A luz do amanhecer filtrava-se através das cortinas finas da janela do quarto na Hospedaria das Névoas Eternas, tingindo o ar com um tom suave de azul pálido.

    Lin Tianyu acordou devagar, olhos se abrindo para o teto entalhado com padrões de nuvens e rios, a visão ao acordar era um luxo que ainda o deixava encantado.

    O colchão macio de seda era um contraste gritante com sua cama dura no vale ou das noites que passou ao relento na estrada, mas o conforto não aliviava o peso em seu peito.

    Ele se sentou na cama, tocando instintivamente o colar de jade que pendia contra sua pele, um hábito que o ancorava como um lembrete silencioso a vingança que o impulsionava.

    Seus olhos, agora capazes de captar as nuances do mundo, varreram o quarto amplo: a banheira de cobre reluzente, a mesa baixa com uma jarra de água fresca, e a vista para o rio que serpenteava pela cidade, suas águas refletindo o céu matinal.

    Tianyu se levantou, vestindo as roupas novas que Mo Liang lhe deu: a túnica azul escura caía perfeitamente em seu corpo magro, mas ainda esguio pelo trabalho nos campos, e as botas confortáveis de couro amorteciam seus passos. As roupas limpas o faziam sentir-se mais humano, menos como um fugitivo.

    A hospedaria despertava aos poucos. Pelo jardim abaixo da janela, ouvia-se o canto melodioso de pássaros, misturado ao som distante de água correndo em um riacho ornamental. O ar cheirava a chá fresco e flores úmidas pela névoa matinal, um perfume que lembrava vagamente o Vale das Flores.

    Mas sua mente estava longe dali, Enquanto lavava o rosto em uma bacia de água morna, seus pensamentos voltaram à luta na estrada. Aqueles homens haviam avançado com espadas em punho, e algo dentro dele havia respondido — um fluxo instintivo de energia que ele não compreendia.

    “O que foi aquilo?” pensou Tianyu, fechando os olhos para reviver o momento.

    Ele se lembrou do primeiro bandido, o magro com dentes podres, atacando com um golpe descendente. Seu corpo se moveu sozinho, esquivando-se com uma agilidade que não era natural para ele. Então o soco que ele deu ao revidar, a sensação dos ossos cedendo como madeira seca. Lembrou do segundo homem, que o atacou com uma adaga, mas a lâmina mal arranhou sua pele.

    Mas Tianyu sabia que sua vitória ter sido tão fácil foi apenas por que ele estava contra mortais comuns. Contra reais cultivadores, como aqueles da Seita da Garra Flamejante que destruíram seu vale, ele seria esmagado. Não tinha técnicas, apenas um poder bruto vindo do cultivo, poder que mal controlava.

    Curioso e frustrado, Tianyu tentou recriar aquela sensação. Sentou-se na cama, respirando profundamente, guiado pelo instinto que o cultivo trouxe.

    Ele se lembrava vividamente do momento: o estresse do ataque, o corpo movendo-se sozinho, como se uma força interna o guiasse. O Qi havia circulado por instinto, um rio quente fluindo pelos meridianos, fortalecendo seus músculos e ossos.

    Fechou os olhos respirando fundo e tentou recriar aquela sensação. Ele focou na energia dentro de si e lentamente, um calor sutil surgiu no seu dantian, logo abaixo do umbigo — um ponto que ele nem sabia nomear.

    Lentamente, o Qi começou a circular — um calor morno que subia pelos meridianos como um rio tímido, espalhando-se pelos braços e pernas. Era sutil, revigorante, fazendo seus músculos se tensionarem com uma força latente.

    “É isso… o poder dos cultivadores” pensou, abrindo os olhos com um sorriso breve. Pela primeira vez desde o despertar, ele sentia controle, mesmo que mínimo.

    Mas o calor se intensificou de repente, tornando-se uma dor aguda, como agulhas perfurando suas veias internas. Tianyu arquejou, o peito apertando, e uma onda de náusea o invadiu.

    Ele caiu para frente, vomitando um pouco de sangue escuro no chão de madeira polida, não muito, mas o suficiente para deixá-lo ofegante e assustado.

    “O que… o que aconteceu?”

    Seu corpo tremia, suas veias latejando como se estivessem prestes a rasgar. As palavras de Mo Liang ecoaram em sua mente: “Sem orientação de um mestre, você pode danificar seus meridianos…”

    Ele limpou a boca com as costas da mão, o gosto metálico de sangue preenchendo sua boca. Aquilo foi um erro — um lembrete cruel de sua vulnerabilidade.

    Ele tinha o poder bruto de um cultivador no Refinamento Mortal intermediário de acordo com Lin Zhan, que ele nem sabia o que isso significava. Sem conhecimento, era como se ele tivesse uma espada sem fio: perigosa para si mesmo. Contra cultivadores treinados, seria massacrado.

    Frustração o invadiu, misturada a uma raiva surda. “Eu tenho esse poder dentro de mim, mas não sei usá-lo. Como vou vingar minha família assim?”

    Ele se levantou devagar, as pernas trêmulas, e decidiu não tentar novamente. Precisava de orientação — e logo.

    O som de pássaros cantando no jardim frontal da hospedaria o trouxe de volta ao presente. Ele limpou o sangue no chão com um pano da mesa e desceu as escadas para o saguão, onde o cheiro de chá recém-preparado e pães assando enchia o ar.

    O saguão era amplo, com mesas baixas de madeira entalhada e clientes discutindo animadamente sobre o exame de entrada da Seita do Rio Celestial.

    — Ouvi que este ano há mais candidatos do que nunca. — disse um homem de barba longa a seu companheiro. — A seita está em busca de novos talentos para se fortalecer.

    — Infelizmente quase todos vão falhar. Como sempre a maioria dos candidatos serão apenas jovens de vilas remotas tentando a sorte. — O outro respondeu, rindo.

    Um funcionário jovem, de uns vinte anos, com um uniforme verde impecável e um sorriso cortês, aproximou-se de Tianyu.

    — Bom dia, senhor. Gostaria de café da manhã? Temos mingau de arroz com ervas frescas, ovos cozidos e chá de folhas de jade que revigoram o espírito.

    — Sim, por favor. Algo simples. — Tianyu assentiu, grato pela hospitalidade.

    Ele se sentou em uma mesa no canto, perto de uma janela com vista para o jardim, onde pássaros bicavam sementes em fontes ornamentais.

    O funcionário — que se apresentou como Xiao Fan — serviu a comida em uma bandeja de bambu. Tianyu comeu devagar, saboreando os sabores novos: o mingau cremoso com toques de ervas amargas, os ovos quentes e o chá que aquecia seu estômago, aliviando um pouco a dor residual nos meridianos.

    Xiao Fan, notando o ar pensativo de Tianyu, puxou conversa casualmente.

    — Primeira vez na cidade, senhor?

    — Sim, primeira vez. — respondeu Tianyu, enquanto saboreava o chá.

    — A Hospedaria das Névoas é um dos melhores lugares para descansar antes do exame da seita. Muitos candidatos ficam aqui. A vida na Cidade do Jade Brumoso é agitada, mas pacifica graças a proteção da Seita do Rio Celestial, então o senhor pode ficar tranquilo quanto a segurança, contanto que não ofenda as pessoas erradas, claro.

    — Ofender as pessoas erradas? — Tianyu perguntou intrigado.

    Xiao Fan assentiu, baixando a voz como se compartilhasse um segredo.

    — Sim senhor, principalmente pessoas da família Zhang, eles são uma família influente com um de seus jovens mestres pertencentes a Seita da Nuvem Errante, uma seita que fica mais ao norte. Mas eles usam sua posição para intimidar aqueles que os ofendem, então é bom tomar cuidado com eles. Claro, ao menos que os ofendam eles não causam problemas abertamente, pois a Família Mei costuma os manter em xeque.

    Tianyu ergueu as sobrancelhas ao ouvir sobre a Família Mei. A caixa ornamentada que Mo Liang carregava e ele notou emanar um pouco Qi era uma entrega para essa família Mei.

    — Família Mei? São importantes? — perguntou.

    — Claro! Eles são muito influentes por aqui. O patriarca Mei Feng é um homem muito astuto, mas justo. Ele negocia pedras espirituais, o que o fez criar alguns laços com a seita do Rio Celestial. A filha dele, Mei Lian, é um prodígio e uma beldade, mas infelizmente existem rumores que ela sofre de uma doença rara. Ainda assim, há boatos que ela está treinando para o exame. Se ela conseguir entrar na seita, a família Mei ascenderá ainda mais, então rivais como a Família Zhang estão nervosos.

    Tianyu ouviu em silêncio, absorvendo os detalhes. A conversa o distraiu de sua frustração, mas também o lembrou de sua própria jornada: famílias, rivais, seitas — o mundo era um tabuleiro de intrigas, e ele ainda era um simples peão sem movimentos aprendidos.

    Após o café, agradeceu a Xiao Fan e saiu para as ruas, precisando de ar fresco para clarear a mente.


    Enquanto isso, a algumas quadras dali, Mo Liang dirigia uma carroça luxuosa escoltada por novos guardas em direção à mansão da Família Mei, no coração do Distrito Residencial nobre.

    O sol da manhã banhava as ruas com uma luz dourada, mas o mercador estava sério, a caixa de madeira ornamentada segura em seu colo. Dentro dela, uma Flor da Névoa Eterna repousava em um leito de musgo úmido. Era uma erva espiritual rara, com pétalas azuladas translúcidas que emitiam um Qi suave e calmante, como uma brisa etérea.

    A mansão da Família Mei era um complexo imponente, cercado por muralhas altas de pedra branca com veios de jade, jardins meticulosamente cuidados cheios de ervas medicinais e um portão guardado por homens armados com lanças polidas.

    — Mercador Mo, o patriarca o espera. — disse um deles, abrindo os portões.

    Mo Liang foi escoltado por corredores pavimentados com azulejos azuis, passando por pavilhões onde servos preparavam chás medicinais e levado diretamente ao salão principal por um mordomo.

    O patriarca Mei Feng, um homem de cinquenta anos com barba grisalha bem cuidada e olhos afiados, recebeu-o no salão principal, decorado com tapeçarias de rios e montanhas. Apesar de mortal, Mei Feng comandava respeito. Sua família havia prosperado negociando pedras espirituais, ganhando favores da seita em troca de lealdade.

    Ao seu lado, havia uma jovem de 17 anos. Mei Lian, sua filha, era uma visão de beleza delicada: cabelos negros longos caindo como uma cascata, pele pálida como porcelana e sob olhos violeta penetrantes que brilhavam com determinação. Havia uma aura de Qi ao seu redor, ela estava no Refinamento Corporal inicial. Ela era talentosa — o suficiente para atrair inveja.

    — Mo Liang, você chegou! Graças aos céus! Tememos pelo pior após o atraso. — disse Mei Feng, levantando-se de sua cadeira entalhada.

    — Patriarca Feng, a Flor da Névoa Eterna está intacta. Mas houve um ataque no caminho. Bandidos estavam atrás dela especificamente. Perdi bons homens na emboscada.

    — Isso… certamente foram enviados pela Família Zhang! — rugiu Mei Feng, claramente irritado. — Eles temem nossa ascensão. Se Lian’er entrar na seita, ganharemos influência. Zhang Wei quer impedir isso.

    Mo Liang se aproximou e alcançou a caixa para Mei Feng, que a abriu com todo cuidado do mundo, revelando a erva: pétalas azuladas translúcidas, pulsando com Qi suave como névoa viva.

    — Magnífica! Lian’er, venha ver!

    Mei Lian aproximou-se, olhando a flor apertando suas mãos fechadas ao lado do corpo, tremendo de esperança.

    Desde criança, sofria de uma condição rara. “Névoa Venenosa Interna” como os médicos chamaram. Dores intermitentes e fraqueza bloqueavam seu Qi em noites ruins, como se veneno corresse por seus meridianos.

    Ainda assim, muito talentosa e obstinada, ela havia alcançado o Refinamento Corporal sozinha, agora o exame da seita era sua chance de avançar no cultivo e tentar curar sua doença.

    — Patriarca, como você sabe, ela apenas estabilizará os sintomas da jovem dama. Controlará as dores e a fraqueza, permitindo que ela use seu Qi sem interrupções por alguns meses. Mas lembre-se, é paliativo, uma cura total exigiria tesouros muito mais raros.

    — Obrigada, mercador Mo. Isso já é o suficiente para me dar forças para o teste. — quem respondeu ela foi Mei Lian, com sua voz suave e um sorriso fraco iluminando seu rosto.

    — Você é nossa luz, Lian’er. Com isso, você brilhará no exame. — Mei Feng assentiu, tocando o ombro da filha com afeto paternal.

    Mei Feng chamou alguns servos e mandou levarem a flor para os médicos da família enquanto sua filha ia para o salão medicinal se preparar.

    Já sozinho na sala com Mo Liang, ele o entregou uma bolsa pesada de pedras espirituais — cristais translúcidos pulsando com energia pura — e um contrato assinado de aliança comercial exclusiva para ervas raras.

    —  Sua lealdade é recompensada, comerciante Mo. A partir de hoje sua loja está sob os cuidados da Família Mei, indicarei os melhores guardas da nossa família para o acompanhar em suas próximas caravana por segurança.

    Mo Liang aceitou as recompensas com gratidão, mas alertou:

    — Agradeço imensamente, patriarca. Mas não esqueça, rivais como os Zhang jogam sujo, não esqueça que eles também têm seu jovem mestre como discípulo de uma seita.

    — Não se preocupe, estamos cientes dos truques sujos da Família Zhang, temos feito muitos preparativos para segurança de Lian’er até ela estar segura na seita.

    A conversa deles se estendeu por um tempo, com Mei Feng e Mo Liang compartilhando preocupações sobre intrigas na cidade.

    Mais tarde, Mo Liang saiu da mansão, agora mais rico e com uma nova aliança, mas com o peso de segredos, prometendo discrição.


    De volta às ruas, Tianyu caminhava devagar pelo Bairro dos Mercadores, o sol agora alto dissipando parte da névoa.

    As ruas pulsavam com vida: vendedores gritando preços de frutas exóticas, artesãos martelando metal em forjas abertas, e crianças correndo entre carroças carregadas de tecidos coloridos.

    Ele observava tudo mas sua mente ainda girava com a tentativa falha de cultivar. “Preciso de conhecimento sobre cultivo…”

    Entrou em um restaurante modesto perto do rio, um lugar com mesas de madeira ao ar livre e o aroma de sopas fervendo. Sentou-se em uma mesa isolada, pedindo um chá quente.

    Ao lado, dois homens em túnicas azuis — discípulos da Seita do Rio Celestial, identificáveis pelos emblemas de ondas em seus peitos — conversavam em voz baixa, mas audível para os ouvidos aguçados de Tianyu.

    — Ouvi de um Elder que há boatos de cultivadores de uma seita herética envolvidos na destruição de algumas vilas mortais nas montanhas — disse o primeiro, um jovem de barba rala. —  Vilas inteiras queimadas, muitos mortais mortos. O mestre da seita pediu para investigarem. Realmente repudiável!

    O segundo assentiu, soprando o vapor de sua sopa.

    — Sim, os rumores apontam que parece ter sido trabalho de cultivadores. Se for verdade, haverá alguma punição. As seita ortodoxas não toleram isso, mesmo as seitas de alto escalão nos nove reinos podem se envolver se descobrirem algo.

    Tianyu congelou, a colher parando a meio caminho da boca. Aqueles boatos… eram sobre aqueles que destruíram sua casa.

    As chamas, o sangue, os gritos de Xue e seus pais — tudo voltou em uma onda de lembranças dolorosas. Raiva queimou em seu peito, o Qi instintivo querendo circular novamente, mas ele conteve, lembrando da dor recente.

    “Eles… estão falando da minha vila. E parece que ela não foi a única” pensou, o coração acelerando. Aqueles monstros, enviados pelo Dragão Carmesim, haviam reduzido seu vale a cinzas.

    As seitas ortodoxas pareciam estar investigando os ataques, e graças a Lin Zhan ele sabia quem foram os responsáveis. Mas ele não podia falar nada, não podia chamar atenção nem explicar que estavam atrás de seu sangue.

    Lembranças dolorosas o assaltaram: o corpo decapitado de Xue, os pais queimados, o fogo devorando tudo. Lágrimas ameaçaram seus olhos, mas ele as conteve, respirando fundo. “Eles vão pagar” pensou para si, apertando o punho sob a mesa.

    Mas a conversa desses discípulos o fez ter certeza que a Seita do Rio Celestial não estava em conluio com a seita da Garra Flamejante.

    Uma porta pareceu se abrir para ele, para conseguir poder real. Se essa seita era realmente justa e estava investigando os crimes que o destruíram, entrar ali poderia ser um caminho seguro para o fortalecer, conseguir técnicas e conhecimento para vingar-se sem se autodestruir.

    “É o caminho” decidiu, o coração resoluto. Participaria do exame que todos estavam falando. Por poder, por sua vingança.

    Determinado, Tianyu terminou seu chá e saiu, o sol do meio-dia agora aquecendo sua pele. Caminhou pelas ruas movimentadas, passando por mercados onde mercadores barganhavam pedras espirituais — itens que ele agora sabia serem cruciais para cultivo, mas inacessíveis sem recursos.

    Ele observou um grupo de jovens praticando algumas posturas básicas perto da prefeitura, pareciam aspirantes ao exame.

    “Esse é o caminho” pensou para si mesmo. Ele usaria essa oportunidade. Ali, aprenderia a controlar seu Qi, a lutar de verdade, e um dia, destruiria seus inimigos.

    A cidade zumbia ao seu redor, alheia às tormentas internas de Tianyu, mas para ele, era o início de uma nova fase — o primeiro passo real rumo a um poder que um dia desafiaria os céus.

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