Capítulo 79 - O Trauma de uma Bruxa
Durante todo o tempo em que estive nesse mundo, não houve um único momento em que vi Elena naquele estado.
— E-Elena? O que tá fazendo aqui? — perguntei em choque.
— Finalmente! — Melissa exclamou.
O fato da minha mestra nem se dar ao trabalho de virar-se para mim, me despertou uma sensação ruim, como se uma tragédia tivesse acontecido.
— C-Conseguimos o livro — eu avançava, ainda estranhando a situação — mas, o que aconteceu? — perguntei novamente ao chegar ao lado da rainha.
— Enquanto vocês estavam rindo e se divertindo aqui em cima, lá embaixo virou uma completa zona… — disse Elena, enfurecida.
— Elena! Eu já disse! Não é culpa deles!
— Do que vocês estão falando? — Noelle interrompeu.
— É melhor vocês se sentarem — Merlin apareceu de repente, jogando uma toalha sobre os ombros de Elena.
Nós nos sentamos no mesmo instante, curiosos e apreensivos. Ao redor, todos pareciam inconformados, até mesmo a Gilgamesh, com a angústia entortando seus lábios.
— Pra começar, quero que entendam uma coisa: O foco de vocês em seus treinos é essencial, preocupações a mais só iriam atrapalhar o seu crescimento. Vocês serão peças-chave no que está por vir — disse o mago — Com isso em mente, é melhor que Melissa continue a partir daqui.
Nós três acenamos com a cabeça, ainda mais curiosos e preocupados. Melissa inclinou seu corpo para o lado, nos olhando com firmeza e seriedade.
— Infelizmente, o desaparecimento dos Livros Sagrados não é o único problema que enfrentamos. Não é de agora que ataques de demônios estão cada vez mais frequentes. Pequenos vilarejos são dizimados toda semana — ela suspirou com um peso massante nos ombros — Há cerca de dois anos, nações do mundo inteiro unem forças e ajudam umas as outras com suprimentos e poder de fogo.
— Logo depois que aquilo aconteceu… — sussurrei para mim mesma, sentindo um formigamento na cicatriz feita por Beelzebub.
— Por enquanto, estamos nos virando bem — continuou — a guerra é assim, fazemos o possível para salvar a todos — Elena cerrou seus punhos com ódio ao ouvi-la — mas as tropas do inferno voltam cada dia mais fortes, é questão de tempo para que a guerra chegue ao fim com a nossa derrota.
— N-Não tem nada que podemos fazer? — minha amiga interrompeu aos gritos.
— Merlin nos contou sobre sua situação, foi o que estávamos discutindo antes de chegarem.
— Ainda falta mais 3 anos… — sussurrei novamente.
— Mesmo assim, ainda temos esperança — disse, olhando para mim — ainda temos uma carta na manga. Por isso, vocês precisam treinar, até que se tornem páreos.
— Eu entendo…
— Ótimo…
— Mas eu ainda não entendo uma coisa…
— O-O que seria?
— Agora que sabemos de tudo isso, ESPERA MESMO QUE A GENTE FIQUE AQUI COÇANDO O SACO ATÉ CHEGAR A HORA?
— Ela tem razão — Akira se levantou — em um momento como esse-
“BLAM!” um estrondo vindo da ponta da mesa.
— Não está esquecendo de mais nada? — Elena resmungou.
— Não! Eu só… não sei como dizer!
— Desembucha logo!
— Calma! Eu vou falar!
— Quando foi que se tornou tão covarde?
— Se acalmem, vocês duas! — Merlin ergueu a voz.
— Galliard está morto! — minha mestra, com toda a sua fúria, socou a mesa ao gritar, quebrando grande parte dela.
Noelle, que até então estava apenas escutando as palavras da rainha, voltou aos seus sentidos. Seus olhos se arregalaram em surpresa e medo, o silêncio e destruição deixaram o clima mórbido e aflito, fazendo com que todos pudessem ao menos respirar por um momento.
— D-Do que ela tá falando? — Noelle se voltou para Melissa, com uma voz trêmula — Tinha dito que ele só estava desaparecido!
— É-É apenas uma suposição! Só temos uma ideia de onde ele possa estar. É tudo!
— E o que estamos esperando? Por que não fomos atrás dele ainda?
— Nós vamos! Apenas temos que nos preparar…
Sem mais uma palavra, Melissa encerrou aquela reunião. Ela parecia exausta, assim como Elena. Foi como se o senso comum fizesse com que todos saíssem do salão, deixando apenas as duas ali.
Desde então, Noelle parecia meio aérea, imersa em seus próprios pensamentos. Ela se batia com as pequenas pedras e postes nas ruas, e assim que chegou em casa, deitou-se e permaneceu em completo silêncio
No dia seguinte, quando acordei, não a encontrei em lugar algum, e enquanto Akira ainda dormia, saí rapidamente para procurá-la. Perguntei a várias pessoas pela cidade: “Viu uma branquela de cabelo prateado por aí?”, mas ninguém soube responder. Por sorte, encontrei o Rei Arthur próximo ao salão principal. Ele disse que Noelle poderia estar no campo de treinamento próximo à saída do Jardim, um local isolado onde eles poderiam usar seus golpes poderosos sem problemas.
E assim como foi dito, lá estava ela, focada, no ápice da sua concentração, emanando uma quantidade exagerada de raios do seu corpo enquanto, ao mesmo tempo que acertava um títere humanoide.
— Noelle? — chamei assim que a vi.
— Huh? — Apesar do seu foco, ela parou ao me ouvir.
Foi estranho, em momentos assim, o comum era chamá-la durante uns bons minutos.
— Você não me parece muito bem.
— Eu tô ótima — disse com um sorriso desajeitado.
— O que tá fazendo?
— Treinando — ela voltou a acertar o títere.
— Isso eu percebi, mas… é raro te ver praticando um mano a mano — eu me aproximava lentamente.
— Deixei isso de lado muitas vezes, vou recuperar esse tempo perdido. Ficar mais forte! — de alguma forma, eu senti como se seus verdadeiros sentimentos estivessem ocultos em suas palavras.
— Entendi… por causa do Galliard, não é? — ela parou de repente.
— A Rainha e a Senhora Elena vão reunir uma equipe de busca pra ir atrás dele… — seus punhos cerraram com certo medo e raiva — Não importa o que aconteça, eu vou atrás dele e vou salvá-lo!
— Não vão deixar a gente ir, você sabe né? — perguntei, cruzando meus braços.
— Sei bem disso… mas não pretendo ficar parada.
— Eu acho que sei o que pode te animar!
— Eu já disse — ela riu brevemente — eu tô bem!
— Certeza? — eu a surpreendi com um chute em seu braço.
— EI! — minha amiga defendeu agilmente, em choque com meu movimento — O que tá fazendo?
— Que foi? Tá com medo? — provoquei com um sorriso e olhar arrogante.
— Não, é só que você me acertou do nada!
— Isso é papinho de quem tá com medo — eu firmava minha base, pondo os punhos a altura da minha cabeça.
— Quê? — sua expressão confusa era impagável.
— Vem tranquila… — chamei, acenando com o dedo indicador.
Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto, em seguida, Noelle também se preparou para a luta.
— Tem certeza disso?
— Mano a mano… sem magia, sem armas… trocação franca! Não se segure!
Apesar das restrições, Noelle disparou em minha direção tão rápida quanto um raio, carregando seu corpo próximo ao chão. Meus reflexos mal puderam a acompanhar, quando menos esperei, seu punho já estava prestes a acertar meu queixo. Eu me esquivei por pouco, mas minha oponente mal me deu chance para me concentrar.
Seus golpes eram rápidos e certeiros e com exceção daqueles no qual evitei, sua força era notável, bom… ela só não era tão forte quanto eu. Buscando uma brecha em seus ataques, encontrei um no instante que ela ajustava a posição de seus pés, o que me deu o segundo necessário para acertar seu peito com o antebraço e aumentar a nossa distância.
Ainda assim, velocidade e agilidade eram seus pontos fortes e tudo que consegui fazer foi igualar nosso confronto. Cada um de nossos movimentos eram respondidos com contra-ataques, mais rápidos, mais fortes, mais divertidos.
A medida que nossa luta progredia, era como se Noelle ficasse mais confortável, mais relaxada. Ela estava a vontade para se movimentar. Ver aquilo, junto à diversão dos nossos punhos se chocando, colocava um sorriso no meu rosto.
Alguns bons minutos depois, com ambos corpos cansados e suados, nós caímos no chão.
— E aí? — ofegante — Melhor?
— É… acho que sim.
— Às vezes… focar em seus próprios punhos é melhor do que ficar pensando demais.
— Não gosto muito disso, mas… talvez você tenha razão…
— É só esvaziar a mente, não pensa em nada. Tipo o Akira.
— Pffft! — ela segurou o riso educadamente.
Por outro lado, eu ria sem temor e por consequência, ela riu logo em seguida.
Ponto de Vista de Akira:
Ao acordar no outro dia, Saki e Noelle já não estavam mais em casa. Eu caminhei pelas ruas as procurando, até que, de repente, algo me chamou.
— Ei! Akira! — um sussurro misterioso soou ao lado de um arbusto.
Não importa o quanto olhasse para os lados, a conclusão era inevitável. Eu estava louco.
— Aqui, cabeção! No arbusto!
Mirando os olhos em direção a um pequeno arbusto do meu lado, ver uma cigarra escondida atrás de uns galhos.
— Wu-Wukong? — gritei espantado
— Fala baixo, idiota! — meu mestre repreendeu no mesmo instante — E eu já falei, é Mestre Sun Wukong.
— É um nome muito grande, não vou te chamar assim — disse, cruzando os braços.
— Tsc! Que seja! — grunhiu revoltado — Só me encontra do lado da fornalha, tenho que te contar um negócio — ele sussurrou poucos antes de alçar voo.
Ao me afastar do arbusto, percebi algumas pessoas me olhando, algumas curiosas, outras com um nítido olhar de estranheza.
Eu suspirei brevemente, pensando “Elas devem estar treinando… acho melhor eu ir também”.
Chegando próximo à fornalha na qual Merlin me prisioneiro por dias, procurei o macaco fedorento por todos os lados, mas não o achei.
— Ai, ai… talvez eu deva só esperar ele chegar… — soltei aos ventos, sentando em uma pedra ali perto.
Assim que relaxei meu corpo, uma bomba de fumaça explodiu acima das árvores. Meu mestre macaco se revelou por de trás da fumaça, atacando com seu bastão, mas sem muita surpresa, me esquivei agilmente para o lado, deixando apenas uma pedra partida ao meio para trás.
— “Quanto mais malandro o homem for, maior será a sua vantagem!”, não é isso? — brinquei, citando suas próprias palavras.
— Fingiu baixar sua guarda? Isso é trapaça! — meu mestre gritou inconformado.
— Como é? Quão infantil você é? — retruquei, ainda mais indignado.
Assim que me aproximei para confrontá-lo, logo senti o frio da lâmina de uma espada curta paralisando meu pescoço. Meus reflexos temiam o fio da espada, me permitindo apenas olhar para lado com os olhos e lá estava ele, com uma careta boba, me encarado vitorioso.
— Uma pena que seu orgulho seja tão frágil. Além disso… — ele recolheu sua espada, jogando para longe — não foi malandro o suficiente.
— É mesmo? — com um sorriso arrogante, incendiei meus pés, fazendo com que as labaredas de fogo os impulsionassem para trás, acertando meu calcanhar em sua virilha enquanto girava meu corpo inteiro.
Wukong caiu no chão, atormentado pela dor. Eu derrotei o Rei Macaco.
— Já pensou em entrar no circo? Lá a galera adora essas piruetas! — a voz do macaco soou.
Sem acreditar, eu olhei para trás, vendo o corpo do macaco desaparecendo na fumaça e ao olhar para frente mais uma vez, lá estava ele, o que deveria ser o seu suposto clone, de pé.
— Merda…
Sun Wukong zombou e riu de mim por alguns longos minutos, até enfim se recompor e se apoiar calmamente ao lado da fornalha.
Suas roupas douradas balançavam com o vento, assim como todos os pelos do seu corpo. Wukong era como um deus, sua presença era diferente dos demais heróis do jardim. As histórias que o mesmo me contava não poderiam ser mais mentirosas, mas suas demonstrações de força e sagacidade as tornavam inegáveis. Admito que passei a respeitá-lo e tê-lo como referência algumas vezes.
— Você aprendeu bem, Akira. Se tornaria um ótimo sucessor… — disparou seriamente.
— O-O quê?
— Tô zoando! — ele riu.
— Se me chamou aqui só pra ficar rindo da minha cara, é melhor eu ir.
— Mas agora, falando sério — Wukong tomou novamente minha atenção — Eu vou precisar viajar, dessa vez, por um longo tempo. Então acho que é hora de nos despedirmos.
— Como é? Mas e todo aquele papo de alma ressonante? Eu não aprendi nada nos últimos meses!
— Você tá olhando só pra única folha… tente ver a árvore inteira… — respondeu, em um tom calmo e sereno.
— Deu pra virar filósofo agora? Você não é disso!
— Ah, qualé! Eu queria dizer isso pelo menos uma vez! — resmungou como uma criança birrenta.
— Não se engane, jovem… — Merlin apareceu de repente — pode não parecer, mas Wukong ainda é um sábio.
— Grande Sábio igual ao Céu! — o macaco se vangloriou de seu título, radiante.
— Quanto as suas preocupações… pode ficar tranquilo. Aposto que é sobre isso que se trata sua viagem, não é, velho amigo?
— É só uma visita a um velho conhecido… — meu mestre virou-se de costas, pronto para partir
— Tenha uma boa viagem! — Merlin abençoou.
O Rei Macaco, logo antes de se despedir, olhou para trás uma última vez.
— Adeus, Akira! — despediu-se, encarando o fundo dos meus olhos, como se pudesse ver a minha alma.
Ele se transformou em uma majestosa ave, com penas brancas e vermelhas e voou pelo vasto jardim de nuvens.
Eu o via voar em direção ao horizonte e mergulhar entre as nuvens, imaginando qual era o propósito de sua viagem, porém, meus pensamentos logo se dissiparam ao ouvir o alto som de uma explosão.
Ponto de Vista de Noelle:
Após uma breve batalha, Saki e eu andávamos até um bar ali perto para nos encontrar com Mika. Em meio a nossa conversa, uma voz inquieta soou nos meus ouvidos.
— Tia! Tia! — uma pequena garotinha puxava minha bolsa.
Suas roupas e pele eram limpas e seu cabelo bem-arrumado. Ela não era muito diferente dos outros cidadãos do jardim, com exceção de uma elegante gargantilha preta que cercava seu pescoço.
— Oi! O que houve? Está perdida? — perguntei, me agachando para ficar a sua altura.
A garotinha acenou com a cabeça, com seus olhos cheios de lágrimas.
— Certo, vamos achar seus pais! — eu estendi a palma da minha mão, a convidando.
Ela secou seus olhos, e segurou minha mão com firmeza, ainda que trêmula. Felizmente, seu semblante já estava mais calmo.
— Saki — minha amiga, que observava tudo, me olhou com dúvida — pode ir na frente, eu já te alcanço!
— Ah… beleza!
Assim que nos separamos, comecei a perguntar a garotinha sobre sua família. Seu nome era Erida e havia se perdido recentemente com seu irmão, mas também se perdeu dele. Ela olhava para os lados curiosa, como se tudo fosse uma grande novidade. Erida me guiou para aonde tinha visto seus pais pela última vez, em um área mais isolada da cidade.
— Foi aqui! — ela disse com certa tristeza.
— Certo, só um momento!
Eu me afastei cerca de dois metros da garotinha, marcando um círculo mágico no chão. Se houvesse algum cheiro forte no ambiente, eu poderia tentar rastreá-los com meu olfato, mas não era o caso, logo, um feitiço de rastreamento baseado em assinaturas de mana seria muito útil naquela situação.
“Bip!”
— Titia… — a garotinha chamou.
— Sim?
Ao me virar, meus olhos se encheram de medo. A cena na minha frente era mais assustadora do qualquer outro monstro ou demônio que já havia enfrentado. Meu corpo paralisou, não importa o quanto tentasse, não consegui mover um único músculo ao ver o rosto daquela garotinha submerso em suas próprias lágrimas, enquanto sua gargantilha pulsava em um brilho vermelho.
— Me desculpa… me… ajuda… — ela clamava.
Pouco a pouco, os efeitos do choque inicial passavam e eu me aproximava lentamente de Erida.
— T-Tenha calma… Não se mexa… — palavras que gostaria de ter dito a mim mesma.
— NÃO! — um grito apavorado — Ele disse que vai soltar todo mundo se eu fizer isso!
— Ele quem? O que precisa fazer? EU TE AJUDO! — o desespero tomava conta de mim.
— O tio malvado disse que eu tenho que pegar o livro! Se eu pegar o livro, ele vai soltar meu irmão, a mamãe e o papai! — disse em meio seu choro repleto de medo.
“Livro? Ela tá falando de um dos Livros Sagrados? Mas a gente não tem nenhum aqui! E agora? O que eu faço? O QUE EU FAÇO?” eu tentava pensar enquanto o bip da gargantilha atormentava minha mente.
— E-Escuta, eu vou pegar o seu livro, tá bom? — tentei mais uma vez me aproximar — Só me deixa-
— NÃO!
— M-Mas eu não tô com o livro aqui! Preciso voltar para pegar ele!
A frequência dos “bips” aumentavam, eu precisava fazer algo, eu precisava agir, eu precisava salvar aquela criança.
— Tia… — seus olhos já vazios e sem esperanças penetraram minha alma — por favor… me ajuda…
Os “bips” soavam tantas vezes que era como se fossem apenas um único zumbido.
— NÃO! — gritei, sem saber mais o que fazer.
Tão rápida quanto um raio, eu tentei me aproximar do pescoço de Erida, mas antes mesmo de poder tocá-la, um forte impacto fez com que meu corpo fosse ejetado para longe. Uma dor intensa percorreu pelo meu corpo, mas aquilo não importava. Eu me levantei rapidamente, encarando a nuvem de poeira com medo.
Eu torcia para ser apenas um pesadelo, ou até mesmo uma brincadeira, mas eu não pude resistir ao ver a cena. Apenas pus tudo para fora.
Tudo que restou foram seus membros da cintura para baixo. O resto… o resto estava espalhado pelo chão.
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