O amanhecer chegou ao Vale das Flores. 

    Dentro da casa da família Lin, o silêncio da noite ainda pairava, quebrado apenas pelo rangido suave da madeira sob os pés de Yu Heng enquanto ele acendia a fogueira para o dia que começava.

    Lin Tianyu acordou com o som, os dedos apertando a esteira de palha enquanto ele se sentava, a lembrança das lágrimas da noite anterior ainda úmida em sua mente. 

    Ele respirou fundo, sentindo o ar fresco que entrava pela janela, e tateou a parede ao seu lado até encontrar a borda da porta. Seus olhos brancos e opacos fitavam o nada, como sempre, e ele deixou os sons do mundo guiá-lo enquanto se levantava.

    Quando chegou ao cômodo principal, ouviu passos pesados do lado de fora, acompanhados pela voz rouca do velho Zhang. 

    — Yu heng, abre aí! Trouxe a pequena comigo! — O som de uma risada infantil seguiu, aguda e cheia de energia, Tianyu reconheceu que era Li Hua antes mesmo de ela falar.

    A porta rangeu ao ser aberta, Yu heng respondeu. 

    — Zhang, cedo assim? Aconteceu algo? 

    Tianyu sentiu o movimento do ar quando o pai passou por ele, e o cheiro de ferro e carvão que sempre acompanhava o ferreiro encheu a casa.

    — Não é nada demais, mas vou pra cidade hoje — disse Zhang, o som de suas botas parando perto da mesa. 

    — A pequena aqui insistiu em ir junto, quer comprar um cordão pras tranças dela. Pensei em ver se você quer alguma encomenda enquanto eu estiver lá.

    Li Hua riu, os passos dela dançando no chão enquanto falava. 

    — Vou comprar um cordão vermelho, Tianyu! Igual ao que vi na carroça do mercador no último ano! Vai ficar lindo, né? — A voz dela estava tão cheia de alegria que Tianyu sorriu, mesmo sem poder imaginar o “vermelho” que ela descrevia.

    Ele ouviu o tilintar de moedas sendo tiradas de um bolso. 

    — Se puder, pega um rolo de corda grossa pra cerca. Essa que eu tenho tá se desfazendo toda. Toma aqui, cinco cobres devem dar.

    O som das moedas trocando de mãos ecoou, e Zhang riu baixo.

    — Pode deixar, Yu heng. Corda grossa pro homem da cerca. Vamos lá, Li Hua, antes que o sol suba demais.. 

    Tianyu ouviu os passos deles se afastarem, a risada de Li Hua desaparecendo enquanto a porta se fechava atrás deles.

    Ele ficou em silêncio, os dedos apertando o colar de jade contra o peito. Por um instante, quis dizer algo, — “Posso ir com vocês?” — mas as palavras morreram em sua garganta. 

    Ele imaginou o caminho até a cidade do Vale do Pinho, as montanhas que Xue dizia serem altas, os riachos que ele nunca cruzou. Mas então veio o peso. Ele, cego, tropeçando em pedras, atrasando Zhang, precisando de Li Hua para guiá-lo como uma criança. Um fardo, como sempre. Ele engoliu o desejo, a boca seca, e ficou quieto sentindo o calor da fogueira contra a pele.

    — Tianyu — chamou seu pai, a voz cortando seus pensamentos. — Vou precisar de ajuda hoje de novo com a cerca. A corda que tenho não vai durar até o velho Zhang voltar.

    Tianyu hesitou, os dedos ainda no colar, e então falou, a voz mais baixa que o normal. 

    — Pai, posso passar o dia no rio hoje? Quero colher umas ervas nas margens. Acho que ouvi umas boas ontem.

    O silêncio que seguiu foi pesado, e Tianyu sentiu o olhar do pai sobre ele, mesmo sem poder vê-lo. 

    Yu heng respondeu, a voz carregada de surpresa que ele tentou esconder. 

    — No rio? Você nunca pediu isso antes. Tá bem, vai lá. Vou ver se Xue me ajuda com a cerca hoje.  Ela não vai gostar, mas vai ter que ser — ele riu baixo, um som que aliviou o nó no peito de Tianyu.

    Sua mãe apareceu ao lado dele, o som de suas mãos limpando o avental. 

    — Leva um balde, e não fica muito tempo. Vou  mandar sua irmã buscá-lo mais tarde caso precise de ajuda pra voltar.

    Ela colocou uma mão leve em seu ombro, e Tianyu assentiu, sentindo o calor daquele toque.

    Ele pegou o balde que Xue deixou perto da porta, tateando a parede até sair da casa. 

    O caminho até o rio era um que ele conhecia bem, mas ainda assim foi cuidadoso, os pés sentindo cada pedra e raiz enquanto o som da água o guiava. 

    O vento soprava suave, carregando o cheiro fresco das ervas que cresciam nas margens, e Tianyu seguiu em frente, o colar balançando contra seu peito com cada passo.

    Quando chegou ao rio, o som da água correndo encheu seus ouvidos, um som constante que parecia falar com ele. Ele se ajoelhou na margem, o balde ao seu lado, e deixou as mãos deslizarem entre as ervas, sentindo as folhas ásperas e as hastes úmidas. Colheu algumas, guiado pelo som que faziam ao vento e no roçar de sua mão, mas sua mente estava em outro lugar.

    Ele parou e se sentou para ouvir o vento. Era leve, dançando entre as árvores, e Tianyu tentou imaginar como seria ver o mundo que o cercava. Ver o rio, ver o céu, as nuvens. Ver as montanhas, o vale, as flores que davam nome à vila. 

    Mas ele não podia, e isso pesava em seu peito como uma pedra que ele não conseguia mover.

    — Eu sou um fardo — murmurou ele, a voz tão baixa que o rio quase a engoliu. 

    — Xue me guia, o pai me ensina, a mãe me protege. E o que eu faço por eles? 

    Ele apertou o colar, os dedos tremendo. — Se eu pudesse ver, eu seria diferente. Poderia ir com Zhang, ajudar meus pais, viver como…

    Ele parou, o nome de Lin Zhan pairando em sua mente. Um cultivador. Um homem que dizia poder mudar o tempo. Tianyu queria isso, uma vida além do vale, além da escuridão que o prendia.

    O dia passou lento, o sol subindo e descendo enquanto ele ficava ali, parado sentindo o vento, ouvindo o rio, perdido em pensamentos. As horas escorregaram como água entre seus dedos, e ele mal percebeu o céu escurecendo até que um som diferente cortou o ar.

    Era um estrondo, grave e distante, como madeira quebrando ou pedra caindo. Tianyu se virou, os ouvidos em alerta, o balde caindo de suas mãos enquanto ele se levantava. Outro estrondo veio, mais alto, e então um cheiro. Fumaça, acre e quente, diferente do carvão da forja de Zhang. 

    Ele virou a cabeça, o coração acelerando, e ouviu algo que fez seu sangue gelar: gritos.

    Eram vozes da vila, agudas e cheias de medo, misturadas a um som que ele não reconhecia, vazios zumbidos e um ruído baixo, como fogo consumindo. 

    “Mãe? Xue?” Pensou ele, o pânico subindo em sua garganta. 

    Ele deu um passo à frente, mas o pé escorregou numa pedra e ele caiu, as mãos batendo na terra úmida. Levantou-se rápido, o colar balançando contra o peito, e tentou correr para casa.

    Sem visão, o caminho era um caos. Ele tropeçava em raízes, as mãos tateando o ar em busca de apoio, o corpo caindo de novo e de novo enquanto os gritos ficavam mais altos. 

    — Pai! Mãe! Xue! — Gritou ele, a voz rouca e desesperada, mas o som foi engolido pelo rugido que crescia ao longe.

    A fumaça estava mais forte agora, queimando seu nariz, e ele sentiu o calor no ar, mesmo estando tão distante.

    Ele caiu outra vez, o joelho batendo numa pedra, e ficou ali, ofegante, os sentidos sobrecarregados. 

    Não entendia o que estava acontecendo. O vale era paz, era casa, era tudo o que ele conhecia. Mas agora havia fumaça, gritos, e um medo que ele nunca sentira antes. 

    — O que tá acontecendo? — Murmurou em pânico, as mãos tremendo enquanto tentava se levantar, o colar quente contra sua pele como se respondesse ao caos.

    A escuridão que sempre o definiu agora parecia maior, mais cruel, e Tianyu estava ali, perdido entre o rio e a vila. Sem saber que seu destino, que repousava além das montanhas, finalmente chegou.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota