Capítulo 126: Uma pequena falha
Logo depois de lançar seu ataque de fogo negro, a visão de Renato escureceu, e foi como se o mundo em volta dele girasse. A tontura fez suas pernas vacilarem.
E ele caiu, sentado, no chão.
Apoiou as costas na parede e ficou ali, parado, apenas tentando respirar.
Um zumbido incômodo ecoava em seus ouvidos.
A cabeça doía mais do que tudo. Latejava. Pulsava a cada batimento cardíaco.
Cuspiu, para tirar o gosto de sangue e fuligem da língua, mas não adiantou.
Olhou para a sua mão esquerda. O dedo mindinho estava faltando, e, em seu lugar havia um ferimento sangrando.
A espada do ninja tinha arrancado seu dedo fora.
Encontrou-o próximo, no chão, e resolveu guardar no bolso. Já tinha ouvido falar de pessoas que perderam um dedo e os médicos conseguiram pôr de volta.
“Talvez Mical consiga consertar” pensou, com um pouco de esperança.
Rasgou um pedaço de sua camiseta e amarrou na mão, de modo que o ferimento ficasse coberto, sob pressão, diminuindo o sangramento, num tipo de curativo improvisado.
Ficou mais um tempo ali, só respirando. Estava completamente esgotado, sem forças.
Era a primeira vez que usava as chamas negras tantas vezes seguidas, e aquilo consumia muito de sua energia.
E a dor lancinante por todo o corpo também não ajudava.
Tirou do bolso da calça o pequeno deck de cartinhas de Yu-Gi-Oh. Como sempre fazia, passou a unha sobre as manchas de sangue seco, para removê-lo. Não importava quantas vezes fazia isso, parecia que as cartas nunca ficavam limpas.
Tentou afastar da mente os terrores que as crianças sentiram, mas não conseguiu.
— Eu vou… vou fazê-la pagar! Vou garantir que nunca mais faça isso com ninguém.
Guardou de volta as cartas no bolso e se levantou.
O elevador só levava até ali, então o único caminho para o andar de cima seria de escadas.
E só tinha uma possibilidade: aquela porta de aço numa das paredes. Ele precisava abri-la.
Respirou fundo e evocou a força para mais um ataque com chamas negras.
Quase não conseguiu. Num primeiro momento, elas falharam, e apenas faíscas escuras cintilaram entre os dedos do garoto, então finalmente as chamas vieram. E arrebentaram aquela porta de aço com facilidade.
Parte da escada de trás da porta também foi destruída, e um buraco foi aberto na parede, com rachaduras em volta semelhantes às pétalas de uma flor, por onde podia-se ver o azul do céu.
Saltou pelos escombros e subiu os degraus restantes, até chegar numa sala do último andar.
Lá, havia um único homem, que ao ver Renato, levou a mão ao coldre da cintura para pegar uma pistola.
*
Kath estava em seu quarto, no último andar do prédio, sentada numa cadeira confortável, fumando um cigarro tranquilamente.
Deixou a fumaça escapar por entre os lábios semicerrados, e se espreguiçou. Pegou o copo de uísque que estava sobre a mesinha, bem ao lado do ak-47, e bebeu um gole.
Ela sempre estava preparada. A arma era só uma precaução. Afinal, não tinha como seu plano dar errado. Ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, o Andrei daria com a língua nos dentes, por isso transformou todo o prédio numa grande ratoeira para pegar aquele garoto. E não seria uma assombração, um maldito espirito, que tiraria sua paz.
Ela acompanhou tudo pelas câmeras, e sabia que dessa vez, Renato estava perto. Ela sorriu. “Mal posso esperar” pensou.
O último guarda, aquele que estava nesse mesmo andar, porém fora do quarto, atravessou a porta, arremessado, arrebentando a madeira com as costas e só parou quando bateu contra uma parede.
E então Renato entrou.
Cada passo dele era lento. Sua cabeça estava confusa. Ele via flashes, lampejos do que as crianças poderiam ter sofrido. Imaginava a dor, os gritos, e aquilo o enlouquecia.
Uma aura enegrecida o rodeava.
Kath sentiu a temperatura caindo. O ar estava mais gelado.
Assim que ele entrou no quarto, ela riu de felicidade.
Renato, ao ouvir a voz dela, parou.
— Ah, Renato! Como te esperei! — disse ela. — Eu sabia que o Andrei não suportaria muito tempo e acabaria falando demais. Por isso me preparei.
— Está enganada. Ele não falou. Mas não precisou.
— Hum? — Ela ergueu uma sobrancelha. Deu de ombros. — Que seja! Até os imbecis podem ter força de vontade, não é?
Os dedos dela roçavam na superfície metálica do AK-47 sobre a mesinha. Ela jogou a bituca de cigarro para longe e pegou o copo de uísque.
— Por que não olha onde está pisando? — sugeriu ela.
Renato olhou para baixo, e viu os símbolos no chão.
Estava no meio de um círculo mágico.
— Caiu na minha armadilha! — disse ela. — Você estava tão sedento para me pegar, que não pensou direito, não é?! — Ela riu. — Eu jamais entraria num lugar assim, sem antes ter uma boa visão dos detalhes. Isso foi amadorismo da sua parte.
— É? E dai?
— Daí que esse círculo mágico é uma armadilha para demônios e possuídos. O Lukin não foi o único possuído que eu encontrei por aí, sabia? E também… sempre pensei na possibilidade do Lúkin acabar fazendo merda, então… esse era meu plano para contingências. Nenhum possuído por demônio pode sair do círculo depois que entra, Renato. Pra falar a verdade, nem mesmo um demônio de alto nível poderia sair. Acho até que nem mesmo os naz-raîm poderiam. Sabe o que significa, não sabe?
— Sei.
— Que bom que entendeu! Você caiu na minha armadilha! — gritou ela, de tão animada que estava. — E agora… eu mal posso me conter! São tantas as possibilidades! Ver você chorando daquele jeito quando as crianças morreram foi tão… tão incrível! Tão gostoso! Eu quero repetir a dose! Preciso de mais! Então vou matar todas aquelas suas amigas na sua frente, Renato. Uma de cada vez! Isso, claro, enquanto você está imobilizado dentro do círculo mágico, sem poder fazer nada! Tô tão ansiosa para ver como você vai reagir! Como serão suas lágrimas dessa vez, Renato? Por favor, entretenha-me com o seu sofrimento!
Ouvir isso foi tão absurdo, que ele chegou a curvar os lábios levemente, num sorriso discreto.
— Vai matar elas?
— É claro que vou. O bakeneko foi apenas uma distração. Sei exatamente como acabar com cada uma daquelas… monstruosidades! O demônio, a demi-humana, aquela garota bizarra com tendências sociopatas e, claro, as duas irmãs com semente nefilim. Matá-las vai ser tão fácil, que seria entediante. Mas você não. Só vou fazer isso por causa de você. E…
— Cale a boca!
— Hum? Ora, Renato, achei que…
— Cale a porra da boca! Ouvir você me dá vontade de vomitar! Sua voz me dá náusea. — Ele começou a rir. Primeiro foi um riso contido, depois virou gargalhada. — Então esse é seu plano genial? Uma armadilha para demônios e possuídos? E ainda dizem que você é a mais esperta!
— Está em negação. É compreensível. Essa é uma daquelas fases do luto, não é?
— Preciso me acalmar! — sussurrou Renato, para si mesmo, enquanto tentava controlar suas mão trêmulas. — Preciso me acalmar! Não posso ir com tanta raiva ou… ela vai morrer rápido! Preciso me acalmar!
— O que está sussurrando aí, Renato? Sucumbiu à loucura? — disse ela, com um sorriso faceiro.
Ele respirou fundo, tentando tranquilizar-se.
— Então esse é seu plano genial? Parabéns. — A voz dele saiu seca, sarcástica, e cada sílaba foi pronunciada calmamente.
— Obrigadinha — ela bebeu um gole de uísque.
— Seu plano só tem uma falha. Uma pequena falha. — Num misto de ódio e loucura, gargalhou muito. — Não tem nenhum demônio me possuindo.
Com um passo, ele pôs o pé para fora do círculo mágico.
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