Capítulo 7 - A luz que se apaga
Lin Tianyu estava ajoelhado ao lado do que restava de sua casa, com o chão quente sob seus joelhos e os olhos embaçados fixos na cabeça decepada de sua irmã.
A cabeça dela repousava a poucos passos dele, com os cabelos negros espalhados como uma teia sobre a terra manchada de sangue.
Seus olhos castanhos, abertos e vidrados, brilhavam com lágrimas secas. O olhar dela congelado parecia buscar algo no último momento, talvez ele.
Seu corpo estava um pouco mais atrás. O sangue escorria de seu pescoço cortado misturando-se ao solo, e a luz das chamas dançava sobre sua pele pálida, tornando a cena ainda mais irreal.
Tianyu tremia, o corpo paralisado enquanto encarava a primeira coisa que seus olhos recém-despertos haviam capturado.
Ele sonhava em ver o rosto da irmã, o imaginava nas risadas e provocações dela, mas agora que o via, era assim. Decapitado, silencioso, roubado de tudo o que já foi.
— Xue… — Sussurrou ele, a voz rouca rasgando sua garganta seca, um som que mal se ouvia acima do crepitar das chamas.
Ele estendeu a mão com os dedos trêmulos, agarrando o ar como se quisesse trazê-la de volta, mas o calor do fogo e o peso da verdade o ancoravam ao chão.
As risadas dos invasores ainda ecoavam ao longe, graves e cruéis. Mas para Tianyu, o mundo estava em silêncio. Um silêncio vazio que ele nunca imaginou sentir.
Ele se deixou cair, as palmas queimando contra a terra quente, e um soluço escapou dele, sacudindo seu peito.
Seus olhos, ainda lutando para focar, captaram o brilho do fogo refletido no sangue de sua irmã, e ele sentiu algo dentro de si se quebrar. Não era apenas a tristeza, mas uma impotência que o sufocava mais que a fumaça.
Ele não podia acreditar, não queria acreditar, mas a realidade estava lá, a primeira imagem que seus olhos viram estava gravada em sua mente como uma ferida que nunca cicatrizaria.
O mundo a sua volta foi voltando e som das chamas cresceu, um rugido faminto que devorava o que restava da vila. Tianyu levantou a cabeça.
Ele virou o rosto, a visão captando uma forma enegrecida entre os destroços da casa.
Era sua mãe, o corpo reduzido a um monte de cinzas e pele chamuscada, os braços esticados em uma tentativa vã de proteger algo que o fogo já levou.
As chamas a haviam consumido, deixando apenas um cadáver irreconhecível, os cabelos que ele imaginava longos e negros agora estavam fundidos à carne derretida, o avental que ela usava reduzido a farrapos carbonizados.
Com ela, ele viu seu pai. O corpo coberto de sangue e queimaduras profundas, os braços envolvendo o cadáver de Lin Mei como se tentasse protegê-la mesmo na morte.
— Mãe… Pai… — Chorou ele, a voz quebrando em soluços.
Ele tentou rastejar até eles, os joelhos raspando contra a terra ardente, as mãos tremendo. Ele queria acordar desse pesadelo, queria abraçá-los, sentir o calor deles como nas noites de jantar.
Ele escutou um gemido fraco mas familiar, e o coração de Tianyu disparou.
Ele olhou para seu pai e notou que ele ainda estava vivo, mas por um fio, com a morte já o abraçando, assim como ele abraçava sua amada. O peito subindo e descendo em respirações rasas que gorgolejavam com sangue.
Yu heng olhou pra cima, e seus olhos castanhos, tão parecidos com os de Xue, encontraram os de Tianyu. Lágrimas escorreram por seu rosto sujo de cinzas, misturando-se ao sangue que pingava.
— Tianyu… — Murmurou ele, a voz quase inaudível, quebrada por soluços que ele não conseguia conter. — Corre… Por favor, corre… Pra longe…
Ele tossiu, o sangue escorrendo por seu queixo e manchando o peito. Seus braços apertaram o corpo de Lin Mei com mais força, como se fosse a última coisa que o mantinha vivo.
— Me perdoa… Eu não… Não consegui fazer nada…
Seus olhos tremiam, cheios de uma dor que Lin Tianyu nunca pensou ver no homem forte que o ensinou quase tudo que sabia.
Tianyu ficou paralisado, os olhos arregalados enquanto via o pai desmoronar diante dele.
— Pai, não… — Sussurrou ele, rastejando mais perto, os dedos queimados deixando marcas na terra quente.
Ele queria alcançá-lo, mas antes que pudesse, passos pesados cortaram o ar, acompanhados por um som que fez seu sangue gelar. O tilintar de metal, botas esmagando cinzas, e uma risada que era como veneno.
Dois vultos surgiram entre as chamas, suas silhuetas tremeluzindo na visão embaçada de Tianyu.
Um era alto e robusto, o outro mais esguio, mas ambos exalavam uma aura mortal que ele sentia mesmo sem entender.
— Olha só isso, — disse uma voz áspera, cheia de desprezo. — Um mendigo moribundo abraçando um cadáver. Que cena nojenta.
O homem riu, um som que cortava mais fundo que qualquer lâmina, e Tianyu ouviu o som de uma espada sendo desembainhada enquanto o riso ecoava no ar quente.
Yu heng ergueu os olhos, o rosto contorcido em dor e raiva.
— Foge, Tianyu! — Gritou ele, a voz falhando enquanto tentava se levantar, o corpo tremendo com o esforço.
Mas o homem nem sequer se importou com o esforço do mortal diante dele, sua espada brilhou na luz do fogo como uma estrela cruel.
Com um golpe rápido, a lâmina atravessou o peito de Yu Heng, o som de carne e osso sendo partidos.
Yu Heng tombou sobre o corpo da esposa, os olhos abertos em um último olhar para o filho, as mãos escorregando do cadáver da esposa enquanto o sangue se espalhava na terra quente, formando uma poça escura que refletia as chamas.
O homem riu novamente, limpando a espada na roupa com um gesto casual, o som do metal roçando no tecido misturando-se ao crepitar do fogo. Então apontou a espada para a mãe de Lin Tianyu.
— Olha isso, essa mortal aqui morreu parecendo um pedaço grande de carne assada, não acha, Huo Ling? — Disse dando risadas enquanto olhava para a mulher ao seu lado.
Tianyu virou a cabeça e viu o outro vulto. Uma mulher esguia que observava a cena com olhos frios, o rosto sem demonstrar nenhuma emoção. Ao seu lado, flutuava uma espada manchada de sangue. Era a mesma espada que decapitou sua irmã.
Tianyu sentiu algo explodir dentro dele, uma raiva tão grande que queimava mais que o chão sob seus joelhos.
Seus punhos apertaram a terra, as unhas quebrando-se contra as cinzas, e um grito se preparou para sair de sua garganta, selvagem e cheio de ódio. Enquanto os olhos embaçados de lágrimas fixaram-se nas silhuetas dos assassinos.
Mesmo sabendo que não poderia fazer nada, ele queria gritar, queria saber o porquê isso estava acontecendo. Mesmo que significasse sua morte.
Mas então as últimas palavras de seu pai ecoaram em sua mente — “Corre… pra longe…” — e mesmo com a fúria o consumindo, ele engoliu o grito que estava prestes a rasgar o ar.
Seu corpo obedeceu ao pedido que seu pai lhe fez, como se fosse para cumprir o último desejo dele. Ele se preparou para correr enquanto as lágrimas escorreram por seu rosto, misturando-se ao sangue e à sujeira.
— Huo Wei, termina logo isso, para de brincar — disse a voz fria da mulher que chamavam de Huo Ling.
Nesse momento ela sentiu algo e virou o olhar, os olhos dela então encontraram os de Tianyu, mesmo na escuridão embaçada.
Huo Ling franziu o cenho, estranhando como quase não sentiu a presença desse mortal. Ela não podia ver o brilho do colar o envolvendo tentando esconder sua presença, mas ainda assim, seus olhos pareciam ser muito afiados para serem enganos.
Os olhos de Huo Ling estreitaram-se ao fixarem-se em Tianyu e um calafrio percorreu sua espinha. Havia algo nos olhos daquele mortal que ela não conseguia explicar.
Mas ela não falou nada, não reagiu mais além disso. Apenas ergueu a mão casualmente e um zumbido cortou o ar como o canto de um pássaro mortal.
Tianyu viu com a visão que ainda lutava para se firmar a espada tremendo e voando em sua direção, a lâmina prateada brilhando contra o fogo em um arco perfeito.
Enquanto a espada voava, Tianyu viu por um instante, um fio dourado tremeluzindo ao redor da lâmina, como se seus olhos tentassem desvendar seu movimento. Mas a dor e o pânico engoliram essa visão e quando ele percebeu já estava caindo antes mesmo de entender o que acontecia.
A espada o atingiu no peito, perfurando carne e osso com um som que ele sentiu mais do que ouviu. Um impacto surdo, seguido por uma dor que explodiu em seu corpo como um relâmpago.
Ele caiu para trás, o sangue jorrando quente de seu peito e espalhando-se na terra em uma poça que se misturava às cinzas.
A espada ficou cravada em seu peito, o cabo tremendo com cada batida fraca de seu coração, e então em um movimento rápido voltou para o lado da mulher, Huo Ling, que nem se deu o trabalho de olhar uma segunda vez para ele.
Tianyu engasgou, o ar escapando em respirações rasas enquanto o mundo girava ao seu redor.
Ele ouviu a voz de Huo Ling acima dele, distante.
— Achem os últimos mortais. Depois seguimos pra próxima vila antes dos coletores chegarem. Tenham certeza de não deixar nenhum vivo, eles precisam encontrar quem procuram entre os corpos.
Tianyu ficou ali, o corpo tremendo enquanto o sangue escorria, o colar ainda estava quente contra sua pele, mas agora silencioso, como se tivesse desistido dele.
Sua visão, a luz que ele acabou de ganhar, começou a escurecer, as formas embaçadas do fogo e dos corpos desvanecendo em um borrão cinza ia engolindo tudo.
Antes de voltar para a escuridão, ele viu o rosto de Xue mais uma vez, uma lembrança gravada em sua mente. Os olhos cheios de lágrimas, o último grito dela.
E então até isso sumiu, engolido pela escuridão que voltava como um velho amigo cruel.
O som das chamas ficou distante, um murmúrio abafado que se perdia na névoa de sua consciência.
Os gritos da vila, as risadas dos invasores, o vento, tudo desapareceu, apagado por uma quietude que rastejava sobre ele como uma sombra.
E então os seus sentidos, os únicos que o guiaram por toda a vida, também começaram a sumir, um a um, como velas sendo apagadas por uma mão invisível.
O cheiro da fumaça, o calor do sangue, o peso do colar, tudo se foi. Tianyu sentiu a morte envolvê-lo, fria e pesada.
Antes de todos seus sentidos se apagarem e seu mundo voltar para a escuridão, ele pensou ouvir novamente uma voz em sua mente. “Aguente, Tianyu… O legado do clã Lin não terminará aqui…”
Então a escuridão o tomou, e ele não lutou mais.

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