Capítulo 181: Clara versus cachaça
Clara olhou em volta, procurando Renato, mas não o viu. Nem mesmo podia sentir sua presença ou notar seu cheiro na brisa.
O garoto tinha desaparecido.
Mas ele podia vê-la.
Estava ao lado dela. Ao tocá-la, sua mão a atravessou, como num jogo mal programado onde os objetos não têm colisão.
Foi parecido com a vez em que foi puxado para a reunião com os cavaleiros. Ele não podia tocar e nem falar com as pessoas.
Tinha se tornado intangível.
Porém, um arrepio atravessou o corpo. Aquela sensação esquisita de estar sendo observado fez cócegas em seu cérebro.
Foi quando viu os olhos felinos do cacique Ysani olhando diretamente para ele. Era o único que podia vê-lo.
E, atrás do cacique, estava aquela onça gigantesca, caminhando suavemente sobre a terra. Ostentava garras que eram como lanças e presas curvas que seriam capazes de rasgar carne e ossos com facilidade.
— Aí está você! — disse Clara, ao lado de Renato. — O que aconteceu?
Ele olhou para ela. Pôde sentir seu toque. As outras pessoas também olhavam para ele.
— Não sei.
Ysani se aproximou. Tinha olhos neutros. As cicatrizes estavam mais visíveis do que nunca. Os primeiros raios de sol, dourados, batiam em sua pele feito brasa.
— Estava do outro lado, não estava?
O garoto franziu o cenho. Tinha muitas dúvidas.
— Acho que sim. E eu vi… — Renato olhou na direção daquela escultura de madeira no formato de uma onça sobre duas patas —, … Vi ela.
Um cochicho se espalhou pela aldeia.
As pessoas evitavam olhar diretamente. Lançavam olhares no canto de olho, curiosas, e sussurravam baixinho.
— Ya Wará. A deusa Ya. Nossa deusa da guerra. — O cacique abriu um sorriso largo. — E ela viu você também.
O rapaz do violão tinha parado de tocar e prestava atenção na conversa de longe.
— Deusa da guerra?
— Sim. Uma das poucas que ainda existem. Sendo bem franco, Renato, nós só te aceitamos hoje aqui porque ela permitiu. Ela te viu e te aceitou. Não sei bem o porquê.
— Entendo. — Renato aspirou o nariz. Estava escorrendo, e o cheiro de tabaco ainda estava forte.
— Mas te vendo agora… suas cicatrizes… são cicatrizes de um guerreiro. Tenho certeza que deve ser forte. Talvez, até mais do que eu.
Nessa hora o burburinho na aldeia aumentou.
— Mas é confuso — continuou o cacique. — Tem um olhar perdido. Não sabe direito o que está fazendo.
— É que eu não tô nesse ramo de guerreiro há muito tempo, sabe? — Renato esboçou um sorriso. — Ainda tô aprendendo.
Ysani assentiu e sorriu também.
— Parece até comigo há um tempo atrás.
— Ninguém nasce sabendo, né?
— Verdade. Às vezes, Renato, a maior batalha se passa dentro de nossa mente. Dentro de nosso espírito. Vencer a si mesmo é a mais difícil das guerras.
Depois disso, foi servido o desjejum. Todas as pessoas já tinham saído do transe de ayahuasca, e a melodia suave do violão tinha voltado a tocar.
Comeram frutas e beiju.
Uma das meninas aldeãs estava servindo suco de caju de uma botija de barro, mas antes que Renato pudesse pegar um pouco, Ysani interveio.
Ele trazia um copo de porcelana, o qual ofereceu ao garoto.
— Bebe isso. Vai gostar mais.
O cheiro alcoólico era intenso. Ia ser pancada. Mas Renato nunca fugiu de uma bebida forte, então bebeu um gole generoso.
O sabor lembrava mandioca, com uma acidez acentuada e um leve toque adocicado. Era bastante encorpada, e o álcool queimava quando descia pelo peito.
Renato tossiu.
Ysani e os rapazes indígenas que o acompanhavam deram risada.
Um dos rapazes pôs a mão sobre o ombro de Renato.
— Agora sim, bem-vindo à aldeia!
— Ei, eu também quero! — Clara se aproximou. Ela ainda estava terminando de mastigar seu beiju com peixe.
O rapaz do violão limpou a garganta.
— Talvez seja um pouco forte para uma mulher — disse ele, com um sorriso zombeteiro, claramente provocador.
— Ei! — A garota que estava ao lado dele lhe deu um soquinho no braço. — Eu também vou beber, ouviu Ubiratan?! humpf!
Clara olhou o interior do copo. O líquido estava abaixo da metade.
Ela lançou seu sorriso de desdém.
— Vocês têm mais? Isso aqui não vai dar pra nada.
Ubiratan e o outro rapaz trocaram olhares. Tinham se sentido desafiados.
Os dois saíram e, com a ajuda de outros rapazes aldeões, trouxeram um tambor metálico de 200 litros.
— Agora sim! — disse Karina, a garota aldeã. — Nós duas vamos mostrar pra vocês que mulheres também podem beber!
— Façam as honras! — disse Ubiratan.
— Certo!
Karina pegou um copo e mergulhou naquele líquido branco do tambor.
O cheiro lembrava mandioca cozida, porém um tanto azeda.
Ela bebeu. Até tentou não fazer careta, mas não conseguiu.
Clara também encheu seu copo.
Karina bebeu dois copos e parou, e saiu andando meio cambaleante em direção a sua casa.
— Eu só vou parar! Hic! — soluçou. — Porque… eu tenho… Hic! Preciso ir… Hic!
Clara continuou.
— Eu poderia fazer isso o dia todo. Essa bebida até que é boa.
As pessoas tinham parado de contar no vigésimo copo.
Clara tinha se tornado um tipo de atração. Toda a aldeia se reuniu para vê-la beber.
Quando o conteúdo do tambor se aproximou da metade, o cacique interveio.
— Certo, certo — disse ele. — já provou seu ponto. Se continuar bebendo desse jeito, vamos ficar sem caxiri pelo resto do ano.
— Humpf! Um lugar realmente hospitaleiro me deixaria beber tudo!
Ubiratan se aproximou de Renato.
— Sua amiga é um monstro!
— Você não faz ideia.
Enquanto isso, no prédio de Clara:
Irina estava sentada no sofá, com um notebook no colo, ela digitava com bastante velocidade e corria o dedo pelo touchpad.
Na tela, pequenos quadros com imagens de vídeo eram exibidos, ao lado de linhas de programação formadas por muitas letras, números e caracteres.
— Ouvi falar de magos que faziam magia usando máquinas como essa — disse Lírica, um tanto assombrada. — Tecnomancia!
— Tec…o quê? — Irina ergueu uma sobrancelha, sem desviar os olhos do monitor. — Não entendo quase nada do que você fala, menina-gato.
— Eu não sou uma menina-gato!
— Pois parece muito uma menina-gato!
— Mas eu entendo o que ela quer dizer — retrucou Jéssica. — Essa tecnologia se parece mesmo com magia.
— Qual é, meninas? É só um laptop. Nada demais! Agora, isso aqui que eu tô fazendo é demais sim! Eu sou uma gênia! Muitos diriam isso, sabiam? Contemplem uma gênia trabalhando!
— Gênia? — Lírica enrugou a testa, confusa. — Como aqueles gênios presos em vasilhames de barro, que realizam os desejos dos magistas?
— Hã? — Irina balançou a cabeça. Para ela, a demi-humana falava apenas um monte de sandices sem significado.
— Vai conseguir achar a Tamara ou não?! — questionou Jéssica, impaciente.
— É claro que vou. É só ela passar na frente de uma dessas câmeras que eu hackeei e vamos saber exatamente onde ela está. Estão preparadas para fazerem o que for necessário, não é?
Lírica mostrou suas garras nas pontas dos dedos.
— Sim — respondeu. — Tâmara precisa morrer.
— Vamos cercá-la e acabar logo com isso — disse Jéssica. — Ela é uma ameaça para nós e para o Renato.
Irina assentiu.
— Vamos fazer aquela psicopata maldita pagar por tudo o que fez.
Lírica farejou o ar.
— O Renato chegou.
— Oh, droga! — Irina fechou o notebook rapidamente.

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