Capítulo 69 - Uma Barganha?
Ponto de Vista de Saki:
Jazz, um ritmo aconchegante e belo. O som do baixo me transportava para um pequeno, porém elegante bar. A luz, em um amarelo âmbar, se misturava ao ambiente sutilmente avermelhado, com cortinas vermelhas cobrindo o palco no fim de uma excelente apresentação. O chão, forrado por ladrilhos em padrão xadrez entre quadros pretos e brancos, fazia o barulho do meu salto alto preto ecoar por todo o bar vazio.
Eu caminhava pondo um pé exatamente na frente do outro, desfilando formosamente em direção à bancada do bar. Vestindo um lindo vestido longo e preto, aberto na lateral da minha perda direita, acompanhado de uma estola de pelo branco, envolvendo meus ombros até o ante-braço.
Meu cabelo solto corria até alguns centímetros abaixo dos meus ombros, escondendo a marca de nascença em minha nuca. Transferi o pingente do meu colar para um pequeno pingente em uma pulseira sofisticada em meu pulso esquerdo, combinando com minhas mechas roxas. No outro braço, levemente flexionado para meu torso, eu carregava uma pequena bolsa preta e de alça dourada, que brilhava sob a luz do lugar.
Imediatamente após me sentar ao lado da adega, um copo de vidro, cheio até a boca, deslizou do outro do balcão, precisamente, até minha mão. A bebida, ainda que translúcida, era amarelada, com uma enorme e perfeita bola de gelo resfriando o conteúdo da dose.
O Jazz era tocado elegantemente em um piano ao fundo.
— Foi um golpe forte, não é mesmo? — uma voz, vinda da área mais escura do bar, do outro lado do balcão, soou.
Eu olhei brevemente para minha cicatriz, fechando os olhos, mantendo minha calma e olhando novamente para frente. Em seguida, girei meu corpo em noventa graus, em direção à voz.
— Não o suficiente pra me matar — respondi, mantendo o tom sereno da conversa.
— Bem, graças a ele, agora temos a oportunidade de conversar.
— …
— Adaptação, controle, mas… por fim, paciência. Construí esse lugar aos poucos e esperei que estivesse pronta.
— Entendi… foi um trabalho muito bem feito.
Escutei o banco sendo arrastando gentilmente sobre o piso, seguido de passos calmos em minha direção. Emergindo da escuridão, o manto preto e acinzentado daquele que me acompanhava, surgiu. Ele vestia sua cabeça com um chapéu de aba larga, como uma cartola, com a diferença de que o centro do chapéu era semelhante a um domo, ao invés de um cilindro. Seu rosto era coberto pela sombra que seu chapéu produzia, mas seus olhos dourados brilhavam, mesmo na ausência da luz.
— Me acompanha na próxima música? — estendendo sua mão, com uma luva branca, para mim.
Rapidamente, saquei minha foice de dentro da pequena bolsa, passando minha lâmina por de trás do seu pescoço.
— Sem gracinhas… — o ameacei, aceitando sua proposta.
— Quem você pensa que eu sou? — perguntou com sua voz grave e elegante.
— O demônio dos meus pesadelos… — respondi, o acompanhando para uma área com menos obstáculos.
— Ou a visão que sua mente projetou — parando em minha frente, erguendo minha mão na altura do peitoral.
Ele tinha a exata mesma altura que eu, o que não me deixava incomodada, mas era estranho para mim.
Começamos a dançar. De forma elegante e calma, brincamos no tabuleiro, andando ladrilho por ladrilho, como se fossemos parte do jogo de xadrez.
— E quem está me dando a honra?
— Ainda não me deram esse luxo… costumavam dizer que sou uma criatura inefável.
— Eu não sei o que isso significa… — ri desconsertada.
— Talvez sua amiga saiba o nome perfeito para mim.
— Vou perguntar quando a vir…
Dançamos em silêncio por alguns longos segundos.
— Então, o golpe que levei, desfez o selo?
— Basicamente, o enfraqueceu, melhor dizendo.
— E por quê não dominou o meu corpo assim que pôde. Agora tem total liberdade, não é?
— Sim… quando seu corpo fraquejou, eu poderia ter tomado o controle a qualquer momento, mas agora que se recuperou… não tenho mais essa oportunidade.
— Tá falando que não consegue me dominar?
— Você pode não acreditar nisso, mas você tem um grande senso de si mesma e uma forte presença. Mesmo que eu queira tomar o seu corpo, não conseguiria.
— Não sei se consigo acreditar nisso.
— Eu tenho uma proposta para você.
— Uma proposta?
— Deixe-me habitar o seu corpo, te darei força necessária para subjugar seus inimigos.
Eu soltei sua mão no meio da dança, sem o responder e voltei para o balcão, sem me sentar.
— Foi mal, mas não preciso da força de ninguém — dando um gole em minha bebida, na qual o gelo já havia parcialmente derretido.
— Eu entendo o seu orgulho, mas peço que entenda, não quero me tornar uma de suas armas.
— Eu vou pensar no seu caso — recolhendo minha bolsa.
— Certo…
Antes de ir embora, virei-me para o demônio e olhei no fundo dos seus olhos dourados. Naquele momento, devo confessar que sua expressão indiferente ao meu olhar intenso me despertou interesse.
— A bebida tava ótima… e você dança bem.
Em seguida, o bar desapareceu gradativamente.
Alguns dias se passaram. O treinamento com Merlin estava intenso, mas eu sentia minhas habilidades sendo aprimoradas a cada dia.
Eu sentia a areia quente penetrando entre meus dedos, enquanto eu aproveitava o brilhante sol na minha pele, formando uma marquinha bronzeada.
Há tempos eu não vestia um biquíni, mas infelizmente, o momento dentro da minha mente apenas disfarçava o frio que fazia na floresta afora.
— Anzu… é um nome legal — disse o demônio misterioso, abaixo de um sombreiro, escondendo-se do sol escaldante da praia.
— Lembro de já ter ouvido falar desse nome em algum lugar no meu mundo… — eu me sentava ao seu lado, sentindo a brisa quente.
Pouco tempo após nos conhecermos, Merlin retirou completamente o selo que prendia o demônio que habitava em meu corpo, assim, pronto para as consequências disso, seja lá quais fossem, recomendou que eu conhecesse mais sobre a entidade que estava dentro de mim. E lá estava eu.
— Esse lance de habitar o meu corpo… o que você ganha com isso?
— Uma oportunidade.
— O quê?
— Me diga o que faria se todos ao seu redor rissem e duvidassem de você.
— Provavelmente bateria em todos eles.
— E se todos fossem muito mais fortes que você pensa?
— Ficaria mais forte e depois bateria em todos eles.
— Exatamente.
— Então você quer se vingar?
— Eu não colocaria dessa forma, mas…, sim, darei a volta por cima. Infelizmente, preciso de um corpo para isso.
— Isso é bem mais simples pra alguém que parece o Alucard.
— Quem?
— Esquece.
Os dias se passaram tranquilamente, o inverno que acabara de começar congelava minhas articulações, enquanto tudo que eu tinha para me esquentar era um manto que cobria dos meus ombros até o quadril com uma malha fina.
Merlin se aproximou do nosso acampamento na floresta, silenciosamente se juntando a nós ao lado da fogueira.
De dentro do seu cabelo, semelhante a um arbusto coberto de neve, a serpente que o acompanhava despregou-se de suas roupas, rastejando pelo seu corpo até o chão. Jörmungandr pelo acampamento, aproveitando o calor da fogueira.
— Esse bicho faz o quê o dia todo?
Maldita seja as minhas palavras e o dia que as proferi.
— PINICO! PINICO! PINICO! — eu clamava por misericórdia enquanto a serpente esmagava meu pescoço e aprisionava minhas mãos com seu corpo.
— A Yo é fêmea, sabia? — corrigiu Noelle, fazendo carinho em sua cabeça.
Eu quase fiquei surpresa ao vê-la como um animal dócil se enrolando aos braços da jovem bruxa, já que há poucos segundos, ela parecia uma criatura do submundo prestes a sugar a minha alma.
— E então? Como vai o treinamento? — perguntou o mago, colocando uma grande peça de carne sobre a fogueira, apoiada sobre dois gravetos.
Minha boca se encheu de saliva, sedenta.
— Controle de mana nunca foi difícil pra mim — Noelle respondeu — acho que tô evoluindo melhor do que esperava.
— Pra ser sincero, ainda tô pegando o jeito — suspirou Akira, lançando seus braços para cima de sua cabeça e repousando suas costas em uma pedra.
Merlin olhou para o lado, curioso, me vendo ainda hipnotizada pela carne.
— E você, Saki? — limpando a garganta para chamar minha atenção.
— O quê? — voltei para a realidade.
— O treinamento…
— A, é complicado…
— Explique melhor.
— Por conta da manipulação do Caos, a minha percepção de mana não é como a de vocês…
— Ainda assim, vejo que está progredindo.
— A absorção de partículas elementais somada as partículas de Caos deixa tudo mais complicado, é como se eu tivesse tentando agarrar algo dentro de um tornado.
— Isso por quê está tentando fazer tudo de uma vez.
— Como é?
— Há alguns meses, você disse que o Caos é como a mana, só que mais bruta, agressiva e “agitada”.
— É, mas nã–
— Tem que aprender a controlar isso, antes de passar para o próximo passo. O seu fluxo de mana não é comum, ele não orbita o seu núcleo — Merlin se levantou, observando as fagulhas da fogueira como se fossem partículas de mana — O aprimoramento de suas capacidades físicas vem da tentativa de organizar o seu fluxo de mana, é como se você estivesse tentando usar um poder que não é seu.
— Tá me dizendo que eu tô usando meu poder errado?
— Basicamente.
— E o que eu deveria fazer então.
— Isso é algo que só você pode descobrir.
As palavras de Merlin, ao mesmo tempo que iluminavam minha mente, me jogaram novamente no escuro. Apesar disso, ao saciar minha fome dando uma colossal abocanhada no pedaço de carne, tive uma ideia que poderia solucionar o meu problema.
6 meses se passaram, já estávamos há um ano treinando com o Mago Merlin. Seu conhecimento vasto sobre magia era impressionante, “Ele sabe coisas que nem mesmo estão nos livros” Noelle me disse uma vez, impressionada com suas capacidades.
Dentro desse período, pude evoluir ainda mais do que meu treinamento em Antares, indo além das minhas limitações físicas. Mas diferente da minha amiga, não sou a maior fã de ficar explicando cada detalhe dos meus estudos, meu lance é mostrar!
— Estamos fora — Merlin avisou ao ver o sol frio do outono raiar em seus olhos.
— Fora do quê? — meu amigo, Akira, arqueou a sobrancelha.
— Do alcance de Sylvaturg, o fim da barreira.
— E o que isso quer dizer?
— Espera um pouco — interrompeu Noelle — que dia é hoje? — com um olhar assustado em seu rosto.
Merlin levantou um sorriso perverso, sabendo do que estava por vir.
— É o seu teste final!
— Não me diga qu–
— É a temporada dos monstros! — O mago exclamou, dando as costas para nós.
— Eu juro que não tô entendendo… — relaxei com o braço apoiado na minha cintura.
— A cada 4 anos, monstros e criaturas mágicas atacam tudo que veem pela frente sem distinção, tomadas por uma raiva desconhecida.
— É tipo a copa?
Silêncio perturbador.
— A temporada inteira dura cerca de um mês, é só voltarem vivos e assumirei que estão prontos.
— Já tô vendo onde isso vai dar… — Akira aceitou seu destino.
— A, mas não se esqueçam — olhando para nós por cima dos ombros — essa é a primeira temporada do século.
Merlin desapareceu no meio das árvores sem ao menos ver nossas expressões em dúvida.
Nós três nos olhamos confusos, sem entender o perigo que havia sido alertado.
— Temporada do quê?
“ROOOOAAAAR” um rugido furioso ecoou pelo restante da floresta.
Eu olhei para cima, curiosa e não tão assustada quanto meu amigo, e vi uma criatura gigantesca, andando com seus dois pés peludos, atravessando a floresta como se fosse apenas com campo com grama alta. Seus olhos escuros se viraram para nós, com fúria em um brilho carmesim.
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