O vento carregava a fumaça como uma serpente invisível, enrolando-se em torno de Lin Tianyu enquanto ele cambaleava em direção à vila.

    O cheiro era forte, sufocante, queimando suas narinas com um fedor que ele nunca sentiu antes. Madeira queimada, carne chamuscada, algo metálico e frio. Seus pés tropeçavam em raízes e pedras, as mãos tateando o ar em busca de equilíbrio, mas cada queda o lançava mais fundo no pânico que crescia em seu peito.

    Os gritos ecoavam ao longe, vozes que ele conhecia, vozes da vila, de casa, misturadas a um rugido que parecia engolir o vale inteiro. Ele podia escutar e sentir, mas não podia ver nada. Era um pesadelo sem forma que ele não conseguia escapar.

    — Mãe! Xue! — gritou ele, a voz rouca rasgando sua garganta, mas o som foi engolido pelo caos.

    O colar de jade batia contra seu peito, quente agora, como se respondesse ao terror que o envolvia, mas Tianyu mal notava. 

    Ele caiu de novo, o joelho cortando-se numa pedra afiada, e o calor do sangue misturou-se ao suor que escorria por sua pele. 

    Levantou, trêmulo, com os sentidos sobrecarregados. Ele correu outra vez, guiado apenas pelo instinto e pelo som que crescia como uma tempestade.

    O chão sob seus pés mudou quando ele alcançou a vila, a terra macia das trilhas deu lugar a algo áspero, quebradiço, como cinzas e madeira partida.

    O calor o atingiu como uma onda, um bafo ardente que fez seus olhos, mesmo cegos, lacrimejarem.

    Ele parou, ofegante, as mãos esticadas à frente, e então ouviu: o crepitar de chamas devorando casas, o estalo de telhados desabando, o som seco de algo pesado batendo na terra, provavelmente um corpo.

    E acima de tudo, ele ouvia risadas. Risadas cruéis, graves, que cortavam o ar como lâminas.

    — O que… o que tá acontecendo? — murmurou ele, a voz tremendo enquanto dava um passo hesitante.

    O coração dele estava disparado, ele estava perdido em uma escuridão infinita enquanto ouvia o estalar de fogo misturados a gritos desesperados, como se ele estivesse no inferno.

    — Pai? Xue? Alguém?

    Um grito agudo veio de algum lugar à sua esquerda, seguido por um som que ele não queria entender, um zunido e um engasgo antes do silêncio. Tianyu virou a cabeça, os ouvidos escutando tudo, mas ele não podia ver, não podia saber o que estava acontecendo. Era Li Hua? Velho Zhang? 

    O vazio de sua cegueira era uma prisão, e o mundo ao seu redor era um caos que ele só podia sentir.

    — Queimem tudo! — Uma voz gritou, grave e cheia de desprezo, tão próxima que Tianyu congelou.

    Passos pesados ecoaram na terra, botas esmagando cinzas e destroços, e o som de metal tilintando, armas talvez ou armaduras, veio com eles.

    — Ninguém sobrevive! Ordens são ordens!

    Tianyu caiu de joelhos, as mãos batendo na terra quente enquanto tentava se esconder atrás do que restava do que parecia ser uma parede ao seu lado. 

    O calor era insuportável, subindo pelo chão como se a vila inteira fosse uma fornalha, e a fumaça o sufocava, tornando cada respiração uma luta.

    Ele ouviu outro grito, mais longe agora, mas familiar, uma voz que ele conhecia.

    — Xue? — Sussurrou, o pânico apertando seu peito como garras.

    Ele se arrastou, os dedos raspando em cinzas e madeira quebrada, o corpo tremendo enquanto tentava encontrar o caminho para casa.

    Não podia ver as chamas, mas sentia o calor delas em sua pele, ouvia o som delas dançando no ar como um cântico cruel.

    O cheiro de sangue chegou até ele, metálico e doce, misturado à fumaça, e Tianyu engasgou, as lágrimas escorrendo por seu rosto, lágrimas de medo, de impotência.

    — Se eu pudesse ver… — Murmurou ele, a voz quebrada enquanto rastejava. — Se eu pudesse ver, eu saberia o que está acontecendo, onde eles estão…

    Mas ele não podia. O mundo era um borrão de sons e cheiros, e cada passo era uma aposta cega contra a morte que ele sentia ao seu redor.

    Um estrondo veio de trás, tão forte que o chão tremeu, e Tianyu caiu de bruços, o rosto batendo na terra quente.

    Ele ouviu o som de algo desabando, uma casa, talvez a do velho Zhang ou a do tecelão, seguido por mais risadas, mais gritos.

    Uma voz carregada de autoridade surgiu, uma voz feminina, mas fria.

    — Huo Wei, fale para terminarem logo com esse lado! O mestre quer isso rápido, os coletores virão logo para procurar entre os corpos seja lá quem estão procurando!

    — Calma, Huo Ling. Já tô quase acabando por aqui! — Respondeu outra voz, mais áspera, acompanhada pelo som de algo sendo arrastado. Um corpo, Tianyu percebeu, o estômago revirando.

    Ele pressionou as mãos contra os ouvidos, tentando bloquear o som, mas não adiantava. O fogo cantava, os gritos ecoavam, e ele estava preso no meio disso tudo, cego e inútil.

    Ele se arrastou mais, os dedos encontrando algo macio e quente, mas estava úmido, pegajoso.

    Tianyu puxou a mão de volta, o cheiro de sangue mais forte agora, e um soluço escapou de sua garganta.

    — Não… não…

    Ele não sabia quem era, não podia saber.

    O som de botas se aproximou, e Tianyu se encolheu, o corpo tremendo enquanto tentava ficar quieto. Ele não sabia onde estavam os invasores, não sabia como se esconder.

    — Achei mais um! — Gritou uma voz, e então veio o som de algo cortando o ar, seguido por um grito que parou abruptamente.

    Tianyu apertou o colar, os dedos brancos de tanto apertar, e rezou. Para quem, ele não sabia. Rezou para que ninguém o encontrasse, rezou para que sua família tivesse fugido.

    Mas então, um som diferente veio, baixo e pulsante, como um tambor dentro de seu peito.

    O colar estava quente, mais quente que o fogo ao seu redor, e Tianyu sentiu algo, uma voz, ecoando dentro da sua mente.

    “Me perdoe… Eu tentei escondê-los ao selar sua visão… Mas não foi o suficiente…”

    Tianyu congelou, o ar preso nos pulmões.

    — Quem…? — Sussurrou ele, pensando estar alucinando.

    O colar pulsou uma vez, duas, e então uma onda de calor subiu por seu corpo, diferente do fogo que queimava a vila.

    Ele sentiu seu corpo ser envolto por algo, algo que ele não sabia explicar, algo que ele não entendia.

    Antes que pudesse processar, outro estrondo veio, mais perto agora, e o som de passos rápidos o fez se encolher ainda mais.

    — Aqui tem mais! — Gritou uma voz, e Tianyu ouviu o som de metal sendo erguido.

    Cada vez que escutava essas palavras, ele rezava para não serem direcionadas a ele.

    Ele tentou se arrastar, mas o chão estava quente demais, o ar pesado demais e sua força estava acabando.

    O fogo cantava ao seu redor, uma melodia de destruição que ele não podia silenciar, e Tianyu ficou ali, preso entre o calor e a escuridão, sem saber se sobreviveria ao próximo instante.

    O chão sob Lin Tianyu era uma lâmina de fogo, cada movimento que ele fazia arrancava um pouco da pele de suas mãos e joelhos enquanto ele se arrastava entre as cinzas e os destroços.

    O calor subia como um demônio vivo, queimando com um ardor que ele não podia escapar, a fumaça enchia seus pulmões, tornando cada respiração uma batalha contra o sufocamento.

    Ele não sabia para onde ia. A vila que conhecia como um mapa de sons e toques estava irreconhecível, transformada em um inferno de chamas e morte.

    Seus olhos brancos tremiam, inúteis, e o colar de jade continuava pulsando contra seu peito, quente como brasa, mas ele mal registrava a dor além do terror que o consumia.

    Risadas ecoavam ao seu redor, graves e cruéis como hienas festejando sobre um cadáver ainda quente.

    — Esses mendigos não param de aparecer, tem mais um escondido aqui! — Gritou uma voz, seguida pelo som de metal cortando carne, um som molhado que fez Tianyu estremecer.

    Ele ouviu o estalo de ossos quebrando, o gorgolejar de alguém tentando respirar, e então o silêncio. Um silêncio mais pesado que os gritos.

    Ele não sabia onde estava, não sabia onde os invasores estavam, apenas ouvia seus passos esmagando madeira e cinzas, suas vozes carregadas de um prazer sádico que ele não conseguia compreender. E mais, ele não conseguia compreender porque pareciam o estar ignorando,  mesmo as vozes estando tão perto.

    O que Tianyu não sabia,  é que nesse momento ele estava envolto em uma fraca aura dourada que saia de dentro do colar e se envolvia em seu corpo, apagando um pouco de sua presença para os invasores. Dentro da escuridão de seu mundo, não havia como ele saber disso.

    Tianyu se arrastou mais, as mãos encontrando algo quente e pegajoso. Sangue, ele sabia, mas não podia saber de quem.

    O cheiro metálico misturava-se à fumaça e ele engasgou, o estômago revirando enquanto tentava se afastar.

    — Xue… mãe… — Murmurou, a voz rouca quase perdida no rugido das chamas que devoravam as casas ao seu redor.

    Sua pele queimava contra o chão, bolhas formando-se onde o calor era mais intenso, mas ele não parava, guiado pelo instinto de encontrar sua família.

    Um choro cortou o ar, agudo e desesperado e Tianyu congelou, reconhecendo a voz. Era Xiao Bao, o menino do carrinho, filho do casal de tecelões.

    — Por favor… — Choramingou a criança, o som vindo de algum lugar à sua direita, perto demais.

    Tianyu virou a cabeça, o coração disparado, mas antes que pudesse se mover, uma voz fria respondeu.

    — Pare de chorar pirralho, vocês mortais tem que agradecer pela honra de serem mortos por nossa seita.

    Então o som de algo cortando o ar veio, rápido e preciso, seguido por um grito curto que parou abruptamente.

    Tianyu ouviu o baque de algo pequeno caindo na terra, misturado ao riso do cultivador.

    — Até o sangue deles é nojento, vou ter que comprar outra espada depois de sujar essa com esse sangue inferior— disse o homem com voz de desgosto, os passos dele se afastando enquanto Tianyu tremia, as mãos apertando o chão quente.

    Um grito diferente veio logo depois, mais alto, cheio de dor e fúria.

    — Xiao Bao! Não! Meu filho! — Era a mãe do menino, a tecelã, uma mulher de voz gentil que Tianyu conhecia das tardes na vila.

    Ele ouviu o som dela correndo, os pés batendo na terra, e então um rugido. Chamas, ele percebeu, chamas que crepitavam alto.

    — N…Não! — Gritou ela, a voz quebrando em um lamento enquanto o fogo a engolia.

    O som era horrível. Pele estalando, um grito que se transformava em gorgolejos, e então nada, apenas o canto das chamas e o cheiro de carne queimada que fez Tianyu vomitar ali mesmo, o ácido misturando-se às cinzas.

    — Não posso… não posso fazer nada… — Sussurrou ele, as lágrimas escorrendo por seu rosto enquanto se arrastava novamente, o corpo tremendo de dor e medo.

    Ele não podia ver os corpos, não podia ver o fogo, mas sentia tudo. O calor, o sangue, a morte que dançava ao seu redor.

    Sua cegueira era uma corrente, prendendo-o a um pesadelo que ele só podia ouvir e sentir, e isso o quebrava por dentro.

    Ele continuou, os dedos raspando em madeira carbonizada e terra quente, até que outro som o fez parar.

    Um grito que ele conhecia melhor que qualquer outro.

    — Filha, corre! — Era Lin Mei, sua mãe, a voz carregada de desespero vindo de algum lugar à frente, perto da casa deles.

    Tianyu levantou a cabeça, o coração apertado como se fosse explodir, e ouviu a voz grave de seu pai logo depois.

    — Xue! Encontra teu irmão e foge! — Gritou Yu heng, o som cortado pelo estrondo de algo pesado caindo. O telhado de sua casa parecia ser.

    Tianyu ouviu passos rápidos, o som de botas se aproximando, e então uma risada que fez seu sangue gelar.

    — Uma família toda sobrou aqui, hein? — Disse uma voz, a mesma voz feminina e fria de antes. — Queimem eles. O mestre não quer sobras. Quem eles procuram pode estar entre eles.

    Tianyu tentou gritar mas sua voz falhou, sufocada pela fumaça e pelo pavor.

    Ele ouviu o rugido das chamas novamente, e então o som de sua mãe gritando antes de ser engolida pelo fogo, e o grito de seu pai, furioso, desafiador, cortado por um som que ele não queria entender.

    — Não! — Gritou Tianyu finalmente, a voz rasgando sua garganta enquanto ele se arrastava na direção dos sons, as mãos queimando contra o chão, o corpo tremendo de dor.

    E então, a voz veio outra vez, fraca mas clara, ecoando dentro de sua mente com um tom de tristeza.

     “Me perdoe, Tianyu… Eu falhei com vocês…”

    O colar pulsou e uma dor aguda atravessou seus olhos. Ele gritou, as mãos subindo ao rosto, e dessa vez, algo mudou. Uma luz, fraca, embaçada, começou a surgir na escuridão que sempre o acompanhou.

    Tianyu piscou, os olhos ardendo enquanto tentava entender.

    Não era claro, não ainda, mas havia formas, sombras tremeluzindo no vazio.

    Ele viu o brilho alaranjado do fogo, uma mancha que dançava embaçada, e então, ele pode ver uma figura correndo em sua direção, pequena e rápida, o som de sua voz cortando o ar.

    — Tianyu! — Era Xue, sua irmã, a voz cheia de lágrimas e medo enquanto ela corria para ele.

    Ele viu o contorno dela, embaçado, os cabelos longos esvoaçando como uma bandeira, os braços esticados como se pudesse alcançá-lo, como se pudesse puxá-lo para fora daquele inferno.

    O embaçado foi se afastando, e pela primeira vez, ele viu. Viu Xue, o rosto que sempre imaginou agora real, tão próximo, com traços que ele sonhou tantas vezes em conhecer. Pela primeira vez, o rosto dela se formava em sua mente, não como uma imaginação, mas real.

    O coração de Tianyu explodiu em uma esperança tão frágil que doía e ele gritou, a voz rouca rompendo o caos.

    — Xue!

    Mas então, um zumbido agudo rasgou o ar, rápido como um trovão, frio como a morte.

    Uma linha prateada brilhou ao seu lado, uma espada voadora que rasgou o espaço entre eles.  

    O grito de Xue cessou, engolido por um som molhado, um estalo horrível que ecoou nos ossos de Tianyu.

    Tianyu viu. Viu o corpo dela cair, viu a cabeça se separar do seu corpo e cair com um baque surdo bem diante de seus olhos recém-despertos.

    Ele viu a cabeça dela rolar até o chão a sua frente, os olhos castanhos, agora vidrados, estavam cheios de lágrimas e fixos nele, abertos em um último instante de medo. 

    O sangue escorria, manchando a terra como uma pintura cruel, e aqueles olhos que Tianyu sonhou em conhecer nos dias de paz, eram agora a primeira visão de sua vida. Mas eles estavam sem vida, cheios de um pavor indescritível.

    Era uma visão que o partia ao meio. Cada traço do rosto dela, cada curva que ele imaginou nas noites do vale, estava ali, mas morta, roubada, profanada pelo fogo e pela lâmina.

    A cabeça dela estava bem em sua frente, o sangue manchando a terra quente, e o silêncio que seguiu foi mais alto que qualquer grito.

    Tianyu ficou parado em choque, os olhos ardendo enquanto a visão embaçada de lágrimas se fixava na irmã.

    Tianyu não gritou. Não podia. O ar fugiu de seus pulmões, e um vazio maior que sua cegueira o engoliu. Um som escapou dele, não um lamento, mas algo mais antigo, mais quebrado. O uivo de um coração despedaçado, de um mundo que desabava em cinzas. 

    As lágrimas queimavam seus olhos, misturando-se ao sangue e à fumaça, enquanto o fogo ao seu redor cantava uma melodia que ele jamais esqueceria.

    Ele ficou ali, de joelhos, o corpo tremendo, os olhos presos na irmã que nunca mais riria, nunca mais o guiaria. A primeira luz que seus olhos conheceram era a última dor que seu coração podia suportar.

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