Capítulo 66 - Ylir, O Demônio Espiral
Diante ao demônio espinhoso, arqueei minha sobrancelha levemente confusa.
— O que era pra ser você?
— Acho que uma roda, ou algo do tipo — respondeu Ranga.
De repente, Ylir começou a girar em alta velocidade em pleno ar. O som da sua rotação se assemelhava a uma motosserra, por mais que não houvesse nenhum motor. Assim que seus espinhos negros encostaram no chão, o demônio correu em nossa direção rapidamente.
Seus espinhos perfuravam o chão por aonde passava, deixando um rastro de destruição para trás. Sua velocidade era ainda mais rápido que o touro que havia invocado, então mal pudemos vê-lo se aproximando e apenas por reflexo, saltamos em direções opostas, evitando o ataque.
Diferentemente da sua invocação anterior, Ylir era capaz de alterar o seu percurso facilmente. Com ambos distantes, decidiu ir atrás de Ranga, que havia caído com o traseiro no chão, fazendo uma curva fechada em rumo ao meu companheiro.
Ranga puxou seu revólver rapidamente, atirando freneticamente, mas com precisão, balas sombrosas no demônio. Seus disparos quebraram alguns dos espinhos no casco da criatura, mas não foi o suficiente para pará-lo. Sem mais munições, o vi em uma situação crítica e sem nem mesmo pensar direito, cobri meu corpo inteiro com minha mana de cor única e me impulsionei em sua direção.
Meu corpo voava pela igreja, de uma ponta a outra, provavelmente ainda mais veloz que Ylir, vendo que cheguei ao seu lado em poucos segundos. Com um soco preciso, acertei o olho do demônio, a parte menos protegida do seu corpo, o lançando para longe.
— Bem na hora! — Ranga rapidamente recarregou seu revólver ao se levantar, injetando mais um frasco na arma.
Ylir se levantava enfurecido, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, foi surpreendido com duas balas de ar condensado em seu enorme olho. As balas se apropriaram dos ventos a nossa volta, gerando fortes correntes de ar pela igreja que balançavam minhas mechas roxas.
— Esse cara vai dar trabalho… — suspirei levemente debochada.
— Nem me fala, já tô com dor de cabeça.
Se recuperando da concussão, o demônio parecia ter tido uma epifania, presumi vendo seu olho arregalado.
— Se prepara — alertei ao erguer meus punhos e firmando a minha base.
O corpo da criatura se inclinava para cima, deixando o olho carmesim virado para névoa escura abaixo do céu. Mais espinhos cresciam em seus cascos, se apertando em espaços que nem mesmo deveriam crescer. Em seguida, começou a girar horizontalmente, criando intensas correntes de ventos até enfim formar um tornado.
Os espinhos soltaram do casco, assim como dentes de leite na boca de uma criança, se misturando ao tornado juntamente com pedras e lascas de madeira que faziam parte do local.
Nossos corpos eram tentados a cair dentro do tornado, porém, conseguimos resistir a sucção sem mais problemas. Infelizmente, isso não era a única coisa que tínhamos que nos preocupar, pois além da força do tornado, os destroços que haviam se juntado a ele também eram problemáticos.
— Saki, atrás de você! — Ranga gritou assim que viu uma enorme pedra vindo em minhas costas.
Meu punho imediatamente fez contato com a pedra, por reflexo, a partindo ao meio.
— Merda, não da pra continuar assim! — reclamei enquanto me esquivava dos espinho e destruía as pedras e pedaços de madeira que me rodeavam.
— Não tem nada que eu possa fazer! Não tem como mirar desse jeito! — declarou ao desviar dos destroços agilmente com acrobacias.
Eu me forçava ao máximo para criar uma solução para o nosso problema, até subitamente me lembrar de algo que poderia ser bem útil. Acredito ter sido uma das poucas vezes em que minha memória não me deixou na mão.
— Ranga! — olhando confiante para o meu companheiro, ordenei — Acerta ele!
Entendendo o favor que havia pedido, o mercenário rapidamente se segurou em uma das pequenas pedras que construíam a parede, parcialmente destruída, da igreja e esticou o braço mirando precisamente o seu revólver. Após poucos segundos apontando para o nada, disparou um único projétil de ar comprimido. A bala não se abalava pela ventania causada pelo tornado e seguiu firme em seu destino, refletindo perfeitamente sobre a superfície inclinada de uma pedra que a fez curvar para baixo, acertando novamente o olho de Ylir.
Com seu corpo vibrando em ódio, virou-se novamente, olhando para nós.
— VERMES IRRITANTES! — a voz de Ylir soou em nossas mentes — MORRAM DE UMA VEZ!
Esbravejou o demônio, apontando todos seus espinhos em nossa direção e os atirando em uma area cilíndrica. Instintivamente, dei um passo a frente, estendendo meu braço para Ranga, que antes que eu pudesse abrir a boca para gritar, já havia tido seu braço perfurado.
— RANGA! — com um salto desesperado, o tirei dali rapidamente segurando sua cintura.
— Mas que merda… — resmungou, pressionando sua ferida.
— Não perde o foco! — o atentei aos espinhos que nos seguiam — Ainda não acabou!
Para mim, desviar daquele ataque não era uma dificuldade, minha velocidade e resistência permitiam que eu pudesse me mover sem problemas, o que seria o caso se eu não estivesse carregando um cara de quase 2 metros em meu ombro. Os disparos passavam de raspão em meus braços e pernas, além do fato de já não ter mais para onde correr, mesmo em uma área aberta como a igreja destruída.
— Não consigo mirar assim! — novamente se queixando.
— Protege a gente!
— O quê? Como você espera que eu faça isso?
— PROTEJA A GENTE! — impondo mais a minha vontade, Ranga rapidamente se soltou dos meus braços e se jogou na frente dos espinhos.
Ainda em movimento, em um momento posterior ao cair no chão, tirou o seu sobretudo, levemente hesitante, e o lançou no ar. Os espinhos refletiam no momento em que se encontravam com a roupa estirada no ar, formando algo semelhante a um escudo.
— Onde foi que você comprou um sobretudo blindado? — brinquei.
— Vai rindo enquanto pode, você ainda me deve um novinho! — declarou apontando para o rasgo que fiz posteriormente.
Por um breve momento, a torrente de espinhos cessou. Eu estranhei a repentina interrupção e pus parte da minha cabeça para fora do sobretudo congelado a nossa frente.
Quando bati os olhos na criatura, fiquei surpresa com o que vi. Ylir se levantava de seu casco espinhoso, desabrochando como uma flor negra, colhida das profundezas do inferno. Seus braços, rodeados de espinhos, eram cones pontiagudos que reluziam a pouca luz que atravessava a poeira e a fumaça ao redor das ruínas. Suas pernas se pareciam mais como uma cauda, conectada até aonde seria seu pescoço, o fazendo se manter de pé.
Se projetando no final do pescoço, sua cabeça era assim como o restante do corpo, mas com seu formato característico. A cavidade dos olhos era vazia, sem vida alguma, ao contrário de sua boca, que babava enfurecida entre seus dentes serrilhados. Por fim, o que mais me pegou de surpresa foi o seu olho vermelho que aparecia na região do umbigo, sempre passando a sensação de estar atento e observando tudo, com pupilas pretas no meio da esclera 1 carmesim que destacavam a aura de mesma cor ao seu redor.
Assim que olhei para trás, na intenção de contar a Ranga o que havia acontecido, dei de cara com centenas de espinhos a nossa volta, flutuando no ar e apontados em nossa direção.
— Tá de sacanagem… — meu companheiro deu com os ombros indignados.
De uma só vez, todos os espinhos foram lançados em nós, mas felizmente, e com muita sorte, conseguimos evitar todos os disparos. Quando pensamos ter acabado, mais surgiram acima de nossas cabeças, nos cercando novamente.
— Ele é chato pra caralho!
— Ranga! — o chamei olhando fixamente para os espinhos a nossa volta — preciso de um favor.
— Você tá sendo muito descuidada, esse é o seu último!
— Relaxa! Eu sei bem o que tô fazendo.
— Ha… — suspirou — fala logo.
— Preciso que… me ajude a ver melhor — curvando levemente meus lábios para cima, pedi.
— Não sei bem como que eu posso fazer isso…
— Tem certeza? — indaguei, olhando para os seus olhos.
— Ah, não! Nem vem!
— Larga de ser chorão e passa pra cá! — estendi a palma da minha mão para ele.
Claramente contra sua vontade, mordendo sua própria boca em hesitação, Ranga retirou seu óculos e me entregou com uma grande dor no coração. Ele parecia perder uma parte de si quando o fez.
— Eu ainda vou sair daqui pelado… — com uma voz chorosa.
Devido à cor da lente usada no óculos, minha visão se tornou um pouco amarelada, por outro lado, em compensação, eu sentia como se pudesse ver claramente a trajetória dos projéteis no céu.
— Seja lá o que você for fazer, é bom fazer logo! — me apressou um tanto quando irritado.
— Pode deixar! — assim que os espinhos foram disparados novamente, eu comecei a me movimentar.
Correndo velozmente em direção a Ylir, desviei de cada um dos seus tiros sem dificuldades. Era como se eu conseguisse ver o futuro, sabendo exatamente por onde e como andar. Apesar de não ter um rosto completamente formada, eu via o desespero de Ylir em seu olho esbugalhado, percebendo que nada que fizesse iria me parar.
Em um instante, meu punho fez contato com o enorme olho de Ylir em sua barriga.
— GAH! — grunhiu com sua boca salivando em ódio.
Por mais forte que tenha sido o meu soco, fui apenas capaz de destruir um pouco o ambiente ao meu redor. Eu sabia que meu golpe havia causado um grande dano nele, mas não senti como se tivesse surtido o efeito desejado.
Seu corpo ainda estava curvado com meu punho em sua barriga, diferentemente de um de seus braços, que abandonou a forma de um cone e se assemelhou a uma mão humana, ainda da mesma cor que o resto de seu corpo.
— Não é suficiente — sussurrou em meu ouvindo, palavras que me torturaram durante muito tempo.
Ele segurou meu rosto com força, com fosse esmagá-lo e em seguida me lançou para uma parede, um pouco distante, a sua frente. Minhas costas estalaram ao destruir a parede e os óculos do meu amigo se estilhaçaram com o choque.
— Droga… mesmo com os óculos… — eu me levantava com uma intensa dor nos braços.
— Você só dá trabalho, garota! — Ranga se aproximou, me apoiando em seu ombro.
— Eu tô bem, relaxa… — me soltando e arrumando minha postura, pronta para mais uma rodada.
— Se é assim, vamos terminar isso logo! — recarregando seu rifle.
— Me diz, qual das duas você prefere? — me referindo as suas armas.
— Ah, não dá pra escolher, eu amo as duas igualmente, sabe? — respondeu com orgulho.
— Tanto faz… — pondo minha mão por cima do rifle, injetei um pouco da minha mana — vamo ver o que isso faz!
— Interessante… — curioso com o que acabara de acontecer — vou te dar cobertura! Acha que consegue?
— Tá brincando? — reativando a chama púrpura em meus ombros, brinquei — tava guardando isso pra esse momento!
Mais uma vez, avancei rapidamente. Ylir parecia cansado assim como nós, vendo que a cadência de seus tiros estava ainda mais lenta. Eu evitava seus golpes agilmente, girando e saltando sobre os espinhos, claro, não poderia me esquecer da ajuda do meu parceiro que atirava nos espinhos que vinham pelo meu ponto cego. Ao me aproximar poucos centímetros do demônio, ele sorriu da mesma forma que havia quando me acertou há poucos minutos, como se eu tivesse caído em sua armadilha.
Sorrateiramente, disparou um único grande espinho pela sua cabeça, sem me dar abertura para desviar.
— EU VENCI! — esbravejou ao som da minha carne sendo perfurada.
— Vai sonhando! — retruquei com minha mão perfurada na frente do rosto.
— Mas o quê? — descrente do que estava presenciando, ainda ouvia o som das minhas chamas.
— Agora, RANGA!
— Os seus favores já eram! — declarou antes de cravar uma bala em cheio no olho de Ylir — Isso agora é uma dívida. TÉCNICA DIVINA: MULTA DE RESCISÃO!
De repente, sentindo um fluxo de mana estranho abaixo de mim, as sombras de Ylir de desgrudaram no chão, o segurando e o aprisionando em si. Aproveitando esse momento perfeito, estendi a mão aos céus.
— O que está fazendo? — me olhou com medo.
Ao longe, era possível ouvir o som da lâmina cortando o vento por onde passava até alcançar a palma da minha mão.
— É só pra garantir.
As chamas mágicas percorriam do meu corpo até a ponta da minha foice. Suavemente, sem pressa alguma, pus meu pé para trás, ajustando minha postura, girei meu torso segurando minha arma até ela ultrapassar minha nuca, para enfim, em um corte limpo e rápido, cortar Ylir de cima a baixo em uma linha diagonal, o dividindo em dois.
Seu corpo sumia em poeira negra, se esfarelando e se misturando ao ambiente. Meu corpo relaxou assim que o demônio desapareceu completamente, perdendo um pouco suas forças, mas me apoiava firmemente no cabo da minha arma.
— Você não disse que tinha uma arma… — Ranga tocou meu ombro com sua mão, dando um sorriso sarcástico.
— E você não falou nada sobre “Técnica Divina” — retruquei.
— Bem, todo mundo tem algo a esconder, não é mesmo? — brincou ao bater sua bunda no chão.
— Fala logo, o que você quer?
— Agora que tudo já acabou… acho que você pode me ajudar a sair daqui.
Vendo meu estado, não havia a menor chance de o carregar para lugar algum, mas antes mesmo de abrir a boca, senti um pouco do meu vigor sendo restaurado, enfim ficando quites.
— Vem… — passando seu braço por trás do meu pescoço, o levantei — a gente tem que achar o resto.
- parte branca do olho[↩]
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.