Capítulo 3 - O Rio que Parou
Um novo dia amanheceu sobre o Vale das Flores, o sol erguendo-se acima das montanhas. O ar era fresco, carregado do cheiro doce das flores e da promessa silenciosa de mais um ciclo simples se repetindo na vila. O riacho ao longe murmurava sua canção eterna, e o vento descia das encostas como um sussurro que parecia vivo, como se carregasse histórias que ninguém na vila jamais ouviria.
Lin Tianyu acordou com o som da madeira rangendo sob os pés de sua mãe, Lin Mei, que já estava de pé, mexendo em algo dentro da casa. Ele se sentou na esteira de palha que servia de cama, os dedos roçando a textura áspera enquanto inclinava a cabeça para ouvir o mundo despertar.
O canto de um pássaro ao longe, agudo e claro, e o som abafado das vozes dos moradores começava a subir entre as casas.
Tianyu respirou fundo, sentindo o ar fresco que entrava pela janela aberta, e deixou que esses sons o guiasse enquanto se levantava.
Ele tateou a parede ao lado da cama, as mãos deslizando sobre o barro seco até encontrar a borda da porta que levava ao cômodo principal.
Era um hábito antigo, esse toque constante, uma maneira de mapear o espaço que ele não podia ver. Seus olhos brancos e opacos, como duas pedras de gelo, nunca haviam capturado a luz, ele nasceu nesse mundo de escuridão, um mundo sem formas, sem cores, apenas sons, cheiros e texturas que ele juntava como peças de um quebra-cabeça incompleto.
Às vezes, tentava imaginar o que Xue chamava de “vermelho” ou o “azul” do céu que sua mãe descrevia, mas era como tentar segurar o vento com as mãos, impossível. Era um vazio que ele não tinha escolha a não ser aceitar.
— Tianyu, já acordou? — A voz de sua mãe veio da direção da mesa, acompanhada pelo som de uma faca cortando algo — provavelmente raízes para o café da manhã. — Venha comer antes que Xue roube tudo.
Tianyu sorriu, seguindo o som até a mesa baixa onde a família se reunia.
— Ela rouba até enquanto eu estou comendo, mãe. Não sei por que você ainda tenta me avisar.
Ele se sentou com cuidado, os dedos passando na borda da mesa para se orientar, e logo sentiu o calor de uma tigela de mingau sendo colocada à sua frente.
Lin Xue entrou logo depois, o som de seus passos rápidos ecoando na madeira enquanto ela se jogava ao lado dele.
— Eu ouvi isso, Tianyu! Se eu roubo, é porque você come devagar demais.
Ela riu, e Tianyu sentiu o movimento do ar quando ela estendeu a mão para pegar algo da tigela dele, apenas para ser interrompida pelo tapa leve de Lin Mei.
— Comportem-se, vocês dois — disse a mãe, a voz firme mas carregada de um carinho que Tianyu podia sentir mesmo sem ver o sorriso dela.
— Seu pai já saiu pro campo. Ele disse que quer você lá depois, Tianyu, pra ajudar com a cerca de novo.
Tianyu assentiu, soprando o mingau quente antes de tomar um gole.
— Sim, mãe. Vou assim que terminar.
Ele ouviu o som de Xue comendo ao seu lado, o barulho exagerado que ela fazia de propósito só para irritá-lo, e balançou a cabeça, rindo baixo.
Após o café da manhã, Tianyu saiu com Xue, as mãos na parede da casa até alcançar os degraus. Ele desceu com cuidado, sentindo a terra sob os pés, e seguiu o cantarolar da irmã enquanto ela o guiava em direção ao centro da vila.
O caminho era familiar, mas fora de casa, longe das paredes que conhecia, Tianyu às vezes precisava de ajuda.
— Me avise se tiver uma pedra grande — disse ele, a voz calma mas com um toque de cautela.
Xue bufou, mas segurou o braço dele com firmeza.
— Você já caiu umas cem vezes nesse caminho, vem, eu te guio — ela o puxou adiante, os dois caminhando entre as casas enquanto o som da vila ganhava vida ao redor deles.
No centro da vila, o velho Zhang estava sentado em um banco de madeira do lado de fora de sua oficina, o cheiro de ferro quente e carvão pairando no ar.
Tianyu ouviu o som de passos leves se aproximando, crianças da vila, suas vozes agudas e cheias de curiosidade.
— Tio Zhang, conta uma história! — Gritou uma delas, Tianyu reconheceu a voz como sendo de Li Hua, a menina das tranças que nunca desistia de perseguir sua galinha.
— Vocês querem uma história, é? Então venham cá, sentem-se. Tianyu, Xue, vocês também, não pensem que já estão velhos demais para minhas histórias!
Tianyu sorriu, deixando Xue guiá-lo até o grupo, e se sentou na terra ao lado das crianças, sentindo o calor do sol em suas costas.
O velho Zhang bateu o martelo uma última vez no ferro que segurava, antes de colocá-lo de lado.
— Isso que vou contar foi há muitos anos, quando eu ainda tinha cabelo na cabeça e pernas que não reclamavam — começou ele, a voz ganhando um tom que prendia a atenção de todos.
— Eu tinha ido pra Vila do Rio Torto, a umas três montanhas daqui, levar umas ferramentas pro ferreiro de lá. Era um dia quente, o sol queimava de uma forma que parecia que eu estava na forja, e eu estava descansando perto de um rio quando vi ele chegar. Um imortal!
Tianyu inclinou a cabeça, o coração batendo um pouco mais rápido. Ele já ouviu falar de cultivadores imortais, homens e mulheres que diziam dominar o céu e a terra, mas eram como lendas, distantes da vida simples do vale. Sua mãe disse que seu bisavô foi um, mas ele não sabia se era verdade.
— Como ele era? — Perguntou, a voz baixa mas curiosa.
Zhang riu, e olhou para cima, como se tentasse voltar para aquele momento.
— Ele não era como nós, isso eu posso te dizer. Ele era alto, muito alto! Devia ter 2 metros de altura! Era magro, mas forte. Com um manto verde que parecia flutuar mesmo sem vento.
— Ele estava parado no meio do rio, flutuando com os pés a centímetros da água, mas a água não o tocava, ela se curvava ao redor dele, como se tivesse medo. Eu fiquei escondido atrás de uma pedra, olhando, porque sabia que gente como ele não gosta de ser vista por mortais como nós.
Li Hua interrompeu, a voz animada.
— Ele voou? Minha avó diz que cultivadores voam!
— Claro que sim! Foi assim que ele chegou ao lago, ele voou rápido como um raio! — Respondeu Zhang, sorrindo para a menina.
— Mas ele fez algo ainda melhor. Ele pareceu se concentrar por um momento, e suas vestes começaram a flutuar ainda mais. Ele ergueu a mão, assim, e o rio parou. A água ficou quieta, como vidro, e eu juro que vi peixes nadando no ar, presos naquele momento.
— Então ele olhou pro céu, e uma nuvem desceu, se tornando tão pequena que coube na mão dele como uma bola de algodão.
— Uma nuvem desceu dos céus e parou na mão dele? Velho Zhang, você fica cada dia mais criativo com suas histórias — provocou Lin Xue.
— Pequena Xue, se você tivesse visto o que eu vi, tenho certeza que sonharia com aquele momento o resto da sua vida!
— Mas e depois tio Zhang? O que aconteceu? — Perguntou outra criança que ouvia a história.
— Depois, ele riu. Mas sua risada foi um som que parecia um trovão, que reverberou por toda a floresta. Ele gritou que finalmente havia conseguido! O que eu não sei, mas ele parecia satisfeito, a própria água, antes parada, girava ao redor como se estivesse feliz por ele. E depois disso, em um piscar de olhos ele sumiu, como se nunca tivesse estado ali.
Tianyu ouviu em silêncio, as palavras de Zhang girando em sua mente. Ele tentou imaginar o rio parado, a nuvem na mão do homem, mas era difícil. Ele nunca viu água além do som e do toque, nunca viu uma nuvem além do que Xue descrevia como um “branco fofo”. Era como tentar agarrar a névoa, ele sentia a história, mas não podia pintá-la, e isso o deixou com um vazio no peito.
— Você acha que ele era forte, tio Zhang? — Perguntou outra criança, um menino que Tianyu reconheceu como Xiao Bao, o filho do tecelão.
— Forte? — Zhang riu de novo. — Menino, ele poderia ter virado esse vale de cabeça pra baixo se quisesse. Mas imortais são assim, vivem em outro mundo, um que não é pra gente como nós.
As crianças murmuraram entre si, algumas rindo, outras fazendo perguntas que Zhang desviava com mais risadas. Tianyu ficou quieto, os dedos traçando o colar de jade em seu pescoço sem que ele percebesse.
Era uma relíquia do avô de sua mãe, Lin Zhan, o homem que ela dizia ter sido um cultivador. Ninguém falava mais que isso, e ele não perguntava.
Antes que pudesse pensar mais, uma voz pequena o chamou.
— Tianyu, me ajuda? — Era Xiao Bao, agora ao seu lado, o som de suas mãos mexendo em algo de madeira acompanhando as palavras. — Meu carrinho quebrou, e o pai disse que não pode consertar hoje. Você pode?
Tianyu virou a cabeça na direção do som, sentindo o cheiro de madeira fresca que vinha do brinquedo.
— Posso tentar — disse ele, estendendo as mãos.
Xiao Bao colocou o carrinho em seus dedos, e Tianyu tateou as peças, uma roda solta, um eixo torto.
— Você tem um barbante aí?
O menino correu até a oficina de Zhang e voltou com um pedaço de corda fina, o som de seus passos rápidos fazendo Tianyu sorrir. Ele trabalhou com calma, os dedos amarrando a roda de volta ao lugar, ajustando o eixo com pequenos toques até sentir que estava firme.
— Pronto — disse, devolvendo o carrinho. — Tenta agora.
Xiao Bao pegou o brinquedo e correu, o som das rodas rolando na terra ecoando enquanto ele gritava — obrigado, Tianyu! Você é o melhor!
O dia seguiu, o sol subindo até o meio do céu e depois começando a descer. Tianyu voltou para casa com Xue, que o guiou pelo caminho mais longo até os campos onde Yu heng trabalhava.
— Pai quer você na cerca — disse ela, segurando seu braço com firmeza enquanto passavam por uma área cheia de raízes que Tianyu não conhecia tão bem. Ele confiava nela, os passos hesitantes se firmando com a ajuda da irmã, e logo ouviu o som de seu pai martelando uma estaca na terra.
— Chegou, Tianyu? — Perguntou Yu heng. — Pega aqui, vou te mostrar onde amarrar a corda.
Tianyu se aproximou, tateando a cerca até encontrar a corda que seu pai lhe entregou. Ele trabalhou ao lado do pai, os dois em silêncio, o som dos nós sendo dados e das estacas sendo ajustadas entre eles. A tarde passou assim, com o calor do sol cedendo lentamente a uma brisa mais fresca enquanto o trabalho avançava.
Quando terminaram, Tianyu sentou-se na grama ao lado da cerca, ouvindo o som do vento nas folhas e o barulho distante do riacho. Seu pai ficou ao seu lado, limpando as mãos em um pano, e Xue apareceu pouco depois, carregando uma cesta de ervas que Lin Mei havia pedido.
— Vocês dois são lentos, já está anoitecendo — brincou ela, rindo enquanto se juntava a eles.
Tianyu inclinou a cabeça, sentindo o calor da família ao seu redor, ele não precisava mais do que isso.
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