Capítulo 8 - O homem no colar
Os invasores já haviam partido há horas, suas risadas cruéis e passos pesados desapareceram nas montanhas, deixando para trás apenas a destruição e os corpos espalhados pela vila.
A escuridão envolvia Lin Tianyu enquanto o sangue escorria do ferimento em seu peito. O som das chamas, o cheiro da fumaça, a dor que queimava sua carne, ele já não sentia nada disso. Seu corpo e sua mente estavam se perdendo em um abismo que parecia engoli-lo inteiro.
Mas ao mesmo, desconhecido de Lin Tianyu em seu vazio, uma fraca luz verde e dourada corria como névoa sobre seu corpo, envolvendo-o em um casulo que pulsava com uma energia antiga.
A ferida em seu peito onde a espada o perfurou estava aos poucos se fechando, guiada pela luz vinda do colar que repousava sobre seu peito. Sua carne rasgada costurava-se em fios de luz que puxavam o sangue de volta às veias.
O processo era gradual, doloroso mesmo na inconsciência. Os ossos quebrados realinhavam-se com estalos abafados, o pulmão perfurado enchia-se de ar em respirações trêmulas que faziam seu corpo estremecer.
A luz que o envolvia pulsava em ondas, como o batimento de um coração, e a mesma voz ecoou novamente em sua mente, fraca mas carregada de culpa.
“Perdoe-me… é tudo que posso fazer por enquanto…”
Dessa vez Tianyu sequer ouviu, ele estava preso no limbo entre a vida e a morte, mas o colar continuou seu trabalho, lutando contra o destino que quase o levava.
A luz envolveu Tianyu por um tempo que ele não podia medir, curando-o aos poucos, até que, com um suspiro rouco que rasgou sua garganta, seus olhos se abriram.
Ele piscou, o peito doendo com cada respiração. Ele viu o brilho fraco das brasas ao seu redor lançando sombras trêmulas sobre os destroços e o céu acima, um manto negro salpicado de estrelas que brilhavam como lágrimas distantes.
Sua mão subiu ao peito, tateando o local onde a espada o acertou. Ele encontrou apenas uma cicatriz áspera, ainda sensível ao toque, mas fechada como se tivesse sido rasgada a muito tempo.
O colar estava quente contra sua pele, o jade pulsando fracamente parecendo ter gastado quase toda sua força para trazê-lo de volta.
Ele ficou ali, deitado na terra quente, o corpo tremendo e lagrimas caindo enquanto tentava entender o que havia acontecido, o silêncio da vila morta pesando sobre ele como uma mão invisível o sufocando.
De repente um zumbido baixo cortou o ar, um som que fez seu coração disparar. Tianyu virou a cabeça, os olhos embaçados capturaram uma figura se aproximando, flutuando a poucos metros do chão sobre uma espada prateada que brilhava na escuridão como uma lâmina de luar.
Era um homem vestido em um uniforme imponente, um robe carmesim com bordas douradas que ondulavam como chamas, o tecido pesado adornado com dragões bordados que pareciam dançar à luz das brasas. Uma faixa preta rodeava sua cintura, cravejada de pequenas gemas que reluziam, e uma capa longa caía sobre seus ombros, esvoaçando enquanto ele deslizava sobre os escombros da vila com uma graça que parecia desafiar a destruição ao seu redor.
O homem segurava um artefato em forma de orbe, pequeno e feito de jade negro, que pulsava com uma luz fraca enquanto ele passava pelos corpos espalhados.
Seu rosto, jovem mas marcado por linhas de impaciência, estava franzido em uma mistura de irritação e tédio.
— Terceira vila e nada ainda! — Resmungou ele, a voz carregada de desgosto enquanto a espada o carregava entre os cadáveres. — Se eu não achar algo logo, os anciãos vão me mandar pra algum buraco pior que esse. Que perda de tempo.
Ele ergueu a mão e uma gota de sangue se ergueu de cada corpo que estava ao redor, puxada por uma força invisível até o artefato. O orbe absorveu o sangue e permaneceu opaco. O homem bufou, balançando a cabeça como se estar ali fosse uma afronta pessoal.
Tianyu ficou paralisado, o coração batendo forte enquanto via o homem se aproximar. Ele não usava as roupas dos invasores, aqueles homens de mantos cinzentos e armaduras escuras que queimaram tudo. Mas havia algo nele que exalava perigo, uma presença que fazia o ar parecer mais pesado.
O instinto o fez rastejar para trás, escondendo-se atrás de uma parede carbonizada que ainda fumegava, os olhos dele observavam fixos por uma fresta enquanto tentava respirar sem fazer barulho. O cheiro de cinzas e sangue enchia suas narinas, e ele pressionou a mão contra o peito, sentindo o coração pulsar pela cicatriz sob seu peito.
O homem chegou mais perto até parar ao lado do corpo de Xue. A cabeça dela ainda repousava onde havia caído, com um olhar de medo congelado em seus últimos momentos.
Ele ergueu a mão novamente, e uma gota de sangue subiu do pescoço cortado, flutuando até o artefato como uma pérola escura.
Desta vez, o orbe brilhou! uma luz dourada, intensa e quente, que iluminou o rosto do homem.
Ele congelou, os olhos arregalando-se enquanto segurava o artefato com as duas mãos, um sorriso lento e faminto cresceu em seus lábios.
— Finalmente! — Gritou ele, a voz cheia de uma alegria que ecoou no vale. — Esse parece ser o sangue que eles querem! Os anciãos vão me cobrir de recompensas por isso!
Ele riu alto e pulou da espada que flutuava, se abaixando para pegar o corpo de Xue, os dedos alcançando ela com uma cobiça que fez Tianyu não aguentar ver aquilo.
— Para! — Gritou Tianyu, saindo do esconderijo antes que pudesse pensar nas consequências.
Ele ficou de pé com o corpo trêmulo, os olhos ardendo enquanto encarava o homem.
— Não toque nela!
Sua voz era rouca, carregada de raiva e dor. Ele deu um passo à frente, os punhos cerrados mesmo sabendo que não teria forças para fazer nada a respeito, mas ele não podia deixar o homem levar o corpo de sua irmã.
O chão sob seus pés ainda estava quente, as cinzas subindo com cada movimento, e ele sentiu sua própria impotência pressionando-o como uma montanha.
Tianyu não percebeu, mas junto de sua raiva crescente, seus olhos começaram a emitir um leve brilho dourado.
O homem virou a cabeça, os olhos estreitando-se enquanto encarava Tianyu, surpreso por restar alguém vivo ali.
Então ele viu os olhos de Tianyu brilhando, um dourado muito fraco mas inconfundível, refletindo a luz das brasas como espelhos.
O homem arregalou os olhos desacreditado e então o próprio artefato em suas mãos respondeu, o brilho dourado voltou dessa vez muito mais forte, em uma explosão de luz que iluminou quase toda a vila em ruínas.
— Você… — Disse o homem, sem acreditar no que via. O sorriso em seu rosto se alargou em algo quase feral.
— Olhos dourados, meu deus é um Lin vivo! Com isso os Elderes vão me promover a discípulo interno sem dúvidas, talvez até um discípulo de núcleo! — Ele riu alto, comemorando um achado quase impossível.
Ele pulou novamente na espada e ela se inclinou enquanto deslizava na direção de Lin Tianyu com uma velocidade que fez o ar zunir.
Tianyu recuou com o coração disparado, os olhos lutando para acompanhar o movimento. Mas assim que o homem estava preste a alcançá-lo, uma luz explodiu do colar em seu peito, tão brilhante que engoliu a escuridão.
Do colar uma figura emergiu. Translúcida como névoa, pairando entre Tianyu e o cultivador.
Era um homem velho, de cabelos longos e brancos que flutuavam como fumaça, o rosto marcado por rugas profundas e olhos cheios de uma tristeza que parecia atravessar eras. Ele usava um robe simples, desgastado, e sua forma tremia como se fosse apenas um fragmento prestes a desaparecer.
No instante em que apareceu, o artefato na mão do cultivador brilhou com uma explosão de luz que quase o cegou, uma luz dourada tão intensa que transformou a noite em dia, banhando a vila em um brilho que fez Tianyu erguer as mãos para proteger seus olhos que não eram acostumados à luz.
O orbe pulsava com um brilho tão forte que parecia o próprio sol, a ponto de fazer o artefato tremer e começar a rachar, flashes cegantes de luz dourada saindo pelas rachaduras.
As rachaduras aumentaram até que o orbe explodiu com um estrondo alto que ecoou pelo vale. Fragmentos de jade negro voaram cortando o ar e o cultivador gritou, recuando com a mão ensanguentada enquanto pedaços do artefato caíam nas cinzas.
— Mas o que… — Indagou ele, a voz tremendo de choque.
“Isso era um artefato de nível terrestre , mas apenas a presença desse homem fez o orbe explodir” pensou o cultivador.
O forte brilho dourado antes de explodir provava que ele estava diante de um verdadeiro detentor dos olhos celestiais, um remanescente original do clã Lin. Ele sabia que estava em grande perigo agora.
Ele recuou rapidamente e puxou um talismã de papel amarelado do cinto, era um talismã de comunicação que ele tentava ativar com uma urgência desesperada. Seus dedos corriam desajeitados enquanto tentava ativá-lo com o sangue que escorria de sua mão.
Ele era apenas um discípulo externo na seita do Dragão Carmesim, e agora todos seus instintos de cultivador diziam que ele não sairia dali com vida, então ele precisava avisar a seita sobre isso o mais rápido possível.
A figura translúcida moveu-se rápido antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, atravessando o espaço como um raio de luz e mergulhou na testa do cultivador. O homem congelou e seus olhos ficaram vidrados enquanto caía em um transe, o talismã escorregou de seus dedos e caiu na terra quente.
Tianyu ficou parado, o peito subindo e descendo em respirações rápidas, os olhos fixos na cena sem entender o que via. O brilho dourado do artefato havia desaparecido e o silêncio da noite havia voltado.
A figura saiu da mente do homem logo depois, mais translúcida agora, como se o esforço o tivesse drenado. O cultivador apenas piscou mais uma vez, então seu corpo caiu no chão já sem vida em seus olhos.
— Humph… Um coletor que está apenas na Condensação de Qi, parece que a Seita do Dragão Carmesim ainda não tem certeza sobre um descendente vivo. — O velho disse para si mesmo com o cenho franzido, porém um olhar de alivio.
Ele apenas olhou para o corpo do cultivador por um momento e levantou uma das mãos, fazendo o corpo virar cinzas instantaneamente.
O velho, que a cada movimento parecia ficar mais próximo de desaparecer, virou-se para os corpos de Lin Mei, Yu heng e Xue, os olhos brilhando com uma tristeza indescritível.
Lentamente, ele flutuou até Lin Mei, ajoelhando-se ao lado do cadáver queimado. Seus dedos translúcidos acariciaram o rosto dela, passando sobre a carne carbonizada e as cinzas com uma ternura que contrastava com a devastação que se via na superfície.
— Lin Mei, minha pequena… — Murmurou ele, a voz quase inaudível, carregada de um peso que Tianyu sentia mesmo sem compreender. Ele ficou ali por um momento, os ombros curvados como se carregasse o mundo, antes de erguer a mão.
Com um gesto suave, ele balançou os dedos, e os corpos dos três — Lin Mei, Yu heng e Xue — começaram a se desfazer. Partículas de luz subiram, douradas e brilhantes, dançando no ar como pétalas sendo levadas por um vento gentil.
Tianyu assistiu, as lágrimas escorrendo por seu rosto enquanto via sua família desaparecer, as partículas subindo para o céu em um arco lento e silencioso até se perderem na escuridão entre as estrelas.
Cada movimento do velho tornava-o ainda mais transparente, o colar no peito de Lin Tianyu parecia mais leve, o jade escurecendo como se perdesse sua essência.
O homem virou-se para Tianyu, os olhos cheios de exaustão e urgência.
— Saia daqui agora, menino — disse ele, a voz fraca mas firme, como se viesse de um lugar distante. — Eles podem voltar, procurando de novo. Se te encontrarem, será o fim.
Ele apontou para as montanhas, a mão trêmula enquanto sua forma começava a tremeluzir.
— Vá para o mais longe que puder. Logo explicarei tudo.
Tianyu ficou paralisado, os olhos dourados arregalados enquanto as palavras do homem ecoavam em sua mente. Mas então, a raiva explodiu, uma chama que queimava mais quente que o fogo que levou sua família.
— Você tava aí o tempo todo! — Gritou ele, a voz rouca de fúria enquanto dava um passo à frente, os punhos cerrados. — Se você me salvou agora, Por que não ajudou antes? Por que deixou eles morrerem se podia fazer isso?
Ele bateu no colar que repousava no peito, o som ecoando no vazio, as lágrimas misturando-se à sujeira em seu rosto.
— Você viu tudo e não fez nada! Por quê?
Sua voz quebrou em um grito de dor e traição, mas o homem apenas o encarou, os olhos cheios de uma tristeza que não respondia mas pesava.
Antes que Tianyu pudesse gritar novamente, a figura tremeluziu e voltou para o colar, o brilho verde apagando-se enquanto o jade ficava frio e escuro contra sua pele.
Tianyu ficou ali, o silêncio da vila morta caindo sobre ele como uma pedra. Ele levantou o colar, os dedos tremendo enquanto o encarava, o jade agora opaco e leve como se tivesse perdido sua essência.
— Quem é você? — Gritou ele, a voz rouca de raiva e desespero ecoando entre os escombros. — Por que não salvou eles? Responde!
Ele apertou o colar com força, mas o colar permaneceu mudo, frio, uma relíquia silenciosa que guardava segredos que ele não podia alcançar.
Ele deixou a mão cair, os ombros tremendo enquanto a raiva queimava, impotente.
Tianyu virou-se para a vila, os olhos embaçados de lágrimas captando os restos de sua casa. Madeira queimada, cinzas espalhadas, o lugar onde sua família ria na noite anterior agora estava reduzido a um túmulo aberto.
As lágrimas desciam quentes contra sua pele e ele caiu de joelhos, os punhos batendo na terra enquanto soluços sacudiam seu corpo.
— Me perdoem… — Chorou ele, a voz quebrada enquanto encarava o chão. —Eu fui inútil… um fardo a vida toda… e nem nos últimos momentos eu pude fazer alguma coisa…
Ele gritou, um som de dor e culpa que ecoou pelas ruínas, suas mãos agarravam a terra quente como se pudesse arrancar dela uma resposta. A cena de sua irmã e seus pais mortos se repetindo em sua mente, as primeiras coisas que seus olhos foram capazes de ver.
— Era pra ser diferente… — Murmurou ele, a voz rouca. — Eu queria ver vocês… ver o vale, as flores… não isso…
Ele bateu os punhos no chão, a dor subindo pelos braços enquanto gritava.
— Por quê? Por que as primeiras coisas que vi foram vocês morrendo? — Ele não esperava uma resposta, mas o vazio da pergunta o esmagava, uma tristeza que parecia tão vasta quanto o céu que agora ele podia contemplar.
Sua cabeça caiu, os cabelos negros caindo sobre o rosto enquanto as lágrimas pingavam nas cinzas, manchando o chão com sua dor.
Por um tempo, ele ficou assim, o corpo curvado sobre a terra, o peso de tudo o esmagando como uma montanha. O vento soprou, leve e frio, carregando o cheiro de morte e cinzas, mas Tianyu mal notava, perdido em sua própria mente.
Depois de um tempo que ele não viu passar, algo mudou. A tristeza endureceu, transformando-se em uma raiva que queimava em seu peito como uma fornalha que não se apagava. Suas lágrimas cessaram. Ele levantou-se lentamente, seus olhos brilhando na escuridão com uma intensidade que não tinha antes, os punhos cerrados enquanto encarava o vazio à sua frente.
Sua vila estava morta, sua família se foi, mas ele não. Não ainda.
Com um último olhar para os destroços, ele respirou fundo, o ar enchendo seus pulmões enquanto a raiva crescia, uma chama que prometia consumir tudo em seu caminho.
Ele virou-se, os passos firmes apesar da dor que ainda latejava em seus pés queimados e começou a caminhar para longe, em direção as montanhas que o homem no colar apontou. Não sabia para onde ia, mas sabia por quê. Vingança, uma palavra que ecoava sem parar em sua mente como um tambor de guerra.
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