Capítulo 68 - O Cômico Destino
A Cidadela. Construída em um reino distante, nas dependências de uma estrutura requintada, que sobrevoava os céus acima das nuvens em um arquipélago de ilhas voadoras, ligadas por pontes firmes de mármore e ouro. Atipicamente, sob a luz do sol, uma perseguição acontecia dentro da ilha mais distante à direita da ilha principal.
O perseguido, um simples guarda correndo desesperadamente com uma alabarda na mão, olhava para trás por cima dos ombros repetidas vezes em um curto intervalo de tempo, com medo da besta que o caçava. Sua armadura leve e justa empurrava seus ombros para baixo, o deixando ainda mais cansado, mesmo sabendo que não era a sua armadura que pesava em seu corpo.
A criatura que o perseguia pelos corredores exercia uma pressão inigualável sobre sua presa, se movimentando apenas como um borrão atrás do pobre guarda. Claramente, a fera estava apenas se divertindo com o seu alvo.
— Ficaram sabendo da nova guerreira? — um dos habitantes da prisão celestial perguntou — Tão dizendo por aí que ela é sinistra! Barra pesada!
— Eu… não… — o detento respondeu timidamente.
— Isso aí é lenda urbana, direto corre por aí! — um terceiro prisioneiro debochou.
— Não… — com uma voz grave e assustadora, mais um encarcerado esmurrou a parede que o separava dos demais — como dizem por aí… “A Criança Nascida do Caos”… “O Dragão Ametista”, seja lá qual for o seu nome… é real.
— Ha! Fala sério! — riu, ainda em um tom irônico — Como você diz isso com tanta certeza?
— Faz alguns meses… o mercenário que me contratou pra esse trabalho me disse pra tomar cuidado com ela… O cara mesmo disse que já a viu pessoalmente e que pode ser mais assustadora que o próprio diabo…
— GAAAAAAAAAH! — um grito estridente ecoou pelos corredores da prisão celeste.
— E ela está aqui.
“Ignorem os detentos, quero força total na ala G” uma ordem vinda diretamente do comunicador dos guardas posicionados a frente das celas.
Os guardas se espremiam em um corredor largo, com suas armas e armaduras envoltas por mana e magia elemental. O suor gelado escorria pelos seus rostos, ouvindo os passos pesados do seu companheiro que fugia do invasor. A tensão apenas aumentava a medida que os passos se aproximavam, até ouvirem um grito de uma voz atormentada “FUJAM!”.
No instante em que ouviram seu grito desesperado, também viram seu corpo, junto a armadura, sendo esmagados contra a parede como se fossem latinhas de refrigerante. Todos gritaram bravamente ao avançar, ainda que em suas expressões houvessem apenas desesperança.
Mesmo com os humildes esforços dos guardas, em segundos, a única coisa que se ouvia, era os gemidos de dor de todos os guerreiros caídos no chão.
— Ouviram isso? É ela! — o primeiro detento perguntou mais uma vez.
— Dizem que ela é uma guerreira de Shryne, não é? Então o que ela está fazendo aqui? — agora com medo, o prisioneiro que outrora desacreditava da história.
De repente, o som agudo da porta de metal da cela arrastando no chão rasgou os ouvidos dos presos. Os três prisoneiros se escoravam na parede, amedrontados com a presença do que eles achavam ser uma besta monstruosa na frente de seus olhos.
A luz do corredor batia nas costas da criatura, criando uma sombra que cobria seu corpo, dando um ar misterioso a ela. Seus olhos púrpura analisava lentamente os detentos espalhados pela cela, fixando no fim, seus olhos no prisioneiro mais tímido e assombrado dali.
— Saki? Achou? — a voz da Noelle ecoava no fim do corredor.
— Acho que sim! — Saindo da sombra, Saki agarrou o pequeno prisioneiro e o colocou debaixo do braço como uma bola de futebol.
Saki, como sempre, estava equipada com nada mais e nada menos que uma roupa casual. Vestindo um top preto de alça larga e uma calça legging, também preta, até o tornozelo, que parecia emendar com seu tênis branco de cano alto. Para variar, um manto preto, com detalhes branco e cinza, cobria seus ombros, escondendo a ponta da sua cicatriz. Seu cabelo, embora mais longo, também contava com uma diferença sutil, mantendo pequenas mechas pretas e violeta por cima de sua testa, e deixando um coque arrumado acima de sua cabeça, além de, claro, o seu colar em formato de gota em um tom roxo.
— Você nem pra deixar um pouquinho pra gente, não é? — Akira reclamou.
Akira se escorava na parede, evitando encostar seu cabelo castanho e enrolado na parede suja da prisão. Suas calças largas e confortáveis eram cobertas por armaduras avermelhadas na região das coxas e canelas, assim como seu peito, vestido por uma túnica vermelho-escuro, com ombreiras da mesma cor da armadura, destacando sua pele marrom glacê. Em suas costas, acima de seu ombro, era possível ver a ponta dourada do seu bastão de madeira, agora, melhor do que nunca.
— É ele mesmo? — Noelle observava o prisioneiro imobilizado por Saki.
— Você que me diz — Saki virou o prisioneiro e o segurou no alto, como um gato apanhado pela nuca.
Noelle, agora com seu cabelo longo e prateado que se estendia quase até sua cintura, o ajeitava para trás da sua orelha felpuda. Seus olhos mágicos e azuis como céu estavam repleto de conhecimento, combinando com seu manto claro que envolvia sua armadura composta por uma túnica folgada e confortável, com placas de metal prateadas que protegiam seus membros superiores. A parte inferior de suas roupas consistia em uma calça preta e justa, enrolada por um cinto de couro em sua perna direita que segurava uma pequena bolsa também de couro e botas armaduradas.
— Parece ser ele mesmo! — afirmou.
— Então vamos lá! Temos que recuperar o livro, custe o que custar!
Ponto de Vista de Saki:
Sentindo o ar quente penetrando a densa floresta, percebi, ainda que levianamente, uma grande nuvem de vapor surgindo ao meu redor.
“Respira, concentra, se sinta uma só com a mana caótica em você” a voz de Merlin tocou em minha mente.
Fechei os olhos momentaneamente para sentir o fluxo de mana correr pelo meu corpo desordenadamente. A euforia que percorria meu corpo me excitava, mas, ao mesmo tempo que me entregava a ela, eu deveria ser capaz de segurar os meus anseios.
Sentindo uma furiosa presença dissipando o vapor atrás de mim, abri os olhos rapidamente, bloqueando com o ante braço, um cajado de madeira queimada.
— Tá falando sério? — Akira resmungou antes que eu o segurasse pelo punho.
Eu girei meu corpo para o lado oposto a minha barriga, arremessando meu amigo de costas no chão.
Suas mãos queimaram com grandes labaredas, criando jatos que o impulsionaram para alguns metros distante de mim, aterrizando com suavidade.
— Cê melhorou na aterrizagem — zombei.
— Vamo ver se eu posso falar o mesmo sobre você — girando seu bastão habilmente em torno de seu tronco.
Com o ar quente entre nós e nossos pés encharcados por uma grande e rasa poça d’água, eu pensava nas formas mais eficazes de enfiar aquele bastão no lugar mais escuro do corpo humano.
Nós avançamos um contra o outro, utilizando apenas artes marciais em nosso confronto. Em uma pequena abertura que encontrei ao bloquear um de seus ataques, reuni uma pequena porcentagem da minha mana ao redor do meu punho e golpeei o seu rosto bem no nariz.
Seus reflexos pareciam mais rápidos do que nunca, vendo que o mesmo lançou seu corpo para trás com um mortal antes de ser atingido. Meu adversário, mesmo sendo difícil de admitir, era ágil e astuto, e firmou a base de seu bastão no chão, em uns 2 centímetros abaixo da água, em seguida, subiu no topo de seu cajado, apoiando seus pés um sobre o outro na ponta da arma e curvando seu corpo agressivamente como se estivesse pronto para atacar a qualquer momento.
“Isso é até meio nostálgico” a voz de Merlin estalou na minha cabeça novamente, mas dessa vez, eu sabia que não era apenas na minha.
Akira abriu um sorriso confiante ao ouvir as palavras do mago, o que logo me causou um forte enjôo.
Sem temor as ações do meu amigo, avancei rapidamente, vendo um leve desequilíbrio em meu oponente. Evitando sua queda, Akira girou para frente, acertando seu cajado bem no meio da minha cabeça.
Ao menos foi a sensação que o fiz ter. Eu segurava o bastão com ambas as minhas mãos acima da minha testa, impedindo que o mesmo me alcançasse e conduzindo o movimento do bastão para diagonal ao meu lado. Quando pensei que sua guarda estaria baixa, senti uma estranha leveza ao segurar sua arma.
De repente meu pescoço foi envolto pelas pernas do meu amigo, que me girou como se não fosse nada, me levando ao chão.
— Tem que melhorar sua queda… — brincou com um sorriso arrogante no rosto.
Akira estava bem acima de mim, mantendo meu tronco preso entre sua perna. Eu ri subitamente, deixando sua expressão de dúvida impagável.
Imediatamente depois, algo rápido como um raio explodiu em nossa direção, me libertando sem que ao menos pudesse ver o seu rosto. Eu me levantei habilmente, me preparando para enfim terminar aquela luta.
“UM NOVO JOGADOR ENTROU NA ARENA!” Merlin vibrou.
— Agora pronto. 2 contra 1 é sacanagem! — Akira resmungou.
A breve chuva formada pela água no chão que foi ejetada começara a cair, dissipando pouco o vapor, a nossa volta. Meu olhar passou por cima do meu ombro, vendo o cabelo longo e prateado da Noelle.
— Ah, foi mal. Acho que não vai sobrar nada pra você — disse levantando os ombros.
Noelle avançou instantaneamente, atravessando o vazio entre nós e quase partindo meu rosto ao meio com suas unhas enormes. Meu corpo levemente inclinado se esquivou por puro instinto e reflexo.
A jovem bruxa parou pouco antes do meu adversário, ficando entre mim e Akira. Ela flexionou levemente seus joelhos, erguendo seus olhos azuis determinados.
— Então vai ser assim? — perguntei — por mim tudo bem! — criando um brilho violeta em torno do meu corpo.
— Finalmente algum desafio — Akira respondeu olhando fundo nos meus olhos, acendendo seu punho em chamas.
— Venham! — Noelle exclamou ao invocar suas garras, digo, suas patas de gato trovejantes.
O novo confronto se iniciou. Com poucas palavras nossos golpes seguiam se encontrando bloqueando e contra atacando uns aos outros, mas nunca acertando os ataques. Aquela altura, não é como se estivéssemos nos segurando, todos nós queríamos sair vitoriosos, ao que parece, todos na mesma intensidade.
Ponto de Vista de Merlin:
No dia que encontrei essas crianças na Floresta de Sylvaturga, primeiramente, fiquei assustado com o potencial quase infinito que vi em seus olhos. Segundamente, tive uma crise de riso interna, afinal, chega a ser cômico a forma com que o destino escreve suas histórias.
Alguns dias após encontrá-los, fui contactado por Melissa, uma Rainha de renome e grande guerreira conhecida entre os heróis. Graças a sua paciência, pude explicar a situação de seus soldados sem muitos problemas, vendo o quanto estava preocupada. “Aprender algumas coisinhas com o mestre do Rei de Camelot não parece nada mal…” foram as palavras dela e assim o fiz.
Ao ver o pequeno Akira, logo após me apresentar para Saki e Noelle, fui tomado por um sentimento de nostalgia, lembrando de um velho amigo que fiz há muito tempo. Somando ao potencial não refinado de suas habilidades, me senti na obrigação de, ao menos, guiá-los para nunca mais os encontrar em situações parecidas.
Dentro de seis meses, testei suas habilidades um a um e os soltei novamente na floresta para lutarem entre si. O resultado desse embate? Nada distante das minhas expectativas.
(A curva de aprendizado dessas pequenas monstruosidades é ridícula, nem mesmo meu maior discípulo, Arthur, evoluiu em tamanha velocidade.)
Horas depois, caminhei pela floresta silenciosa a caminho de seu confronto. Confesso que estava ansioso para um resultado diferente.
— Já deu — ordenei ao levantar a palma da mão para frente.
Vendo todos os seus rostos cansados, um de frente para o outro, eles se encaravam intensamente.
— Seus corpos vão explodir se tentarem dar mais um passo sequer, então descansem — Sem mais forças ao menos para responder, Saki, Noelle e Akira caíram de costas na água, apagando totalmente, exaustos.
No mais tardar da noite, sob a lua minguante que iluminava suavemente o alto da floresta, eu meditava no topo da cabeça do meu vínculo mágico, uma enorme serpente cinza, agora, um pouco encolhida na extensão da floresta.
Repentinamente, senti uma sensação maligna preencher minha mente.
— Yo, não deixe mais ninguém se aproximar — ordenei ao meu companheiro, invocando sobre minhas mãos, meu cajado.
Após Jörmungandr se retirar, fiz com que meu cajado, uma grande lasca de madeira de pouco mais de um metro e meio, levitasse no ar e me sentei em sua horizontal.
— Então essa é a garota? — A voz inconfundível de Astaroth, soou no meu ouvido.
Eu me virei gentilmente, com um sorriso e olhar tranquilo, como sempre. Vendo seus chifres curtos e circulares na lateral de sua cabeça, vi pela primeira vez em anos um dos “Demônios de Goétia”. Sua pele pálida como de costume trazia uma aura fria ao seu redor, mas seus olhos pretos e caídos, com pupilas em espirais vermelhas e roxas, me olhavam com certo respeito. Seu corpo estava envolto por uma sombra, avisando que não veio com intensões hostis.
— Isso não tem nada a ver com você, não ouse contar nada a seus irmãos… — levantando sutilmente os meus olhos, mantendo um sorriso calmo no rosto.
— Você sabe, estou apenas curioso.
— Ainda vai morrer por isso um dia.
— Ó! Então talvez devesse matá-la agora mesmo… — puxando para fora de sua sombra, uma mão magra e cadavérica, com partículas escuras de mana envolvendo as garras de seu braço podre.
Nossa conversa se manteve por inteira em um tom sereno, porém, ao sentir sua sede de sangue, meus olhos brilharam em seu brilho róseo, fazendo as linhas ao lado deles criassem um pequeno relevo e se estendessem em meu rosto, cruzando um x um pouco acima do meu nariz.
O corpo de Astaroth paralisou sob efeito da minha magia.
— Por quê você não vai embora? — mantendo o tom inicial da conversa, ainda que meus olhos deixassem claros que seu único movimento iniciaria uma guerra entre nós.
— Hum… — recolhendo sua mão — Quanto pretende interferir?
— O quanto eu achar necessário — respondi calmamente, fazendo minhas marcas regredirem a sua posição original.
— É por isso que todo mundo te odeia — o demônio estendeu a mão para cima, como se esperasse por algo.
— Diga a Lilith que mandei um beijo!
— Não se preocupe — de repente, um gigantesco dragão azul-marinho pousou em sua mão — ela vai saber.
Astaroth segurou acima das garras da besta alada, que imediatamente disparou em alta velocidade para longe da floresta.
“Isso vai dar uma canseira…” resmunguei comigo mesmo em um longo suspiro.
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