Índice de Capítulo

    Clara olhou em volta, procurando Renato, mas não o viu. Nem mesmo podia sentir sua presença ou notar seu cheiro na brisa.

    O garoto tinha desaparecido.

    Mas ele podia vê-la.

    Estava ao lado dela. Ao tocá-la, sua mão a atravessou, como num jogo mal programado onde os objetos não têm colisão.

     Foi parecido com a vez em que foi puxado para a reunião com os cavaleiros. Ele não podia tocar e nem falar com as pessoas.

    Tinha se tornado intangível.

    Porém, um arrepio atravessou o corpo. Aquela sensação esquisita de estar sendo observado fez cócegas em seu cérebro.

    Foi quando viu os olhos felinos do cacique Ysani olhando diretamente para ele. Era o único que podia vê-lo.

    E, atrás do cacique, estava aquela onça gigantesca, caminhando suavemente sobre a terra. Ostentava garras que eram como lanças e presas curvas que seriam capazes de rasgar carne e ossos com facilidade.

    — Aí está você! — disse Clara, ao lado de Renato. — O que aconteceu?

    Ele olhou para ela. Pôde sentir seu toque. As outras pessoas também olhavam para ele.

    — Não sei.

    Ysani se aproximou. Tinha olhos neutros. As cicatrizes estavam mais visíveis do que nunca. Os primeiros raios de sol, dourados, batiam em sua pele feito brasa.

    — Estava do outro lado, não estava? 

    O garoto franziu o cenho. Tinha muitas dúvidas.

    — Acho que sim. E eu vi… — Renato olhou na direção daquela escultura de madeira no formato de uma onça sobre duas patas —, … Vi ela.

    Um cochicho se espalhou pela aldeia.

    As pessoas evitavam olhar diretamente. Lançavam olhares no canto de olho, curiosas, e sussurravam baixinho.

    — Ya Wará. A deusa Ya. Nossa deusa da guerra. — O cacique abriu um sorriso largo. — E ela viu você também.

    O rapaz do violão tinha parado de tocar e prestava atenção na conversa de longe.

    — Deusa da guerra?

    — Sim. Uma das poucas que ainda existem. Sendo bem franco, Renato, nós só te aceitamos hoje aqui porque ela permitiu. Ela te viu e te aceitou. Não sei bem o porquê.

    — Entendo. — Renato aspirou o nariz. Estava escorrendo, e o cheiro de tabaco ainda estava forte.

    — Mas te vendo agora… suas cicatrizes… são cicatrizes de um guerreiro. Tenho certeza que deve ser forte. Talvez, até mais do que eu.

    Nessa hora o burburinho na aldeia aumentou.

    — Mas é confuso — continuou o cacique. — Tem um olhar perdido. Não sabe direito o que está fazendo.

    — É que eu não tô nesse ramo de guerreiro há muito tempo, sabe? — Renato esboçou um sorriso. — Ainda tô aprendendo.

    Ysani assentiu e sorriu também.

    — Parece até comigo há um tempo atrás.

    — Ninguém nasce sabendo, né?

    — Verdade. Às vezes, Renato, a maior batalha se passa dentro de nossa mente. Dentro de nosso espírito. Vencer a si mesmo é a mais difícil das guerras.

    Depois disso, foi servido o desjejum. Todas as pessoas já tinham saído do transe de ayahuasca, e a melodia suave do violão tinha voltado a tocar.

    Comeram frutas e beiju.

    Uma das meninas aldeãs estava servindo suco de caju de uma botija de barro, mas antes que Renato pudesse pegar um pouco, Ysani interveio.

    Ele trazia um copo de porcelana, o qual ofereceu ao garoto.

    — Bebe isso. Vai gostar mais.

    O cheiro alcoólico era intenso. Ia ser pancada. Mas Renato nunca fugiu de uma bebida forte, então bebeu um gole generoso.

    O sabor lembrava mandioca, com uma acidez acentuada e um leve toque adocicado. Era bastante encorpada, e o álcool queimava quando descia pelo peito.

    Renato tossiu.

    Ysani e os rapazes indígenas que o acompanhavam deram risada.

    Um dos rapazes pôs a mão sobre o ombro de Renato.

    — Agora sim, bem-vindo à aldeia!

    — Ei, eu também quero! — Clara se aproximou. Ela ainda estava terminando de mastigar seu beiju com peixe.

    O rapaz do violão limpou a garganta.

    — Talvez seja um pouco forte para uma mulher — disse ele, com um sorriso zombeteiro, claramente provocador.

    — Ei! — A garota que estava ao lado dele lhe deu um soquinho no braço. — Eu também vou beber, ouviu Ubiratan?!  humpf!

    Clara olhou o interior do copo. O líquido estava abaixo da metade.

    Ela lançou seu sorriso de desdém.

    — Vocês têm mais? Isso aqui não vai dar pra nada.

    Ubiratan e o outro rapaz trocaram olhares. Tinham se sentido desafiados.

    Os dois saíram e, com a ajuda de outros rapazes aldeões, trouxeram um tambor metálico de 200 litros.

    — Agora sim! — disse Karina, a garota aldeã. — Nós duas vamos mostrar pra vocês que mulheres também podem beber!

    — Façam as honras! — disse Ubiratan.

    — Certo!

    Karina pegou um copo e mergulhou naquele líquido branco do tambor.

    O cheiro lembrava mandioca cozida, porém um tanto azeda.

    Ela bebeu. Até tentou não fazer careta, mas não conseguiu.

    Clara também encheu seu copo.

    Karina bebeu dois copos e parou, e saiu andando meio cambaleante em direção a sua casa.

    — Eu só vou parar! Hic! — soluçou. — Porque… eu tenho… Hic! Preciso ir… Hic!

    Clara continuou.

    — Eu poderia fazer isso o dia todo. Essa bebida até que é boa.

    As pessoas tinham parado de contar no vigésimo copo.

    Clara tinha se tornado um tipo de atração. Toda a aldeia se reuniu para vê-la beber.

    Quando o conteúdo do tambor se aproximou da metade, o cacique interveio.

    — Certo, certo — disse ele. — já provou seu ponto. Se continuar bebendo desse jeito, vamos ficar sem caxiri pelo resto do ano.

    — Humpf! Um lugar realmente hospitaleiro me deixaria beber tudo!

    Ubiratan se aproximou de Renato.

    — Sua amiga é um monstro!

    — Você não faz ideia.


    Enquanto isso, no prédio de Clara:

    Irina estava sentada no sofá, com um notebook no colo, ela digitava com bastante velocidade e corria o dedo pelo touchpad.

    Na tela, pequenos quadros com imagens de vídeo eram exibidos, ao lado de linhas de programação formadas por muitas letras, números e caracteres.

    — Ouvi falar de magos que faziam magia usando máquinas como essa — disse Lírica, um tanto assombrada. — Tecnomancia!

    — Tec…o quê? — Irina ergueu uma sobrancelha, sem desviar os olhos do monitor. — Não entendo quase nada do que você fala, menina-gato.

    — Eu não sou uma menina-gato!

    — Pois parece muito uma menina-gato!

    — Mas eu entendo o que ela quer dizer — retrucou Jéssica. — Essa tecnologia se parece mesmo com magia.

    — Qual é, meninas? É só um laptop. Nada demais! Agora, isso aqui que eu tô fazendo é demais sim! Eu sou uma gênia! Muitos diriam isso, sabiam? Contemplem uma gênia trabalhando!

    — Gênia? — Lírica enrugou a testa, confusa. — Como aqueles gênios presos em vasilhames de barro, que realizam os desejos dos magistas?

    — Hã? — Irina balançou a cabeça. Para ela, a demi-humana falava apenas um monte de sandices sem significado.

    — Vai conseguir achar a Tamara ou não?! — questionou Jéssica, impaciente.

    — É claro que vou. É só ela passar na frente de uma dessas câmeras que eu hackeei e vamos saber exatamente onde ela está. Estão preparadas para fazerem o que for necessário, não é?

    Lírica mostrou suas garras nas pontas dos dedos.

    — Sim — respondeu. — Tâmara precisa morrer.

    — Vamos cercá-la e acabar logo com isso — disse Jéssica. — Ela é uma ameaça para nós e para o Renato.

    Irina assentiu.

    — Vamos fazer aquela psicopata maldita pagar por tudo o que fez.

    Lírica farejou o ar.

    — O Renato chegou.

    — Oh, droga! — Irina fechou o notebook rapidamente.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota