Capítulo 129: O preço da loucura – parte III
A sensação era de estar caindo. O escuro era tão denso, que não se podia enxergar um palmo adiante do nariz. Não havia estrelas no céu; e nem lua para brilhar.
Mical nunca esteve num vazio tão completo. Era amedrontador.
O frio não era normal. Parecia do tipo que congelaria até seus pensamentos.
E a garota caiu, talvez por horas. Até que, finalmente, algo mudou naquele cenário de ausência. Houve algo.
Estava caindo com o rosto voltado para o alto, então viu aquele pequeno resquício de luz com o canto do olho. Um fogo avermelhado. Era como sangue incandescente.
E as faíscas dançando nos ares, feito vagalumes dourados.
E ela despencou sobre aquele mar de chamas, e o magma ondulou, como uma pequena lagoa onde se joga uma pedra.
E ela afundou, e o magma cobriu sua visão.
Ela se levantou. Era um oceano sem fim feito de fogo, e os vermes se moviam, como larvas num cadáver.
Mical ficou horrorizada. Se debateu, com nojo, tentando afastar os vermes. O cheiro de enxofre fez suas narinas e olhos arderem.
— Não! Isso não é real!
Não tinha como aquilo ser de verdade. Era algo infernal, e Mical sabia que Deus não permitiria que ela fosse lançada ao Inferno. Ali estava em completo abandono; e um local tão abandonado só poderia existir dentro da mente em sofrimento de alguém.
E, assim que percebeu que não era real, o fogo não mais queimava sua pele, e os vermes a ignoravam. Eles nadavam, afastando-se dela, formando um círculo em volta. E até o fedor de enxofre se tornou mais suave e deixou de incomodar suas narinas.
Ergueu os olhos e viu Renato.
O garoto estava ajoelhado no oceano de magma. O fogo chegava até sua cintura, consumindo, devorando ferozmente. A pele queimava, e cinzas caiam dele como pó.
Tinha um olhar perdido, sem vida, com um brilho vítreo. Nenhuma expressão em seu rosto. Nem tristeza; nem alegria. Apenas o vazio.
Mical chorou.
Ela não sabia o tamanho da dor que Renato carregava dentro de si. Surpreendeu-se ao ver o Inferno inteiro dentro dele.
Ela correu até ele e se jogou sobre o garoto, abraçando-o, apertando-o contra seu peito.
O garoto demorou para reagir. Mas aquele calor acolhedor finalmente o tocou de alguma forma.
— Mical… — disse ele. Sua voz saiu fraca, como um sussurro. — Não devia estar aqui.
— Devia sim! — retrucou a menina. — Eu vim te buscar.
— Me… buscar? Mas… como isso pode ser possível?
— Estamos na sua cabeça, Renato. Nada disso aqui é verdade.
— Não. Você não é real. É uma alucinação. Eu tô preso no Gehenna. Tô no Inferno. Nunca consegui escapar. É a única explicação possível.Tudo aquilo que vivemos nos últimos dias foi… uma ilusão. Já entendi tudo. Esse lugar te faz ter esperança, porque a esperança é a pior das torturas. É por isso que eu tô te vendo agora… é por isso que eu alucinei ter conseguido escapar. Pra ter esperança. Nada daquilo que eu vivi nas últimas semanas foi verdade. Eu ainda estou preso… na Segunda Morte.
— Não, Renato! Tudo o que vivemos foi verdade! Isso aqui que não é!
— Mas… tem algo bom nisso tudo… se nada daquilo foi verdade, então… então as crianças ainda estão vivas. Isso é uma coisa boa. — A voz dele saiu deplorável. Chorosa. — Eu aceito estar sofrendo, se elas viverem.
— Ah, Renato! — Mical intensificou o aperto do abraço.
— Porque se… aquilo tudo foi verdade, então elas…
— Você conseguiu, Renato. Vingou as crianças.
— Mas vingança não traz ninguém de volta.
— Não, não traz. Mas os culpados foram punidos.
— Eu não me importo com punição. Me importo com trazer elas de volta.
— E eu… todas nós… nos importamos com você, Renato! Volte para nós! Se continuar assim, vai acabar morrendo. Eu não quero te perder.
Renato ficou em silêncio por alguns instantes, até que finalmente respondeu:
— E o que tem de ruim nisso? Talvez, eu morrer, não seja tão ruim, afinal.
— O quê? — Mical franziu o cenho.
— E o que tem de ruim se eu morrer?
— O que tem de ruim se você morrer? — Mical repetiu as palavras dele, indignada, sem acreditar no que ele tinha dito. — E eu, como fico? E minha irmã? Hein? Como a gente fica, sem você? Não se importa com a gente? Não liga se vai me fazer chorar de saudade? E não foi você que prometeu pra minha irmã que a protegeria? Esqueceu? Não tem a intenção de cumprir sua palavra? Você também não prometeu que nos levaria a encontros incríveis? Falou até em tirar umas férias em lugares maravilhosos. Suas promessas valem tão pouco assim, Rebato?
Mais uma vez, ele ficou mudo por alguns minutos.
— Vocês vão ficar melhor sem mim. Eu… não sou uma pessoa boa. Eu tirei a pele de um homem só porque estava cego de ódio e vingança. Eu deixei as crianças morrerem; e depois matei a garota que assassinou eles, e tudo o que eu pude sentir foi frustração. Não ficou melhor. Só ficou pior. A dor não passou, Mical. Só ficou maior. Eu… nunca fui bom. Sou um covarde desde criança. Eu vi meus pais morrerem e não fiz nada! Eu queimei por milênios no gehenna, e mereci aquilo! Eu sou uma pessoa ruim.
— Não! Você não é!
— Sou sim.
— Já disse que não! Não teima, droga! Como pode uma pessoa ruim acolher duas desconhecidas em sua casa, mesmo sabendo que elas representariam perigo para ele? Covarde? Não foi você que desceu ao Inferno só para resgatar a Clara? Que tipo de covardia é essa? É uma covardia bem estranha, não acha? E a Tâmara me contou sobre como você entrou num prédio em chamas para resgatar uma senhora idosa. Que tipo de pessoa ruim faz isso? Falando nisso, não foi você quem resgatou a mim, a minha irmã e a Clara quando sua casa pegou fogo por nossa culpa? E o professor? Hein? Você resgatou ele. Por quê?
— Porque ele era inocente. Quase mandamos um inocente pra cadeia.
— Uma pessoa ruim não se importaria com isso, Renato.
O garoto calou-se. As palavras sumiram de sua boca. Um ardor queimava a garganta tal qual cachaça pura. Ele balançou a cabeça, negando.
— Não! Você não me conhece tanto assim! — Irritado, se moveu bruscamente e deu um soco para baixo, mirando o chão.
O magma ondulou, agitado, e espirrou no rosto de Mical. Seus olhos refletiram o brilho de faíscas.
A garota se afastou, no susto, e limpou o rosto.
Renato lançou um olhar aterrorizado.
— Mical… me desculpe! Me desculpa! Me desculpa! Eu não queria…
Ela sorriu. Foi um sorriso terno, sereno, com os olhos de esmeralda brilhando.
— Tá tudo bem, Renato. Esse fogo não me machuca. Ele não é de verdade.
— Você é tão boa, Mical. Só enxerga o lado bom das pessoas. — Os olhos dele estavam vazios. — Eu não entendo… porque se importa tanto assim comigo… eu não… mereço
— E como você acha que eu me sinto quando você diz essas coisas?! — A garota estava a ponto de desabar. Suas lágrimas escorriam de seus olhos cristalinos. Sua voz saiu alta, como um grito. — Eu só vejo o lado bom? E quanto a minha irmã? hein? E Clara? Lírica? E até a Tâmara!? Acha que somos todas bobas iludidas? Não! O que você sabe sobre o coração das garotas, Renato? Se você fosse mesmo tão ruim quanto diz, acha mesmo que estaríamos todas juntas de você?
— Eu não sei… eu só… — Ele levou a mão ao peito e cerrou-a com força. — Tá doendo…
— Eu sei que tá. Mas vamos curá-lo. Você não pode desistir agora. Eu sei que tá tudo muito ruim, mas se desistir, vai perder a chance de ver tudo ficando melhor.
A aura verde de Mical envolvia Renato. Era aconchegante, como cobertor quentinho numa noite chuvosa de frio.
Os braços dela estavam em volta dele, num abraço caloroso.
— Volte comigo, Renato. Preciso de você. Todas nós precisamos.
A expressão dele foi esquisita. Quase como um choro seco, sem lágrimas.
— Irina…
— Irina?
— A minha irmã. Ela deve tá indo pro Brasil agora. Eu mandei uma mensagem para ela, avisando sobre o orfanato. Eu não posso deixá-la sozinha. Não agora. Como pude ser tão egoísta? Como posso pensar em… escapar disso, se… é tão difícil.
— Estamos aqui por você, Renato. Estamos aqui para apoiá-lo, confortá-lo, ouvi-lo. Abraçá-lo. — Ela o apertou ainda mais. — Isso porque te amamos.
— Mical… você é meu tesouro — ele acariciou o rosto da garota. Os olhos verdes dela estavam lacrimejados.
Renato abriu os olhos, finalmente, despertando naquele cenário de destruição. Os escombros não mais se moviam em furacão. Estavam caídos por toda parte, espalhados feito ruínas.
E todas as meninas estavam num tipo de abraço coletivo, com Renato no meio.
Mical surpreendeu-se e olhou na direção do portão, onde Jéssica deveria estar mantendo a barreira de pé, mas lá havia um pedaço gigantesco de parede tapando a passagem.
— Unimos força e fechamos a entrada. Todas queríamos vir aqui te ajudar de alguma forma — disse Lírica.
— Meninas — a voz de Renato estava baixa —, todas vocês… merecem todo o amor do mundo.
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