissonância.

    Turvo.

    Mole.

    Eu pisquei por um segundo, e por esse único segundo, o mundo apagou.

    Corte
    ―切―
    Corte

    Ah…

    Eu quase me esqueci

    Boa noite, para você que é humano.

    Também para você, que é vampiro.

    Ghouls, jiangshis, kitsunes, nekos, yuki-onna.

    Uma noite maravilhosa para qualquer criatura quer ela seja.

    Exceto para…

    “Mazou.”

    “Você se esqueceu do ‘san’.”

    “Não, não esqueci.”

    “Esqueceu sim, você sempre usa.”

    “Por algum motivo, eu não me sinto bem em ser respeitoso com você.”

    “Ora, todo ser merece o devido respeito, isso é me rebaixar para depois de qualquer coisa que possua consciência de individualidade.”

    “De certo me pergunto frequentemente se você a possui.”

    “Ei, isso foi desrespeitoso, não é mais sobre respeito de sobra, é sobre a falta dele. Por favor, se desculpe.”

    “Mazou, você precisa vestir uma roupa imediatamente.”

    “Mas o que é isso, você é meu pai?”

    “Basicamente.”

    “Hung… Recuso.”

    Encarei a fantasma, nua, rolar pela minha cama com um pacote de salgadinhos.

    “Eu já disse, vamos sair, isso não é algo que você pode escolher.”

    “Quem em sã consciência sai de casa às onze horas?”

    “Alguém que trabalha à noite. Preciso que você se vista, você vai me acompanhar hoje.”

    “Hmm, minhas coxas doem, não poderei caminhar mais que cem metros.”

    “Hm? Fantasmas não sentem dor.”

    “Você realmente quer fazer de inimigos todos os fantasmas do mundo?”

    “Isso não interessa, eu posso te carregar.”

    “Oh!”

    De repente, o olhar tedioso se desfez, ela lambeu os dedos e então, levantou com um salto.

    “Como uma noiva?” Enquanto batia as mãos nas coxas para limpar. Era mentira.

    “Se você se apressar…”

    Num instante, Mazou estava vestida.

    Claro, isso não resolve nem metade dos meus problemas.

    Chamado.

    Yōkai desordeiro nas proximidades, oportunidade perfeita para pôr em ação o projeto talismã. Ao menos, foi o que disse Namae.

    Eu discordo. Ah, e como. Isso soa mais como um experimento que uma patrulha.

    Se fosse qualquer outro agente…

    Atravessei o corredor até a sala, Mazou foi para cozinha, buscar mais doces, suponho.

    Senti minhas orelhas levantarem, era o ronco da Kawasaki.

    Ele chegou.

    Vi meu mentor entrar pela porta aberta. Seu cabelo estava lambido de gel para trás. Quando luta, sua franja e cabelos que vão até a base do pescoço sempre atrapalham, então ele passa gel, mas fica parecendo um delinquente velho.

    Macacão preto, luvas e na cintura, um coldre e uma bainha.

    “Aposentou a cargo?”

    “Estava suja.”

    “Você tem dinheiro pra comprar uma para cada dia do ano.”

    “Não tem graça se não for a minha.” Ele sorriu.

    Levantei do sofá, com os cabelos também de gel. Usando uma calça moletom preta e uma regata branca, com a machete na cintura e a soqueira já presa a mão.

    “Chomp chomp—, Namaueuchi, temos visita?” Mazou veio da cozinha, ela estava vestida com um conjunto moletom cinza meu.

    “E-e. Gya—!”

    Instintivamente deu alguns passos para trás.

    “Mazougaharachou, esse é um colega de trabalho.”

    Namae não se apresentou, sequer olhou para ela.

    “Está perto, Namaueuchi.” Me chamou, como se dissesse ‘Vamos’.

    “Si-Hm?” Mazou agarrou a parte detrás da minha blusa. Encarei ela nos olhos, parecia um gato ouriçado.

    Oh, é mesmo.

    Memória muscular talvez?

    Bom, é uma verdade, Mazou não é o fantasma de um humano.

    Ela nunca soube na vida o que é ser humano.

    Onis são a classe de yokai mais ameaçada por um motivo, eles são muito poderosos a depender do que agregam a si, um oni que devora medo deve ser o próprio diabo em pessoa, por isso, caçamos.

    Em vida, ela foi caçada pela firma. Especialmente por…

    “Você está esperando que eu te acompanhe até a sua própria garagem?” Namae voltou, impaciente.

    “Mazou, só me siga e se comporte, tudo bem?”

    “Eu… Acho que sim?”

    “Ótimo.”

    Corte
    ―切―
    Corte

    “Sugoi…! É sua?”2

    Aspirei o ar orgulhoso.

    “Hayabusa. mil e trezentas cilindradas. Motor que já foi banido em pista fechada.” Namae explicou. Ele não interagiu com ela diretamente, mas não se conteve em falar da moto.

    Ninguém seria mais capacitado que ele, foi um presente dele por ter destruído minha velha CB300.

    Azul ciano, adesivos de kanjis estilosos e katakanas que expressam velocidade.

    “Haya… o quê?”

    “Só diz que ela é muito maneira e estamos entendidos.” Falei, já sob a moto, quando lembrei não ter dois capacetes. “Mazou, sobe.”

    Ela, mesmo impressionada, permaneceu acuada. Caminhou até mim devagar e subiu na moto.

    “Namae, pode ir na frente, estarei logo após.” Disse e o vi voltar para sua moto, ao lado dela agachada, a mesma garotinha de cabelos brancos. “Certo, eu preciso que você trave bem as pernas em mim e na moto, permaneça colada e segure no quadril. Você deve manter o rosto atrás das minhas costas, okay?”

    Mazou arqueou a sobrancelha.

    “Você está pensando em malícia de novo.”

    “Apenas faça.”

    Ela não o fez.

    Girei a chave.

    Talvez pela falta de confiança em mim, ou meramente por desconhecer artifícios modernos mais específicos, houve um engano.

    Não meu, dela. Geralmente, ao subir numa moto, a onomatopeia esperada é ‘vrum-vrum’.

    Para a surpresa de Mazou, o ronco do estoura-tímpanos – vulgo motor, soou muito mais como…

    Brum—!RRRROOOOOOONNNNNN!

    Automaticamente suas mãos envolveram minha cintura com medo, ela nunca esteve tão fixa em algo em toda sua vida. 

    Sorri, seguimos viagem.

    Corte
    ―切―
    Corte

    Aliás. 

    Lembra quando disse, boa noite para você, vampiro?

    Eu mudei de ideia.

    Vampiros são, geralmente associados à aristocratas, elite. 

    Ah sim, e principalmente, educados, cordiais.

    Civilizados.

    Então que maldição é essa em minha frente?

    “Tipo, você entende né? Essa é a hora do ‘Kyaa!’ e aí eu faço ‘Capu…chuu—’, ne, ne?”

    Gyaru. Kogal gyaru.3

    Desrespeito. 

    Um descaso, não só com os bons modos, ou com a ética moral japonesa.

    “Ei, juro não foi por querer, é que tipo, meu dente escorregou no pescoço dele, saca’?”

    É um descaso com todos os vampiros que já existiram.

    Eu nunca havia visto um vampiro.

    Só histórias, lendas do meu mentor ou de outros agentes que diziam já ter encontrado.

    Imponentes.

    Grandiosos.

    Elegantes.

    A sabedoria de setecentos anos, num corpo de quarenta.

    Mas… Que diabos poderia ser isso? 

    “Ei, porra! Você só vai ficar me encarando como um estúpido? Faça algo, idiota, burro, babaca, palerm-!”

    Tap—!

    “Você me bateu…? Você deu um tapa na boca de Suzamine Carnivor Von Zinfandel!?”

    “Você não tem idade para chamar palavrões, pirralha.” Segurei ela pela algema no pulso, como um saco de lixo. “E por que diabos o seu nome de nobre é só um vinho aleatório?”

    “Pirralha? Tenho duzentos anos, saco’? Duzentos e trinta e sete!” Ela ergueu dois dedos, apontando as mãos com orgulho. 

    “Me surpreende você saber contar a partir dos duzentos, mas a cara de criança não te permite falar esse tipo de coisa.”

    Por uma ironia porca do destino, acabei separado do grupo.

    Sozinho, com essa ofensa ao conde drácula em forma de loli dentuça.

    Ei entidade cósmica, acho que já rompemos essa barreira, você me odeia?

    ***

    1. Kioku (記憶): Memória ↩︎
    2. Sugoi é “Incrível.” ↩︎
    3. Kogal gyaru é um estilo de vestimenta rebelde, popular entre adolescentes colegiais japonesas. ↩︎

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