Capítulo 73 - Solidão de Dois Mil Anos
Em meio a todo aquele cabaré, eu não conseguia acreditar em quem estava bem na frente dos meus olhos.
— Saki? — Mika olhou pra mim também desacreditado, um tanto quanto constrangido.
— Pera aí, vocês se conhecem? — Akira pôs sutilmente a mão em meu ombro, me inclinando para ele.
— É… sim… ele é meu amigo de infância.
Meu amigo, quase um irmão, se desprendia das mulheres sensuais que o cercava, rapidamente, agarrando e vestindo uma jaqueta azul escura com detalhes laranjas, cobrindo apenas seus braços e costelas.
Nós nos olhamos silenciosamente por alguns segundos, olhando um para o outro de cima a baixo, tentando nos reconhecer, cruzando meus olhos em brilho purpura com sua pupila azul-marinho.
— Desde quando você tem tanquinho? — perguntei.
— QUE PORRA TU TA FAZENDO AQUI, MULHER? — gritou euforicamente por cima.
O silêncio absoluto que assolou o lugar nos fez chegar a conclusão que seria melhor ir para um lugar um pouco mais vazio. No caminho, eu acertava meu rosto com alguns tapas e até mesmo pedi para Noelle me beliscar, só para ter certeza de que não estava em um sonho.
Mika nos levou para um canteiro de flores, distante das luzes quentes do Jardim. Lá eu contei a ele um breve resumo das minhas pequenas aventuras desde que cheguei ao Éden, enquanto o mesmo ria de algumas bobeiras que Akira e Noelle comentavam periodicamente.
— Deve ter sido difícil… — disse, ainda recuperando o fôlego após tanto rir — eu até entendo um pouco.
— Saki disse que vocês são amigos de infância — Akira interviu rapidamente — então vocês vieram do mesmo lugar?
— Até aonde eu me lembro, sim.
— E quando foi que você chegou aqui? — ansiosa, fui direto para as perguntas que estavam me matando — E como conseguiu entrar no Jardim sozinho? Não vai me dizer que você também é uma desses “Gloriosos Heróis”, não é?
— Ah, tem um tempinho… disso eu me lembro bem. No dia do seu aniversário, era bem no meio da semana, eu fiquei trabalhando até tarde já que meu chefe era um pau no cu e disse que eu precisaria fazer hora extra naquele dia. Só sei que quando finalmente pude sair, fui correndo pra sua casa pra gente comemorar e ainda te fazer uma surpresa — ele contava enquanto olhava para as estrelas, como se estivesse sendo afogado em um mar de nostalgia — mas chegando lá, eu te vi virando uma esquina no fim da rua e fui correndo atrás de você. Eu fiquei preocupado quando vi que cê tava entrando em um galpão velho, abandonado e sujo, e então entrei, acreditando que tinha alguma coisa errada envolvida. No fundo do galpão tinha uma porta de emergência brilhando, a luz era tão forte que pensei que ia ficar cego.
Mika fechou os olhos com um suspiro, olhando novamente para baixo.
— Pra resumir, só de chegar perto da porta eu senti meu corpo sendo sugado, e quando menos percebi, estava em um mundo completamente diferente. Então tecnicamente, eu vim logo depois de você.
— Cara, era só você ter me mandado um zap…
— Pera aí, tecnicamente? — minha amiga arqueou a sobrancelha, com uma dúvida cruel em sua expressão — Se você entrou no portal logo depois, vocês deveriam ter se encontrado ainda naquela floresta. Exceto se o portal tivesse uma espécie de aleatorizador que te levou para outro lugar e… — ela continuou afundada em seus pensamentos.
— Ela é doidinha assim mesmo? — Mika sussurrou para mim.
— Você acostuma.
— Mas sim, tecnicamente. Pode não parecer, já que eu sou lindo e saradão até mesmo pra minha idade! — respondeu com arrogância, esbanjando seus músculos.
— Que merda você tá falando, vei. A gente só tem 21.
— É baaais ou beeenos — brincou.
— Eu juro, se você imitar o poderoso castiga de novo, eu choro de raiva aqui na sua frente.
Meu amigo se levantou calmamente e encarou o horizonte. Apesar da sua alegria e personalidade bem humorada, ele parecia distante, com uma pitada de tristeza em suas falas.
— Você não sabe o quão bom é quando alguém entende o que você fala… — com uma voz melancólica — É tão aliviante…
— Cara… — eu me levantei, levemente preocupada — você tá bem?
— Ah… que bom! — agarrei seu ombro com firmeza, o puxando para mim — Você não faz ideia do quanto eu tô feliz em te ver! — declarou com seu rosto afundado em lágrimas, ainda assim, com um sorriso.
— Mika… — eu o envolvi em meus braços, sentindo seu corpo relaxar aliviado — há quanto tempo você tá aqui?
— Dois… dois mil anos…
Meus olhos se arregalaram perplexos, o silêncio de todos, ainda mais em choque, deixava apenas o som do vento correndo entre nós.
Mika foi o meu único amigo durante o meu tempo na terra, o único que conseguia me fazer largar os jogos e mangás para dar uma volta na cidade. Antes mesmo de meu pai sumir quando eu era pequena, ele já era o meu melhor amigo e… durante todos esses anos, essa foi a primeira vez que o vi chorar com tamanha tristeza.
Eu o apertei forte, dessa vez, sem deixar a minha curiosidade definir as minhas ações, apenas apoiando, sentindo, confortando o coração do meu amigo.
— Foi mal… — me soltando lentamente ao limpar suas lágrimas — você não deve tá entendendo nada.
— Não vou mentir, nunca imaginei que iria te ver assim algum dia — agora, enfim, aliviada, pude perguntar — o que foi que aconteceu?
— Depois de entender mais sobre como funciona a magia neste mundo, cheguei a conclusão de que o portal que atravessamos poderia ser acessado apenas por seres não-mágicos. Seja lá quem estava por trás disso, não queria o nosso mundo tivesse sido invadido pelos habitantes do Éden. Por isso, quando passei pelo portal, acredito que a magia de espaço e a minha magia do tempo tivessem entrado em conflito, me atirando através do espaço-tempo. Isso me fez chegar aqui dois mil anos atrás, num momento onde a guerra do milênio estava esfriando.
— Pera, pera, pera, pera aí! — uma dúvida cruel surgiu na minha mente — como assim a SUA magia do tempo? Desde quando você possui uma magia?
— Essa era a surpresa que eu queria te contar naquele dia… — respondeu com um sorriso desconfortável.
— Quando chegou aqui, Saki não tinha nenhum tipo de magia, até aí tudo faz sentido — Noelle comentou — Além disso, magia de espaço e de tempo não se combinam. Existe um motivo para não existir uma maneira de viajar no tempo, é uma das leis da natureza. Mas isso não explica uma coisa…
— Em minha defesa, eu tive dois mil anos pra desenvolver esse shape — Mika se explicou com orgulho.
— Te liga, maluco — eu o acertei bem na cabeça — já era pra você tá morto!
— Exatamente, por mais que ambas as magias tivessem te jogado para outro momento do espaço-tempo, o que justifica essa aparência jovial? — ela perguntou, cutucando seus braços e disparando leves descargas elétricas — não me parece ilusão ou algo relacionado.
— Ah… — suspirou desapontado — Essa é o preço que aqueles que possuem mana pagam ao tentar ir para outro mundo.
— Então… você ainda tentou voltar?
— Claro! Quando eu cheguei aqui e percebi que se tratava de um mundo mágico, eu pensei: “A Saki vai adorar isso!”. Bom, eu não podia perder a oportunidade de explorar um mundo mágico, era como se fosse um sonho! Passei anos descobrindo mais sobre os meus poderes e sobre este mundo enquanto procurava por minha amiga, que até então, não tinha magia nenhuma.
— Oh, que fofo, ele queria me proteger… — brinquei rapidamente.
— Isso foi só por alguns dias, depois de um tempo, percebi que a altura do campeonato você já devia ter arranjado confusão com a pessoa errada e morrido.
— Esse cara te conhece bem — Akira me olhou com um sorriso debochado.
— Enfim, vários anos se passaram, meu corpo e meus poderes já haviam se desenvolvido bem. Eu também já havia pesquisado bastante sobre magias de espaço e como funcionavam, e por mais que minha vida estivesse bem mais emocionante do que antes, eu comecei a sentir falta da minha vida antiga — eu enfim comecei a entender um pouco dos seus sentimentos — Celulares, amigos, jogos, animes… eu já não os via há muito tempo.
Em uma breve pausa, Mika estendeu seu braço ao chão, arrancando um pequeno punhado de grama.
— Eu consigo alterar o tempo das coisas que eu toco, alterando seu estado e até mesmo a natureza delas — o punhado de grama começou a secar rapidamente em sua mão — Com a ajuda de alguns companheiros que fiz ao longo dos anos, desenvolvemos um dispositivo capaz de tornar o espaço tangível, ou pelo menos uma parte dele. Nós podíamos tocar no espaço como se ele fosse um objeto. Para proteger o meu mundo de possíveis invasões e para enfim conseguir voltar, uma longa viagem solitária me levou de volta ao ponto que iniciei minha aventura, uma área devastada pela guerra. O dispositivo me permitiu tocar a área aproximada de onde estaria o portal no qual cheguei, e eu consegui encontrar o tempo exato onde ele estaria aberto.
— I-Isso é impossível! — Noelle gritou.
— Nisso você tem razão. Eu violei uma das leis da natureza ao tentar passar por um portal já fechado no presente, porém, aberto no passado. Ao ser novamente vomitado pelo portal, minha punição havia chegado. Meu corpo estava preso em um determinado ponto do tempo, mas especificamente, no momento em que quebrei as regras.
— Tá, eu não entendi, foi uma punição ou uma benção? — meu amigo questionou, com certa inveja.
— Eu dei sorte! Querendo ou não, a natureza é justa!— sorriu — meu corpo estava no auge da sua forma física. Além disso, como não sofro alterações, não preciso cortar o cabelo ou não posso morrer de alguma doença!
Vendo toda a soberba, eu olhei para minha amiga, flexionando os meus dedos, imitando um gato com as mãos. Ela me olhou de volta, concordando com a minha ideia.
Subitamente, Noelle rasgou o peito do meu melhor amigo de cima para baixo com suas unhas.
— AAAAH! — Mika gritou de dor e agonia! — Que porra foi essa?
— Relaxa, é só pra testar — brinquei, vendo seu peito voltando ao estado original vagarosamente.
— Dois mil anos se passaram… e você continua maluca!
— E você continua exibido…
Algumas boas risadas depois, Noelle continuou a conversar com Mika, sempre anotando algo no livro de sua mãe. Akira voltou para a casa antes que ficasse tão tarde e minha amiga o acompanhou logo em seguida, afinal, eu era a única que ainda não tinha ninguém para me treinar.
Por outro lado, pude enfim estar a sós com o meu amigo de infância, colocando o papo em dia e conversando como nos velhos tempos.
— Vocês têm algum tipo de nome pro grupo? Sei lá, tipo Vingadores, Liga da Justiça.
— … — seu silêncio me deixou ainda mais curiosa.
— Não vai me dizer que vocês se chamam de OS JARDINEIROS!
— Hahahahaha! — ele riu descontroladamente — Não viaja!
O silêncio tomou conta por um momento após rirmos, até que Mika enfim o quebrou.
— Você fez bons amigos, Saki. Confesso que não achei que iria se dar bem com as pessoas daqui.
— Eu não tive muita escolha… mas não me arrependo.
— E não sente falta da sua vida antiga?
— Claro! Só de pensar que não vou poder ver o fim de One Piece já me dá vontade de chorar! Faltava tão pouco!
— Hahaha!
A calmaria confortável que apenas bons amigos poderiam desfrutar sem expressar uma única palavra chegou enquanto vislumbrávamos a vista da linda cidade. Por um instante, os acontecimentos de mais cedo voltaram a minha mente.
— Você conhece o Gilgamesh, não é? — perguntei repentinamente.
— Aquele cara arrogante? Conheço mais do que gostaria.
— Eu tenho que fazer ele me treinar!
— Como é? — gritou eufórico — Cê tá maluca? Pode esquecer! Esse cara é doido e orgulhoso demais pra treinar alguém e mesmo que consiga, ele não vai pegar leve! Se quiser, pode deixar que eu mesmo te treino! Eu aprendi muita coisa em dois mil anos!
— Cara, você podia ter passado todo esse tempo estudando magia e se tornado um dos grandes heróis desse mundo, mas você preferiu aprender a fazer música e a produzir cerveja!
— Calma lá, eu me tornei um dos heróis. Meu rosto tá em um daqueles vitrais!
— VOCÊ RECRIOU LÉO SANTANA! — Gritei enfurecida, por mais que ainda achasse meio cômico.
— Você devia me agradecer que eu tô espalhando a palavra do Swing Bahiano. Eu não sei se você ouviu, mas tem uma galera sofrendo no bar ouvindo Pablo!
— PABLO, O CANTOR APAIXONADO? — eu não podia acreditar.
— Ele mesmo, a letra tá um pouco diferente por quê eu não lembrava todas de cabeça, mas…
— Você vai me mostrar o lugar! — olhei no fundo dos seus olhos enquanto segurava a gola da sua jaqueta.
— T-Tá bom — ele riu.
Ainda pensando no meu objetivo no Jardim, não pude deixar insistir.
— Preciso que ele me ensine… — resmunguei com o rosto afundado nos meus joelhos.
— Já disse, eu posso fazer isso.
— Não… aquele cara… ele é durão. Não vai pegar leve. É disso que eu preciso se quiser ficar mais forte!
— Ah… — Mika logo desistiu da ideia — Você pelo menos já tentou falar com ele?
— Já… não saiu muito bem…
— O que ele disse?
— Em resumo, eu não tenho motivo nenhum pra lutar.
— Quê? Mas isso não é verdade!
— Não exatamente. O meu pai me mandou aqui, mas foi tudo bem misterioso. Eu não sei o que exatamente devo fazer ou pra onde ir… ainda não sinto que tenho um motivo para o que lutar.
— E as pessoas que você conheceu? — ao ouvir as palavras de meu amigo, algo estalou em minha mente — Esses seus amigos… não são motivo suficiente? Eu perdi muitas pessoas ao longo desses anos, mas… até hoje, carrego seus sonhos e esperanças comigo.
Mika puxou um colar de seu bolso. Ele não me mostrou o que era, mas do jeito que ele segurava com força, parecia importante, valioso demais para perder.
— Eu quero que um raio me acerte se eu estiver errado, mas eu acho que você tem sim um motivo para lutar.
Eu olhava para ele com certa admiração, sentindo seu apoio por mim. Bem, nenhum raio caiu em sua cabeça, então achei que valia a pena mais uma tentativa.
No dia seguinte, subi novamente a escadaria do Salão Principal, encontrando Gilgamesh com as mesmas roupas do dia anterior.
— Você só tem essa roupa? — zombei confiante.
— Pensei que tinha dito pra sumir da minha frente, mas respondendo sua pergunta, eu tenho uma máquina de lavar muito boa…
— Eu quero que você me treine.
— Já disse que não.
— Merlin disse que existem técnicas que me deixaram mais forte. Forte o suficiente para alcançar meu objetivo.
— Eu tô começando a achar que você é surda — ainda não me dando o ar da sua graça.
— Meu pai dizia que eu era uma garota teimosa.
— É um homem sábio pelo visto.
— Sei não, ele desapareceu e deixou uma garotinha indefesa sozinha no mundo… mas tenho certeza que ele tinha um bom motivo pra isso.
Gilgamesh olhou sobre seus ombros, me vendo caminhar tranquilamente em sua direção.
— Desligar — sua voz ecoou pelo ambiente, fazendo com que toda a grama, arbustos e até mesmo o sol desaparecesse.
Sua sala de treinamento cinza e escura tomou sua verdadeira forma. As luzes se acendiam gradativamente, demorando alguns segundos para iluminar toda a sala.
— Eu vou te dar um bom motivo… e fazer você engolir suas palavras — o convite estava feito.
Um brilho dourado tomou seu corpo momentaneamente, tempo o suficiente para invocar sua armadura de ouro.
— Ótimo… vou me certificar de que você nunca mais será capaz de levantar a cabeça.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.