Capítulo 6, Oyasumi, Mazo.
—Desejo—
―欲望―
—Desejo—
“Tadaima.”1
Anunciei. Já era noite.
A filial de Sapporo não é tão distante, não de moto. Mas já era noite. Os sábados passam rápido, mas a sensação de perdê-lo por causa do trabalho é pior ainda.
A casa transbordava silêncio.
Eu não tinha pensado muito sobre isso quando abri a porta, o cumprimento foi meramente reflexo, mas ainda assim, agora há alguém para responder. Desde a minha infância, da época que morei com minha mãe, eu nunca tive quem ouvisse, então nunca mais disse.
Me senti ansioso, confesso.
Mas não veio.
O ‘Okaeri’2 que esperei — pela primeira vez em muito tempo —, nunca veio.
Meu ar caiu. Era uma das palavras especiais.
Minha mãe nunca foi a maior conhecedora da linguagem. Estava bem mais próxima da menor, na verdade. Ela me ensinou poucas palavras, as poucas que sabia. “Tadaima” e “Okaerinasai” eram duas delas.
Foi um desperdício usá-la.
Tinha cheiro de comida caseira no ar, um aroma de tempero.
“Mazou-san?” Tirei as sandálias enquanto vasculhava a sala com os olhos.
Parecia intocada, como sempre foi.
Um sofá azul, um kotatsu3 e uma estante com uma TV grande, somente. Não era algo que merecesse tanta atenção, Mazou não deve nem ter se interessado pela sala.
Fui até a cozinha. Nada. A mesma mesa de madeira, com as mesmas quatro cadeiras, o mesmo balcão de pia, como sempre foi.
A comida nas panelas ainda estava quente, o fogo deve ter sido desligado recentemente.
“Mazougarachou-san?”
Nada, nenhuma resposta.
Ela guardou vários doces no armário, mas também não mexeu muito nesse cômodo.
Fui até o quarto, passando banheiro, ela não estava em nenhum desses locais, todos como sempre estiveram. Ela saiu?
Como? Não, por quê? Minha mente nublou.
Se a comida está quente ela está perto.
Perto.
Mercado? Ela não sabe o caminho.
Gelei, não consegui pensar em nenhuma outra possibilidade.
Talvez aquele desejo de desaparecimento? Mas faz tanto tempo.
Meus ombros pesaram, eu sentei no chão. Existem momentos onde se perde o objetivo e propósito, geralmente quando se está sozinho por um tempo. Dias em que o dia de amanhã parece fútil. Eu estive nessa época. Mazou foi uma novidade que me fez esquecer um pouco essas coisas, mesmo que eu não a agradeça por isso.
Eu me perguntei por um momento se deveria sentir sua falta, nunca tive dificuldade real em dispensar pessoas, todos os cavaleiros brancos.Minha dúvida não é se devo ou não sentir falta, mas se mereço ou não.
Mazoku. Mazou. Mazo…
Teria sido melhor assim.
“Mazou…” Sussurrei, como uma ideia prestes a escapar. Uma despedida…?
“Sim?” Ouvi, senti o hálito quente coçar na orelha.
Wup—, eu instintivamente dei um pulo, estava atrás de mim, na ponta dos pés e agachada de cócoras.
Quando notei, minha mão estava prestes a puxar a machete, mesmo que a própria nem estivesse na minha cintura.
“De onde você…” Inquiri, com os olhos semicerrados, ainda em postura defensiva.
“Estava atrás da porta.”
Eh?
“Por que!?”
“Pra te assustar.”
Hah…
“… Palhaça.” Ela sorriu de travessa. Bateu a ponta dos indicadores repetidamente como uma criança que admite seu erro, mas não se arrepende. “Bleh” Dei um peteleco na testa dela, que comicamente quase caiu para trás.
Caminhei para a cozinha, ela veio me seguindo com um sorrisinho. Meus batimentos se estabilizaram, o mundo voltou a correr normal, eu fiquei um pouco ansioso.
Huh, às vezes me falta honestidade.
Eu realmente estive no momento estóico da vida. Pra mim talvez seja pior, eu não sou dos mais emocionais, lidar com esse tipo de coisa me faz ser desonesto comigo.
Eu estava muito ansioso.
“Você demorou.” Resmungou parando atrás de mim.
“Sim, demorei.” Peguei as sacolas que trouxe, e ergui uma delas. “To, é seu.”
“Um presente?” O pequeno movimento das sobrancelhas fez ela parecer surpresa, mais expressiva que ontem.
“Sim, um bem caro.”
Sua expressão fechou.
“Detesto presentes caros.”
“Por…?”
“Quanto mais caro, maior a sensação de dívida.”
É tão estranho ver a Mazou fazer sentido que me surpreendo às vezes, mas em meio às lógicas distorcidas, filosofias baratas e mau caratismo, ela parece bem racional de vez em quando.
Eu ri.
“Assim sendo, você me deve a partir de cada fio de cabelo até a sola dos pés.” Voltei para as minhas próprias sacolas. Mesmo que ainda observando-a para pegar sua reação.
“Tão caro?” Ela enfiou a mão na sacola. “Haori? Por que tantos assim?”
“Não gostou deles?”
“Eu já tenho um.”
“…”
Só aceite quieta… Inferno.
“Esses são diferentes.”
“Você pegou no trabalho?”
“Sim, eles são especiais pra você.”
“Eu não gostei.” Encarei, ela olhou cada um, comparou cores e estampas, e então se virou indo para o corredor.
“Ainda tento…” Suspirei.
Bom, ela levou as roupas, ao menos.
Me servi, comi sem interrupções.
Não tinha coca-cola, ela bebeu tudo.
Ela também não fez nenhum som durante a minha refeição, nem voltou do corredor. Eu me senti sozinho por um tempo.
Por algum motivo, Mazou parece mais distante, mais sóbria.
Talvez pelo acontecimento de hoje cedo? Mesmo que ela não tenha tratado como grande coisa. Ela só saiu por cima, eu que deveria ficar irritado.
Fisgado.
Eu desejei, assim como ontem. Quando ela se alimentou.
As coisas começaram a fazer sentido na minha cabeça. Ela tinha ‘comido ontem pela última vez’, quando eu a desejei.
Mazougaharachou.
Um Oni4 que come desejo.
Não, A Oni que come desejo.
Meu mentor me disse uma vez, ‘Onis são poderosos, mais até que os demônios ocidentais. Sabe por quê?’
Eles são singulares.
São existências únicas.
Não existem dois Onis que se alimentem de Desejos, talvez numa interpretação diferente da palavra sim, mas em essência, Mazou é singular.
Só existe um Oni que se alimenta de mentiras, só um de memórias, só um de sonhos e assim por diante.
Entidades atreladas a conceitos. De maneira que, nunca podem morrer definitivamente, não de maneira física. Você só mata a entidade que vive do conceito, se você mata o conceito. Isso é tudo que sabemos sobre eles.
Tão imponentes quanto misteriosos.
É por isso que Mazou é fantasma. Não alma, nem espectro.
Ela descreveu como ‘insatisfação flutuante’, mas eu chamaria os fantasmas de memórias.
Ela não está realmente morta, mas o conceito dela foi enfraquecido o suficiente para que estivesse praticamente morta.
Ela é uma consciência perdida. Uma insatisfação flutuante. Ela é uma memória de um conceito surrado. Isso é, desde o ‘Dia Passado’.
Huh, é um bom nome.
É difícil ser duro com ela, olhando por esse ângulo. A pressão de existir, mas poder deixar de existir de repente a torna uma fantasma.
A R/E é uma associação carniceira, confesso, mas eles não brincam em serviço. Imagine enfraquecer o sentimento de desejo a nível global meramente para derrotar uma entidade?
Assustador.
Eu temo.
Um dia, há de existir um mundo sem lugar para yōkais. Um mundo que não se importou em matar até mesmo a humanidade pela causa.
Os fins justificam os meios? Heh, desculpa de carniceiro.
Mas espero não estar lá quando ocorrer.
E enquanto estiver, irei adiar ao máximo essa possibilidade.
Eu não concordo com o projeto talismã, qualquer cláusula que vá de encontro com os meus princípios será contornada até o último instante.
Mas.
É um caminho para adiar. Mantenha seus inimigos próximos, eu preciso saber qual será o próximo passo do supremo, sabe? Segurar um pouco o mundo que ainda aceita yōkais, onde exista um boa noite para eles.
Por isso, mesmo que eu não goste de você, Mazou, ainda vou tentar te dar a vida digna, a que todo ser vivo merece.
A vida que minha mãe não pode ter.
Oh, eu divaguei. Já está tarde.
O silêncio dela me acompanhou até a última garfada. Quando terminei, Mazou ainda não havia saído do corredor. Coloquei tudo na lava-louça e caminhei até o quarto para dormir, foi um dia cheio.
Abri a porta, Mazougaharachou estava apenas com uma cueca elástica — desnuda da cintura para cima, se trocando, ela estava experimentando as roupas novas.
“O preto ficou apertado.” Disse, cética.
Como se dissesse que nuvens são vapor condensado, ou que a melhor classe de Dragons Dogma é o assassin.
Como se respondesse naturalmente um ‘okaeri’ depois de um ‘tadaima’.
Eu ainda não superei esse.
“São todos do mesmo tamanho.” Desabei na cama, arrastei o rosto até o travesseiro.
“Você vai dormir sujo?” Uma frase irônica.
“Até a água esquentar, já dormi.” Eu resmunguei.
“Eu esquentei água para você tomar banho.”
Virei a cara para a garota, ela fazia sua mão percorrer pelas bordas do obi até chegar na ponta, puxou e laçou. Depois jogou para trás num movimento perfeito, fez um grande laço que ficou em suas costas e então se virou para mim.
Com um haori preto e um obi laranja.
Parecia uma borboleta monarca.
Como num passe de mágica, todas as preocupações se tornaram supérfluas, simplórias. Como se num simples desejar, o fardo ficasse mais leve.
As vezes ela faz valer a pena.
“Você está encarando demais, o que foi?”
“Mazou, você é dez.”
“Haha…” Ela sorriu, franca. “Onze.”
—Corte—
―切―
—Corte—
Na hora de dormir, Mazou deitou despida.
“Ei, vista uma maldita roupa.” Eu disse, ela fez que nada ouviu. “Ou eu não me responsabilizo pelas minhas próximas ações.” Ameacei.
“O meu haori está sujo.” Retrucou vazia.
“Você ganhou outros nove.”
“Não quero sujar elas em casa.”
“…?”
Oh, ela gostou deles?
Me senti mais carinhoso repentinamente.
Tirei a minha camisa e entreguei para ela usar.
Ela pegou, analisou por alguns segundos e então jogou no chão.
“O que está fazendo?”
“Foi uma boa ideia sua, assim ficamos iguais.”
Ela disse deitando-se e se cobriu com o lençol.
“Fantasma estúpido.”
“Eu ficaria ofendida, se fosse um fantasma.”
“…”
Essa garota…
“Namaueuchi.”
“Chora.”
“Boa noite.”
Heh.
Oyasumi.5
Uma das palavras especiais.
“Oyasumi, Mazou-san.”
Sim.
Boa noite para você, que é Fantasma.
***
[CONFIDENCIAL — R/E — CONFIDENCIAL]
IDENTIFICAÇÃO DE ENTIDADE— .

Nome: Mazougaharachou Omeniuxalia
Número do Registro: TLM-001
Alcunha: Mazou
Classificação Paranormal: Fantasma. (Classe-Espiritual, Oni).
Nível de ameaça: ◆◆◈◇ (Moderado/Alto).
Agente Responsável: NNGY
Status: Em estado de observação e teste.
Número de integração: 003
Observações: Cicatriz de corte no tronco, empalamento. Personalidade errática.
[CONFIDENCIAL — R/E — CONFIDENCIAL]
- Tadaima – Soa como “Estou em casa” ou “Cheguei”, está na língua mãe do personagem por contexto na história.[↩]
- Okaeri – É resposta direta, soa como “Seja bem vindo de volta”.[↩]
- Kotatsu – É uma mesa aquecida e com um cobertor grosso.[↩]
- Oni – Pode ser traduzido como demônio, diabo ou ogro.[↩]
- Oyasumi – Significa “boa noite”. É uma forma educada e casual de se despedir de alguém antes de dormir.[↩]
Notas do autor:
O primeiro capítulo, tome.
Eu gostaria de dizer que a parte mais divertida era estilizar, mas era escrever os diálogos.
Não tenho tanto para me estender, me arrependo de entregar muita lore e infodumpy no primeiro arco, mas sinto que foi melhor assim.
Além que, ainda há um caminhão de lore para mais infodumpy futuro, se preparem =].
Eu fico devendo a arte da ‘Mazo-Borboleta-Monarca’, podem cobrar.
O próximo foi excessivamente divertido de escrever, eu até fiz mais piadas que necessário.
Bom, essa é a apresentação, cheia de conversas circulares inúteis (e algumas importantes), com piadas desde bobas às desconfortáveis; bem vindo à YoTO.
Yokubou Wo Taberu Oni, Estilizado fica Yokubō o Taberu Oni.
Ou para nós meros mortais, a Oni que come desejos.
Pode e deve haver erros, caso encontre, eu ficarei extremamente feliz em corrigir.
Até a próxima, com o novo anexo: Vampiro.
Apresentando uma vampira digna de ofender até a Shinobu.
Boa noite.
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