Índice de Capítulo

    Ponto de Vista de Noelle:

    As ruas da Ilha de Raven estavam infestadas de corpos mortos imortais, eu corria por eles evitando seus ataques enquanto cortava seus ossos com garras trovejantes.

    “A minha mana vai acabar a qualquer momento… Garras normais seriam de grande ajuda agora” por mais que usar as garras herdadas pelos Lobos Prateados fosse mais útil, eu me recusava a usá-las “De qualquer forma, mesmo se eu pudesse, não as usaria”

    — Fala sério! Onde esse bêbado se meteu?

    — Olha como fala, eu não sou só um bêbado — a voz de Karayan soou em meus ouvidos assim que passei por ele.

    Eu parei freando meus pés no chão, cavando a terra pelo caminho.

    — Você tá aí! Rápido, Sig me pediu pra te chamar e…

    — Eu já sei. E já falei pra ele que eu não vou ajudá-lo nesse plano maluco.

    — Quê? Que plano?

    — Esquece o que te falei. Eu preciso te mostrar uma coisa agora.

    — Mas agora o Sig…

    — Não subestime um Barman com uma boa bebida, ele consegue lidar com esses esqueletos sozinho. Agora vem comigo.

    — Isso não faz o menor sentido…

    Mesmo preocupada com Sig e os outros, decidi confiar em Karayan e o segui. Ele derrubava todos os inimigos com um único golpe de sua espada e ainda por cima os impedia de reagrupar seus corpos.

    — Como você faz isso?

    — Bom, eu mexo meu braço assim e…

    — Não. Eu tô falando da sua técnica. Por mais que eu os corte ou quebre seus ossos, seus corpos se juntam toda vez, mas quando você os derruba, eles não se levantam mais.

    — Fala do “Fio da Escuridão”?

    — Então é assim que se chama…

    — É um saco de explicar, mas… como você já deve saber, a alma humana é feita por luz e escuridão, uma alma não pode existir conscientemente sem os dois. Pra resumir. O “Fio da Escuridão” balança esse equilíbrio da alma, tirando uma fração dessa escuridão.

    — Uma técnica assim deveria ser extremamente refinada, como pode usá-la apenas os acertando com a espada.

    — Eles não são conscientes. Tudo que habita em suas almas é a escuridão, não tem necessidade de saber manipulação das almas ou habilidade para separar as duas partes da alma. Fatiá-los é o suficiente.

    “Ele diz isso, mas achar a alma de qualquer ser é muito difícil. Sua percepção de mana é afiada, mas… ele não parece fazer nada disso. O que é que ele tem?”

    Após andarmos por alguns minutos, percebi que não havia mais nenhum esqueleto atrás de nós, o silêncio ressaltava o quão distante estávamos dos outros.

    — Chegamos.

    Nós paramos em frente a um enorme castelo. A estética gótica e mórbida me dava calafrios.

    — Que lugar é esse?

    — É onde eu cresci. Me mudei pra cá quando era apenas uma criança.

    — Então você é filho de uma família nobre?

    — Quase isso.

    A porta da frente estava destrancada e ao entrar, me deparei com um grande salão preenchidos com adornos brancos com detalhes pretos. Vasos que pareciam ter um valor inestimável brilhavam e refletiam a luz vinda de um candelabro majestoso pendurado no teto.

    Duas escadas faziam curvas para dentro que ligavam o salão até um segundo andar, onde havia uma grande porta dupla no centro e mais uma em cada parede na lateral.

    — Sobe aí, não vamos perder muito tempo — Karayan já havia subido as escadas e estava me esperando em frente a porta do meio.

    Ao chegar ao seu lado, ele abriu as duas portas, revelando um quarto espaçoso e confortável. Havia uma bancada com um espelho, que parecia possuir, vários artefatos mágicos e ao lado, um armário com cabides vazios, porém limpos. Do outro lado do quarto, uma estante repleta de livros de diferentes conteúdos, sejam eles do básico da magia até a teoria mais complexa dos princípios fundamentais do universo. Diante tudo isso, o que mais me chamou a atenção foi uma grande cama de casal suspensa no ar, que mesmo sendo grande o suficiente para três pessoas adultas, havia apenas um único travesseiro.

    — Esse lugar parece velho, mas… tudo aqui dentro está muito bem cuidado. De quem é esse quarto?

    Sem me responder, Karayan andou até a bancada calmamente, abriu uma gaveta logo abaixo dela e de lá tirou um pequeno caderno preto, adornado com gravuras e runas nórdicas prateadas.

    — O que é isso?

    — As bruxas celestiais passam todo o seu conhecimento para seus sucessores, elas dedicam o fim de seu reinado para estudar e compilar tudo, sem perdas, sem falhas, apenas toda a informação que possuem. De alguma forma, Viollet sabia que estava chegando ao fim, mas também sabia que não tinha mais tempo para isso.

    Ele colocou o caderno em cima da bancada, com sua capa virada para baixo.

    — Enfim, acho que vai ser útil para você, não há mais ninguém que possa pôr as mãos nisso — deixando o caderno para trás, andou até a porta e a fechou lentamente — Eu preciso pegar algumas coisas, me espere aqui.

    Meu coração acelerava a cada segundo, a cada passo que eu dava me aproximando da bancada. Eu segurei o caderno delicadamente e o abri com suavidade.

    Ao tocar a primeira página, senti algo único, a textura da folha me trazia uma sensação familiar na qual não me lembrava nem sentia há muito tempo. Lendo as primeiras palavras do livro, lágrimas vieram aos meus olhos.

    “Noelle, minha filha querida, é uma pena que não possamos passar mais tempo juntas. O meu fim está para chegar e com ele, uma grande responsabilidade vai cair sobre seus ombros. Eu vejo prosperidade em ti, muitos terão expectativas sobre você, mas não deixe que isso pese em suas motivações, você é forte e tem poder suficiente para viver a sua vida como quiser. Tenho certeza que vai encontrar seu caminho, afinal, é da minha filha que estou falando.

    ‘Aqueles que podem voar, deveriam voar.’ 

    — Viollet.”

    As palavras que continham naquele caderno me fizeram lembrar do porquê eu estava ali.

    Em um passado não tão distante, a vila em que eu morava era governada por um tirano chamado Darío, também, meu pai. Desde pequena eu fui odiada, meu pai me culpou pela morte de minha mãe e consequentemente, todos fizeram o mesmo. Além disso, por ser meio humana, minhas presas e garras não se formavam completamente, então para ele, nem utilidade eu tinha. Meu quarto não passava de um cubo escuro, a comida era fria e se parecia com as sobras dos pratos de todos que moravam na casa do “rei”.

    Todas as palavras que se direcionaram para mim eram acompanhadas de ofensas, todas as mãos levantadas para mim acertavam meu rosto e o meu corpo, até mesmo as crianças da vila se afastaram de mim e me olhavam com desprezo.

    Houve um dia em que saí de casa e subi na maior torre que via, ali fiquei de pé olhando a todos felizes, mas quando seus olhares se voltaram para mim, pude ver a transição do olhar de felicidade para o desgosto em instantes. Eu soltei meu corpo, o vento me empurrou para frente, mas logo um homem me segurou pelo cabelo, impedindo minha morte. Naquele dia fui levada ao meu pai, uma das poucas vezes que o vi.

    — Minha mulher morreu por sua causa e você acha que tem o direito de tirar sua própria vida?

    Eu não tinha uma resposta na época, tudo que fiz foi abaixar minha cabeça e ouvir suas palavras duras, ordenando para que eu sumisse de sua vista.

    Enquanto chorava no meu quarto, sozinha, ouvi pessoas gargalhando ao lado da casa. Eu olhei por um pequeno buraco que havia na parede e as vi em volta de uma fogueira, adultos e crianças contando histórias.

    Uma das crianças contou que existia uma bruxa que resgatava crianças sozinhas e perdidas na floresta, ela as levava para casa e eram cuidadas como seus filhos, diziam que a bruxa era tão bela que ao vê-la poderia facilmente cair em seu encanto e era tão poderosa que apenas com o seu olhar poderia subjugar seus inimigos.

    Ouvindo o resto da história, acreditando em cada palavra, sonhei com a chance de fugir daquele inferno, infelizmente, enquanto devaneava, uma tempestade caiu sobre a vila. Todos correram, casas foram derrubadas, a água levava crianças de um lado para o outro, ninguém estava seguro. De repente a água começou a entrar pelo buraco da parede, ela subiu gradativamente transformando o quarto num lago. Eu gritava por socorro, mas ninguém me ajudava, em poucos minutos, o lago se transformou num aquário e antes que eu fosse engolida, depois de já ter aceitado a morte que tanto desejei, clamei pela bruxa que todos exaltavam sua benevolência e assim apaguei.

    A parede do quarto cedeu a pressão da água e caiu. Eu tossi a água em meus pulmões e abri os olhos, vendo a oportunidade de fugir em meio ao caos e desespero da vila. Corri sem pensar duas vezes para a floresta até a chuva cessar. Os dias passaram e lá estava eu sozinha na floresta, com fome, com frio e sem esperança, meus ouvidos escutaram passos a alguns metros de distância, por um momento, acreditei que finalmente seria salva, mas fui surpreendida com o mesmo homem que havia me tirado da torre e que mais uma vez me levou ao meu pai.

    Dessa vez, ele não me disse nada, apenas em um suspiro, balançou a mão e disparou:

    — Façam o que quiserem com essa criança. Eu não me importo mais.

    Nem mesmo eu consegui reagir aquilo, meus olhos vazios já viram de tudo e o inferno que era minha vida apenas continuou.

    Todo dia em meus sonhos, a bruxa benevolente me achava na floresta e todos os dias eu era acordada com o pior me aguardando. Os anos se passaram e os olhos maldosos dos homens se tornaram olhos sedentos, eles tocavam o meu corpo mais do que o normal e eu me sentia cada vez mais suja, até chegar o dia em que mais uma tragédia aconteceu na vila. Um dos servos de Darín tentou assassiná-lo e todos correram desesperados para proteger o rei e em meio a essa correria, aqueles que se aproveitavam de mim para descontar suas frustrações deixaram a porta aberta, livre para qualquer um. A tragédia da vila se tornou uma esperança para mim, eu estava presa em correntes enferrujadas, vendo a luz da esperança bater no chão, me contorci o suficiente para romper a corrente, vi a luz do sol depois de muito tempo e mais uma vez a oportunidade de fugir surgiu. 

    Estava acostumada a seguir ordens, minha mente não sabia o que fazer sem que alguém mandasse, mas meu corpo se moveu sozinho, eu corri com meus trapos velhos até a floresta, o medo de ser pega me consumia, voltar para lá significa a minha morte. Aos poucos passei a sentir o vento batendo no meu rosto e antes que percebesse as correntes se desprenderam do meu corpo, a liberdade cantava a cada segundo, meus pés sujos pela terra puderam correr a vontade pela primeira vez. Eu ouvi uma vez que havia um país perto da vila em que estava presa e sem saber onde ficava, corri esperançosa até lá.

    As plantas na floresta taparam a minha visão, meu instinto me guiava pela mata, então de repente, meu corpo se chocou com algo macio. O susto me fez cair ao chão, o medo voltou, o medo de perder a única coisa que me restava consumiu a minha mente, mas quando abri os olhos, encontrei duas pessoas que mudariam a minha vida para sempre.

    Eu não conseguiria descrever meus sentimentos após ler aquilo, a felicidade que tomou conta de mim me fez chorar como criança, a curiosidade, a tristeza, o alívio e a angústia, todas as emoções ao mesmo tempo.

    Suas palavras me trouxeram a motivação que faltava, o desejo de seguir meu sonho e entender o que aconteceu no passado. Eu tentei me recompor, enxuguei as lágrimas, lágrimas que finalmente se tornaram um sorriso, um verdadeiro sorriso que pensei que jamais teria.

    Guardei aquele pequeno caderno com carinho dentro do meu chapéu, que também servia como uma mochila usando o pequeno espaço finito criado por Galliard. Saí daquele quarto, observando cada detalhe para tentar manter essa imagem perfeitamente em minha memória. 

    — Está pronta? — Perguntou-me Karayan, tragando seu cigarro

    — Ainda tenho muitas perguntas, mas acharei as respostas por mim mesma.

    — Ótimo. Assim seja.

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