Capítulo 142: O ressentimento de Tâmara
Tudo doía. A cabeça vibrava e latejava em ondas que vinham, se espalhavam e depois sumiam, só para se repetirem.
Tâmara finalmente abriu os olhos. E a primeira coisa que viu foram aqueles olhos verdes, quase amarelos, caídos, meios sem vida, e com olheiras escuras feito arcos a encarando de volta. Também tinha um par de óculos de grau que, apesar de tudo, ainda aparentavam certa elegância.
O homem era magro, de estatura baixa e levemente corcunda.
Mas algo nele gritava “perigo”. Um sorriso sarcástico e provocativo. Tinha um ar de violência que densificava o ar e poderia contaminar qualquer pessoa próxima.
Algo de animalesco. Do tipo que ninguém se surpreenderia se ele simplesmente atacasse uma pessoa aleatória e arrancasse as tripas com os dentes à mordidas.
Tâmara conhecia esse homem… essa criatura.
O viu apenas uma vez, mas não tinha como esquecer dele.
— Abigor…
— Olá, criança. Como está? O mundo te tratou bem?
Ela se levantou. Cerrou os punhos enquanto lembrava do que havia acontecido. A raiva estava se acumulando dentro dela a ponto de quase ficar insuportável.
Ela queria destruir todos os que atrapalhavam seu bom convívio com Renato.
— Vou matar aquela desgraçada! Vou matar todos! — grunhiu a garota, e se levantou. — Eles vão ver! Me irritar nunca é uma boa ideia!
Abigor sorriu. Adorava aquela expressão.
— Mal posso esperar para ver!
Tâmara pegou seu fuzil do chão e caminhou até a porta. Ainda era madrugada. Teria o efeito surpresa do seu lado. Estava em vantagem. Ou será que não? Ela parou no meio do caminho e pensou por um instante.
Aquele deveria ser o plano de sua vida. Eliminar, finalmente, as concorrentes e pegar Renato só para si. Precisava ser inteligente. Agir com impulsividade, sem planejamento nenhum, apenas movida pela raiva, poderia prejudicá-la.
— Preciso ser inteligente. Não posso errar.
Abigor abriu um sorriso.
— É assim que se fala! Uma portadora da Guerra jamais entra numa disputa para perder. Sua vitória precisa ser certa! Cada movimento, perfeitamente calculado.
Tâmara baixou os olhos, pensativa. Assentiu. Ele estava certo.
Ela sabia que era forte, mas as outras garotas também eram. Não subestimar o inimigo é essencial.
Ela precisava agir com cautela.
O demônio posicionou seus dedos indicador e polegar paralelos um ao outro, como se segurasse alguma coisa pequena, menor do que uma moeda, e então um dourado brilho sutil cintilou entre os dedos.
E a pequena pepita de ouro hiperdecaído apareceu.
Abigor jogou a pepita para Tâmara.
— Vou te emprestar isso. Garanto que vai ser bem útil.
— A cerimônia de despedida deve acontecer daqui a pouco, Pop. — O jornalista falava com seu colega, enquanto segurava o microfone. Atrás dele era possível ver muitas cadeiras, a maioria vazia, e vários túmulos. Renato conhecia o local: o cemitério Boa Partida. — A Politec passou os últimos dias tentando encontrar e identificar os corpos. Foram dezenas deles! Uma tragédia!
— Que tristeza! — respondeu o outro, que estava no estúdio. — Meu colega aí de casa pode acompanhar as preparações para a cerimônia. Caio, diz pra mim, é verdade que a Politec precisou da ajuda dos bombeiros?
— É verdade sim, Pop. O local da explosão estava todo cheio de escombros, então eles precisaram de muita ajuda. Contaram, inclusive, com a ajuda de voluntários! Foram vários dias de trabalho árduo, tudo para poder dar uma despedida digna àquelas crianças e àquelas mulheres que devotaram a vida em fazer o bem e cuidar do futuro do nosso país. Infelizmente, aconteceu essa tragédia. Um vazamento de gás, de acordo com a polícia, que ceifou todas aquelas vidas.
— Pra você ver, Caio… e meu colega aí que nos assiste em casa. A vida é tão passageira! E a gente nunca sabe quando termina! Meus sentimentos a todos! Que Deus conforte nosso coração! Agora, Caio, eu ouvi que aquele bilionário, o empresário Emmanuel Messias, vai estar indo pessoalmente para acompanhar a cerimônia. Você já viu ele por aí?
— O helicóptero dele já chegou e tá estacionado aqui perto. A gente até que tentou pegar algumas imagens, mas não conseguimos. Assim que tivermos uma chance, vamos tentar falar com ele! Ele postou em sua conta no Instagram, agora há pouco, um vídeo prestando condolências!
Renato desligou a tevê.
Olhou pro espelho. Usava roupas pretas. A cor do luto. Suas olheiras escuras e cansadas davam a impressão de que seus olhos estavam de luto também.
— Qual é, Renato?! — Clara reclamou. — Eu estava assistindo!
Pegou o controle remoto e ligou a televisão de volta, mas a reportagem tinha terminado, e em seu lugar passava um comercial sobre alguma marca de margarina que mostrava uma família feliz à mesa.
— Droga! — A súcubo estalou a língua, irritada.
— Ainda com uma pulga atrás da orelha sobre o tal empresário?
— Eu já te disse, Renato! Tem algo estranho com esse cara! Ninguém é tão bonzinho assim, a menos que esteja escondendo algum podre muito sinistro! Olha só pra você, por exemplo. Tem essa cara de bonzinho, mas ninguém imagina que é um completo pervertido e mantém as garotas à sua volta como escravas!
Renato fez uma careta de desgosto e coçou a cabeça.
— Já disse que aquilo foi um acidente…
— Acidente… sei! É o que todo ser maquiavélico e manipulador diria!
— Olha só quem fala! Não foi você mesma quem estava planejando transformar todos nós em sem seus servos, sua súcubo pervertida?!
— Minhas intenções eram as melhores possíveis, seu ingrato! Macaco de barro! Não vi você reclamando na hora de selar o Pacto! Na verdade, você parecia bem alegrinho naquela hora! E eu que sou a pervertida?! Seu Homo Sapiens depravado!
Nessa hora, Mical entrou correndo na sala, cortando aquele clima denso sem a menor cerimônia. Estava ofegante.
— Renato! Renato! A sua irmã! Ela chegou!
Renato foi o único a descer para receber sua irmã adotiva. As garotas, apesar de curiosas, acharam que seria melhor dar um tempo para eles.
Irina desceu do carro, pagou o motorista com pix, e tirou as malas.
Não tinha muitas. Apenas uma mochila, que pôs nas costas, e uma mala de rodinhas que saiu arrastando até a entrada.
Usava roupas leves. Uma camiseta com a estampa do Mickey, um short jeans e um par de tênis de onde saiam um par de meias listradas, brancas e rosas, que subiam até perto dos joelhos.
A mecha azul, como sempre, descendo pela lateral da cabeça.
Irina encarou aquele portão metálico com certa curiosidade. Era um prédio pequeno, para os padrões das grandes cidades, com três andares. Provavelmente, tinha um grande quintal. Sem dúvidas, a moradia de alguém com uma excelente conta bancária.
O portão se abriu e Renato finalmente surgiu.
A garota, ao vê-lo, não pôde se conter. Largou sua mala no chão e correu até ele, saltou e o abraçou, de modo que Renato precisou segurá-la para que ela não caísse.
— Que saudade, meu irmão! Que saudade!
— Também senti saudades, Irina.
Ela o soltou e olhou para ele.
— Você tá diferente.
— Ah, fala das cicatrizes? Eu me envolvi numas brigas, sabe? Nada muito sério.
— Não. Diferente de outro jeito.
Ele coçou a bochecha.
— Hum, por que não entramos?
O quintal era ainda maior do que ela imaginava. Tinha um lindo jardim e caminhos feitos de pedra que cortava o gramado. No centro de tudo, algo que realmente chamou a atenção da menina.
— Ei, Renato, que tipo de lugar é esse? — perguntou ela, meio chocada com a visão, e correu até o chafariz.
Renato correu para acompanhá-la.
— Aqui… bom… ei, sabia que tem peixes nesse chafariz?
— Não é isso que me deixou intrigada! Por que esse cupido tá nessa posição tão… como eu posso dizer… safada? É de algum pintor renascentista? Aposto que é italiano! Aqueles caras adoravam esculpir putaria.
— Eu francamente não sei.
Irina riu.
— Nosso pai ia adorar isso aqui!
— Talvez…
— Nossa mãe nem tanto… Ei! Quem são aquelas pessoas? Tem alguém ali!
A menina, disfarçadamente, olhou na direção de relance, para indicar onde Renato deveria olhar. Ser discreta era um hábito para ela.
Renato, por outro lado, não disfarçou nada. Virou o pescoço de uma vez para olhar na direção.
Nessa hora, Clara, Jéssica, Mical e Lírica, que os assistia em segredo, se esconderam rapidamente atrás de um carro.
Não foram rápidas o bastante, no entanto, e Renato as viu. E muito pouco sorrateiras a ponto de Irina também as perceber.
Foram completamente descobertas.
Renato suspirou. “Se formos depender das habilidades de stealth delas, estamos perdidos!”
— Irina… precisamos conversar.
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