Capítulo 38 - A Última Festa
— Acho que entendi… então, de alguma forma, meu corpo está transformando a magia do Frost em feitiçaria? — perguntei confusa.
— A priori, sim — Frost confirmou — parece ser um processo involuntário, porém não podemos ter certeza de nada agora. Algo parecido já aconteceu antes?
— Não sei…
— Aquela vez em Raven — Noelle interviu.
— Ein?
— Em Raven, quando se protegeu do ataque daquele monstro, seus braços estavam aquecidos que nem um metal, mas não se queimou.
— É verdade! Mas como é que você sabe disso?
— Você me contou há um bom tempo.
— Entendi… — eu me perguntava como pude me esquecer de algo assim, mas, ao mesmo tempo, fiquei surpresa de saber que Noelle se lembrava de algo que disse tempos atrás
— Quando isso aconteceu, sentiu alguma diferença?
— Acho que meus golpes ficaram mais… “destrutivos”. Como se minha força bruta tivesse sido aumentada.
— Interessante… isso é realmente fascinante! — ele exclamou.
— Não existe nenhum registro sobre uma magia assim, nenhum livro, anotação… nada — minha amiga divagava com seus olhos imersos em seus pensamentos.
— Não poderia ser que, de alguma forma, eu esteja absorvendo essa magia?
— É possível, mas isso seria semelhante a usar magia engarrafada e esse não parece ser o caso.
— Bem, vocês dois são os inteligentes aqui e se não vamos treinar nada no momento, vou voltar a me concentrar na minha missão — Eu me considerava uma pessoa esperta, mas a mente daqueles dois estavam bem longe do meu alcance.
— Fique tranquila, vá em frente.
— Missão? — perguntou Noelle.
— É só um mal-entendido, te conto os detalhes depois.
— Eu não chamaria de mal-entendido — disse Frost, com um sorriso debochado.
— Vai ver.
Ponto de Vista de Akira:
A zona oeste de Antares, conhecida como o Falso Submundo, um lugar onde tudo que importa é sobreviver independente dos meios. Eu caminhava em meio àquelas ruas sujas, passava por becos e pegava alguns atalhos, uma rota rotineira que sempre me levava a uma loja de artefatos mágicos abandonada. A loja era repleta de poções e dispositivos quebrados e era infestada por um cheiro de produto químico que deixaria qualquer um que passasse mais de 3 minutos ali doente. Como de costume, passei rapidamente até o fundo da loja, chegando em uma lata de lixo perfeitamente limpa. Ao abri-la, o chão se dividiu em um quadrado e então o som de engrenagens e correntes enferrujadas ressoou pelo ambiente. Levado para baixo, me deparei com um portão alaranjado e desgastado que se abriu automaticamente.
O ar úmido do lugar era permeado pelo cheiro de óleo e fumaça. Os corredores vastos e misteriosos eram preenchidos por uma luz âmbar e suave, criando uma atmosfera acolhedora e, ao mesmo tempo, enigmática. Paredes de metal oxidado exibem engrenagens gigantes e tubulações entrelaçadas. O som constante de máquinas funcionando e um zumbido suave de eletricidade e magia corria pelos corredores, os dispositivos estranhos largados no caminho liberavam jatos de ar quente por suas válvulas de vapor.
No centro do esconderijo havia uma grande oficina onde alguns cientistas e artesãos habilidosos trabalhavam em projetos complexos, manipulando cristais dourados entre outros minérios. Eu os cumprimentei à medida que falaram comigo e segui caminhando. Chegando ao fim, comecei a escutar murmúrios vindo no final do corredor.
— Vamos dar início em uma semana, mas isso tem que tá pronto até depois de manhã, tá legal? — a voz do meu amigo Kaiser finalmente ficou clara para mim.
— Certo, senhor — a outra pessoa respondeu.
Passos corridos vieram em minha direção e rapidamente uma moça de cabelos dourados passou por mim.
— Qual é a problemática? — perguntei ao entrar na sala.
A sala tinha o formato perfeito de um cubo, com um grande painel de vidro virado para uma enorme máquina que estava sendo construída no vasto espaço subterrâneo. O ambiente era decorado com um pequeno, porém confortável sofá ao lado de uma cesta de frutas e uma mesa que estava coberta de pesquisas e diagramas.
— Akira, é você — suspirou aliviado — parece que os recursos estão acabando e a assistente da mecânica chefe acabou de me avisar.
— E o que disse pra ela?
— Deixei que usassem a nossa reserva, não temos mais tempo para coletar mais material — ele repousou suas costas na parede, desfrutando seu único momento de descanso.
— Acha que vai dar certo?
— Depende. Você vai contar pro Weltinho? — perguntou com um sorriso suave.
— Do que você tá falando?
— A fofoca corre rápido meu amigo, todo mundo sabe que um dos fundadores da “Sombra Dourada” se encontrou com uma cavaleira ontem a noite.
— Você sabe mais do que ninguém que eu nunca estaria envolvido com essa galera.
— Então com quem era ela?
— É só uma amiga, ela tava me procurando, disse que agora também estou sendo procurado.
— Então não preciso me preocupar com sua amiga cavaleira que estava atrás de você?
— Basicamente.
— Tá legal — ele gargalhou — Com certeza você mudou, meu amigo, mas ainda continua sendo uma criança inocente.
— Eu não teria tanta certeza.
— Tem razão…
Um silêncio estranho perdurou por alguns segundos, até Kaiser andar até a cesta de frutas e pegar uma maçã.
— Me responde uma coisa — ele deu uma abocanhada na maçã antes de me fazer a pergunta — Vivemos em um mundo onde seres humanos substituem partes do corpo por próteses mecânicas, alguns deles nem mesmo possuem um coração orgânico — continuou falando mesmo com a boca cheia.
— Onde tá querendo chegar?
— Com todos esses aprimoramentos, até quando um ser humano continua humano?
— Acho que não entendi…
— Pense assim — disse após um suspiro — Se meu corpo fosse inteiramente composto por partes mecânicas, eu ainda seria humano? Ou melhor, eu ainda seria Kaiser?
— Do que você tá falando? — perguntei com uma certa indignação — não importa do que seu corpo seja feito, se sua alma é humana, você é humano.
— Heh — um sorriso singelo surgiu em sua face — boa resposta — ele se levantou e saiu em direção à porta — é uma pena que estejamos nessas condições, queria ter te conhecido em uma era mais amigável.
Antes que Kaiser pudesse sair, atirei em sua direção uma pequena chama para tomar sua atenção. Ele se virou arqueando a sobrancelha em dúvida e disparou.
— O que está fazendo?
Eu avancei rapidamente para suas costas e cerrei meu punho envolto em chamas.
— Em todo esse tempo que nos conhecemos, eu nunca te vi tão cansado, você sempre escondeu esse seu lado — eu olhei no fundo, de seus olhos, finalmente percebendo que ele não era quem dizia ser — e apesar de não falar muito sobre si mesmo, o Kaiser que conheço odeia maçãs.
— Oh… parece que você não é tão idiota quanto eu imaginava.
— Sua presença já estava estranha assim que entrei na sala, mas não tive certeza até você começar com todo esse papo estranho. Agora diga, quem, é, você! — o ameacei com meu punho flamejante próximo ao seu rosto.
De repente, seus olhos se tornaram malignos como os de uma serpente, o vermelho sangue de sua pupila penetrou minha mente e sua pressão mágica me fez cair no chão imediatamente.
— Não se ache demais, garoto, não consegue nem mesmo manter seu corpo de pé — sua voz peçonhenta consumia meu cérebro.
— Mal… dito… O que… você fez… com o Kaiser…
— Vai vê-lo em breve, mas agora, devo ir — ele acenou ao se virar para mim — foi um prazer conhecê-lo, Akira — seu corpo afundou no chão tornando-se um com o solo.
— Merda! — a pressão mágica desapareceu e eu resmunguei aos céus.
De repente, escutei apenas dois passos rápidos, como se uma pessoa estivesse correndo em passos largos.
— Akira! — Kaiser abriu a porta, vendo meu corpo derrotado no chão — Droga! O que foi essa pressão mágica? — ele perguntou desesperado.
Meu corpo ainda recuperava o fôlego, minha respiração ofegante me impediu de responder corretamente.
— Alguém… aqui… invadiu…
— Espera um pouco, respira.
Minutos se passaram após um breve descanso. Kaiser entendeu o que havia acontecido assim que expliquei tudo.
Mesmo que eu soubesse que não era minha culpa, não pude deixar de ficar aflito com a situação.
— Me desculpe, tanto tempo se passou, mas ainda continuo fraco demais…
— Isso não é culpa sua, Akira. Isso não tem nada a ver com força, todos aqui foram enganados, inclusive eu.
Suas palavras eram reconfortantes, porém, memórias do passado me assombravam, mostrando que nada havia mudado.
Ponto de Vista de Saki:
Mais um dia se passou e eu não havia nem sequer visto a sombra do meu alvo. Infelizmente, não me restava mais tanto tempo para procurar, já que o Rei Welt preparou um banquete para família e alguns convidados de honra. Noelle era um desses convidados e por ter o título de sua guardiã, tive que a acompanhar.
Noelle se arrumava para ir para o banquete, a noite não se tratava de uma ocasião especial, era apenas mais uma das inúmeras festas que o rei realizava durante o ano, mesmo assim, todos deviam ir a caráter nobre.
Eu ouvi sutilmente o salto da minha amiga desfilando no chão, chegando mais perto de mim que estava a esperando.
— Já tô pronta, e você? — Ela apareceu em minha frente.
Olhei para Noelle de cima para baixo, embasbacada com tanto brilho que ela demonstrava. Ela vestia um vestido elegante e sofisticado, perfeito para a ocasião, confeccionado com um tecido suave e luxuoso, ele era bastante refinado, com um decote em V suave e alças finas que realçavam os ombros delicadamente. Ela calçava um salto alto preto, não muito chamativo, porém clássico. Para dar um ar nobre, ela usava um colar com uma joia branca em formato de estrela e brincos sutis da mesma cor.
— Abablublé… — sem minha permissão, minha boca disse qualquer coisa no modo automático, eu não tinha palavras, apenas fiquei boquiaberta, babando.
— Sinceramente, achei essa roupa um pouco desconfortável… é meio justa e parece que eu vou cair a qualquer momento.
— Eu achei incrível… — ainda babando.
— Obrigada! — ela sorriu.
— Onde conseguiu essas roupas? — perguntei curiosa, Noelle nunca demonstrou interesse pela moda chique da nobreza e também sempre preferiu roupas mais práticas e funcionais.
— Sr. Frost as mandou, disse que eu precisaria ir bem vestida.
— Bem, ele acertou em cheio.
Nós saímos de casa, indo em direção ao teletransportador. No caminho, Noelle disse:
— Nunca pensei que usaria uma roupa dessas…
— Por que acha isso?
— Pra começar, nunca pensei que iria sair daquele vilarejo um dia — respondeu em um tom melancólico.
— A gente nunca sabe o que o futuro nos reserva — eu me lembrava da época em que pensava que nunca iria sair da minha cidade.
Passei de uma garota que ficava o dia inteiro no quarto lendo mangás para uma aventureira, maga, guardiã, ou seja, lá o que eu estava fazendo. Mesmo com minha vida tendo virado de ponta cabeça, tinha uma coisa que não tinha mudado, a minha falta de propósito.
— De qualquer forma — continuei — você sempre recusou os convites para as festas, porque aceitou esse do nada?
— Sendo bem sincera, eu preferia continuar treinando e estudando, mas percebi que não estava chegando a lugar algum, então pensei que seria melhor esfriar a cabeça — disse com aquele seu olhar inocente de sempre.
— Nossa, isso é impressionante vindo de você.
— Quê? Como assim? — gritou confusa.
— Nada, deixa pra lá!
Eu estava surpresa ao vê-la como estava naquele dia, há não tanto tempo atrás, quando a conheci, ela mal conseguia tomar uma decisão sem pedir permissão. Tudo era motivo para se desculpar e nem mesmo conversar direito com outras pessoas ela conseguia. Em um curto período de tempo, Noelle mudou drasticamente, mas sua essência nunca mudou, ela continuava sendo uma pessoa amigável e gentil.
Mas parece que alguns velhos hábitos ainda continuavam. Em meio a toda a alegria da festa, Noelle estava quieta, olhando para baixo e evitando o máximo de contato possível. Ela não desgrudava de mim, estava claro seu desconforto e vontade de ir embora.
— Noelle, Saki! Que bom vê-las aqui! — O rei se aproximou, como em toda festa, embriagado.
— Rei Welt! Como vai? — respondi em um tom descontraído, tentando disfarçar o semblante caído da minha amiga.
— Estão gostando da festa? Espero que sim, é a primeira vez que vejo a Jovem Bruxa neste salão! — disse com sua voz caricata e festiva.
— É claro — puxei a minha mão com o polegar levantado para perto do meu rosto — tá tudo uma belezinha, bebida boa e muita comida! Do jeito que todo mundo gosta!
— Que bom que estão gostando! Todos os meus banquetes são feitos com extremo cuidado para agradar a todos!
— Continua assim que todo mundo vai continuar te amando, vossa alteza! — fui me afastando à medida que falava.
— Devem estar ocupadas agora, então vou dar atenção aos outros convidados, divirtam-se! — ele percebeu algo que definitivamente não estava acontecendo.
— Vamo dar o fora daqui, cê claramente quer ir embora — me virei para Noelle.
— Não… eu tô legal, não precisa sair por minha causa.
— Relaxa, nem tá tão divertido assim — eu menti, as costelas de carne estavam me implorando para serem devoradas.
Eu a levei para fora, distante de todos. Ela parecia bem mais relaxada, ao tomar um pouco de ar fresco. Sentada no banco, Noelle respirava calmamente, como se estivesse tentando controlar suas emoções. Minha mente procurava formas de acalmá-la, mas fui interrompida antes que pudesse dizer qualquer coisa.
— Vocês vieram mesmo! — Frost gargalhou ao nos ver.
— Até você tá aqui? Pensei que nunca tivesse tempo pra essas coisas!
— Não tenho — respondeu com um sorriso — digamos que isso faz parte do trabalho.
— Tá legal, então.
— E como tá minha parceira de pesquisa, hein? Tudo certo?
— Tá tudo bem, é só um pouco sufocante… — disse Noelle com sua voz exausta.
— Nossa, parece que você tava correndo uma maratona.
— Seria melhor… — ela brincou.
Frost se aproximou, sentou-se ao nosso lado e em silêncio, observou a noite. Um momento tranquilo onde o som da festa estava abafado, o céu estava limpo e as estrelas estavam brilhando.
— Eu costumava observar os astros todos os dias, sabiam? — o céu escuro refletia em seus olhos como um espelho.
— Por que tá dizendo isso?
— De onde vem tanta desconfiança? — ele riu.
— É só estranho você dizer isso de repente.
— Heh! Eu sou tão chato assim?
— Pode apostar que sim.
— Vocês disseram que não sabiam nada sobre mim… bom, agora sabem — Frost se levantou com um sorriso no rosto, seu comum e brilhante sorriso — Aliás, Rosa e os outros soberanos estão em missões ou com suas famílias se preparando para a virada do milênio, então já vou indo. Se cuidem — disse enquanto se afastava.
— T-Tá legal — Noelle e eu respondemos ao mesmo tempo.
— Ele veio aqui só pra isso? — Noelle perguntou.
— Né? Foi estranho até pra ele.
Após sua saída, ficamos aproveitando um pouco mais da brisa da noite, conversando amigavelmente. Quando decidimos ir embora, um dos convidados da festa saiu do salão e veio até nós.
Ele vestia um terno branco e elegante com um colete azul de gola alta por baixo, seu visual se complementava com um chapéu de aba larga, também branco, que ele usava inclinado para frente, adicionando um toque de estilo e mistério.
— Senhoritas? — o homem se aproximou erguendo levemente seu chapéu com sua mão pálida, revelando levemente seus olhos vermelhos ocultos pela sombra da lua.
— Quem é você? Michael Jackson? — perguntei desconfiada.
— Quanta frieza, não se lembra de mim? — em um piscar de olhos, seu terno branco se tornou um sobretudo escuro e enigmático, mostrando finalmente seu rosto por completo.
— Ego? — chocada, me levantei rapidamente.
— O que está fazendo aqui? — Noelle acompanhou meus movimentos.
— Fiquem calmas, para que essa hostilidade? — disse calmamente, voltando ao seu visual.
— Você desapareceu 2 anos atrás quando nos trouxe aqui e do nada reaparece na festa do rei! Você não é o tipo de cara que o Rei Welt seria amiguinho.
— Eu cumpri a minha parte do acordo, o que faço da minha vida não é da conta de vocês.
— É, nisso ele tem razão.
— Ele tem um bom ponto — respondeu minha amiga.
— Apenas vim curtir a festa e estou aproveitando para lhes dizer algo.
— E o que seria?
— Saíam de Antares — tirando seu sorriso debochado do rosto, seus olhos penetraram no fundo dos meus, mostrando que suas palavras não era brincadeira.
— Como é?
— É uma escolha que não vou interferir. Vocês decidem, mas saibam que nada nesse lugar é o que parece. Tudo tem um propósito e todo propósito tem um fim, isso não será diferente independente de onde estiver.
— Que merda você tá querendo dizer? — gritei o agarrando pela gola do seu terno.
— A tempestade está chegando! — seu rosto tomou uma expressão alegre de repente — A calmaria já passou — Ego olhou para o fundo dos meus olhos e concluiu — O mundo está chegando ao fim!
Minha mente girava em um turbilhão de pensamentos. Noelle agarrou e puxou meu ombro para trás, me afastando da pilha de roupas que Ego havia deixado em minhas mãos antes de desaparecer.
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