Índice de Capítulo

    Assim que Renato pôs o pé para fora do círculo mágico, Kath arregalou os olhos de susto, não acreditando no que via.

    Rapidamente, levou a mão ao AK-47 que estava sobre a mesa. Sua munição especial daria conta do garoto.

    Mas algo inesperado aconteceu. Ao apertar o gatilho, ao invés da rajada de chumbo, o que saiu foi um jato de água, esguichando com pouca pressão. O chão ficou molhado.

    Chamas explodiram na cama da garota, e um pilar de fogo lambeu o teto. A televisão expeliu faíscas, e a tela estourou, jogando estilhaços de vidro fino pelo chão, e derramando cristal líquido. Em seguida, também se acendeu em chamas.

    Kath puxou as duas granadas que tinha guardadas no bolso, mas ao segurá-las, notou que tinham uma textura estranha. Estavam geladas, úmidas, e algo escorria através dos dedos. Olhou, e viu que, ao invés das bombas, o que estava segurando eram duas pequenas bolas de barro, que se desmanchavam e pingavam através de seus dedos.

    O chão e o teto estavam congelados, e cobertos por uma fina camada de gelo, que aumentava em direção a ela.

    As lâmpadas estouraram, derramando gotas douradas e incandescentes, e jogando o quarto inteiro no escuro. A única fonte de luz era o fogo, que se espalhava pelo quarto, como pilastras luminosas, consumindo tudo o que encontrava.

    Ela engoliu em seco.

    — Não existe demônio assim! Isso tá além de tudo o que eu já vi. — Estava completamente assombrada.

    Renato se aproximava dela. Seus passos eram firmes. A expressão era dura. Ele não a deixaria escapar. Tudo o que sentia era um ódio tão terrível, que era quase tangível, cobrindo-o, envolvendo-o feito um casulo de escuridão.

    Só pensava em matar. Mas não podia ser rápido. Ela tinha que sofrer; assim como ele sofreu.

    Kath percebeu que não tinha como vencer. Todo seu plano foi em vão. As armas eram inúteis. O círculo mágico não tinha funcionado.

    Só restava uma alternativa.

    Ela pressionou o pequeno botão na parede atrás dela, e o pedaço falso da parede se descolou e caiu. Era um quadrado feito de vidro, que tinha sido pintado de modo a parecer alvenaria. Era uma saída de emergência secreta.

    — Você não vai fugir! — rosnou Renato.

    E ele saltou, diminuindo a distância entre eles, e deu um soco. Seu punho estava envolvido numa aura escura, sem temperatura, era como plasma, ou como fogo.

    Kath não teve nem tempo de reação.

    Foi atingida em cheio.

    E seu frágil corpo humano não suportou a pressão do golpe, e vários pedaços da garota voaram pelo quarto. Alguns caíram pelo espaço aberto na parede.

    Ela foi completamente obliterada.

    Renato parou e olhou para seu punho.

    — Não! Não pode ter morrido ainda! Você precisa viver mais! Isso foi muito rápido!

    Estava desesperado. Não aceitava que a morte de Kath tivesse sido tão rápida.

    — Não…

    Caiu de joelhos no chão. Seus olhos estavam lacrimejados, mas se recusavam a chorar.

    — Ela precisa sofrer…

    Indignado, socou o chão, e todo o concreto do piso rachou, e o andar do prédio tremeu.

    — Não pode ser… ela precisa voltar… Precisa voltar!

    Imerso em raiva, tristeza e pura sede de vingança, desejou tanto que Kath voltasse dos mortos, que viu um milagre acontecer.

    Os pedaços dilacerados do corpo da garota moveram-se sozinhos e começaram a se unir, reconstruindo aquele corpo destruído.

    Até que ela estava completamente refeita, sentada no chão. Ergueu os olhos anuviados, confusa, e viu  Renato. Franziu o cenho, sem entender direito o que acontecia.

    O ódio novamente inundou o coração de Renato.

    — Desgraçada! Queime!

    E faíscas brotaram da pele da garota, até que ela inteira se incendiou feito uma tocha. Mal teve tempo de gritar, e foi transformada num monte de cinzas.

    — Volte! Volte!

    E as cinzas se transformaram em carne, e a garota retornou à vida.

    Ela se levantou, tonta, confusa.

    — Hã? O quê…?

    — Morra!

    Renato disparou aquela bola de fogo negro.

    E enquanto destruía e reconstruía Kath inúmeras vezes, matando-a e devolvendo-lhe a vida só para poder matar novamente, ele foi cada vez mais sucumbindo à loucura.

    A própria estrutura do prédio não estava aguentando tanto poder reverberando em suas paredes e lajes, e começou a rachar e estalar. Os alicerces vibravam.

    Renato ergueu os olhos, e viu dezenas, talvez centenas de Kaths surgindo, emergindo do chão. E ele golpeava, incessantemente, cada uma delas, destruíndo-as, só para vê-las ressurgirem diante de seus olhos.

    Até que não viu mais nada, além das incontáveis Kaths, rindo, zombando dele, enquanto ele as matava.

    E toda a paisagem foi tomada pelo fogo. Um mar de magma se ergueu do chão, e borbulhava, fervendo, na altura de sua cintura. Os vermes nadavam naquele fogo líquido, e o enxofre subia em fumaça.

    *

    As garotas tinham vencido todos os soldados que entraram pela falha na barreira.

    Mical e Jéssica mantinham sua própria barreira de pé, impedindo a entrada de mais soldados.

    Elas tinham ouvido alguns estrondos reverberando do alto prédio, e ficaram preocupadas.

    — O Renato… será que ele está bem? — perguntou Tâmara. — Eu não suporto esperar! Quero ir lá ajudar ele!

    — É claro que ele tá bem — respondeu Jéssica, mordiscando o lábio, com uma dose de incerteza no olhar.

    Até que o chão tremeu, como se um terremoto forte assolasse a terra, e o prédio inteiro vibrou, enquanto seus pedaços caíam, desmoronando.

    Lírica gemeu de dor.

    — Tô captando uma confusão mental horrível! Tem alguma coisa errada com o Renato!

    Todo o último andar do prédio se despedaçou, e os pedaços, pedras, ferro, todos os escombros começaram a girar em volta de alguma coisa.  Era como um furacão de entulho e ruína.

    Os andares de baixo cediam. Os alicerces arrebentavam. E os andares do meio se enchiam de rachaduras enormes.

    Até que o furacão de pedra começou a aumentar, destroçando os andares inferiores, fazendo seus pedaços se juntarem àquela órbita que girava em torno de um núcleo.

    — Que merda tá acontecendo? Que porra é aquilo?! — falou Tâmara.

    — Tem alguma coisa no centro! — disse Mical. — O que é aquilo? O que pode ser?

    — Ora, ainda não perceberam? O que tem no centro é o Renato — respondeu a súcubo, com uma tranquilidade irritante.

    — Tem muita confusão! Muito sofrimento psíquico! — falou Lírica.

    O prédio finalmente cedeu por completo. Desabou. A estrutura se despedaçou e caiu, era apenas pedra e pó. Uma nuvem de poeira se ergueu.

    E os pés de Renato finalmente tocaram o chão. Em volta dele, os escombros giravam e aumentavam em número, engolindo o concreto do piso, e as pedras, e a terra do chão.

    Até os soldados pararam de tentar entrar e só ficaram voando, em suas armaduras, e observando em silêncio.

    — Tá aumentando de tamanho — disse Clara. — Se continuar assim, nesse ritmo, não vai sobrar nada. Talvez seja assim que o mundo termine.

    — Precisamos ajudá-lo! — retrucou Mical. — O Renato precisa da gente!

    Clara ponderou por um instante.

    — Não sei se tem algo que possamos fazer.

    — Tá de zueira comigo? — retrucou Tâmara. — Tá desistindo dele? É isso? Quer fugir?

    — Não, droga! — gritou Clara. — Eu sou quem mais quer ajudar! Tô pensando! Tô pensando em um jeito! Ele tá num tipo de transe! É como se ele estivesse preso dentro de sua própria mente. A destruição em volta é só um sintoma, e ele provavelmente nem sabe o que está causando. Se aproximar daquilo, do jeito que está, é suicídio. Qualquer coisa que se aproximar pode ser destruída. Precisamos de um plano.

    Mical baixou os olhos. Estava pensando. Tinha medo. Sabia que poderia morrer, mas precisava fazer alguma coisa.

    — Eu tenho um plano — disse ela.

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