Índice de Capítulo

    Durante o caminho de volta, todos permaneceram em silêncio. Não porque não tinha nada que queriam falar, mas porque sabiam que as palavras seriam inúteis.

    Renato já sabia o quanto eles lamentavam. O quanto queriam que ele ficasse bem. A simples presença deles ali bastava.

    Até Hiro, que adorava fazer comentários impertinentes, ficou calado, olhando com tristeza para o amigo.

    Pôs a mão em seu ombro. Quase disse alguma coisa. Mas a voz não saiu.

    Renato assentiu.

    — Eu sei, meu amigo. Obrigado por estar aqui.

    Renato apenas abraçava sua irmã, e limpava as lágrimas que escorriam pelo rosto dela.

    Irina estava encolhida em seu assento da van, cobrindo o rosto. Seu choro era baixinho e contido. Apenas Renato podia ouví-lo.

    Nada do que ele fizesse poderia tirar aquela dor do peito dela. Se pudesse, ele com certeza teria feito. Então, abraçá-la, acariciar sua cabeça e secar suas lágrimas era tudo o que podia fazer.

    Quando finalmente chegaram no predinho de Clara, o som dos passos deles ecoaram pelas escadas, roubando brevemente o silêncio.

    Renato e Irina entraram num dos quartos e lá ficaram.

    Compartilharam suas tristezas um com o outro. Dividiram lembranças incríveis.

    Até puderam sorrir, recordando momentos de travessuras, como a vez em que Irina pôs uma almofada de pum na cadeira da irmã Dulce, e a coitada ficou toda vermelha de vergonha, enquanto tentava conter o riso imparável das outras crianças.

    Nesse momento, tudo o que precisavam era a companhia um do outro.

    As garotas e Hiro ficaram na sala.

    Um silêncio constrangedor estava entre eles, denso como piche.

    Apesar de tudo, estavam ali, para o caso de Renato precisar deles.

    Clara pegou uma taça de vinho e sentou-se no sofá.

    Tinha expressão neutra no rosto.

    Lírica relaxou os ombros e tirou o chapéu que usava, revelando as orelhinhas de gato que antes estavam escondidas. Foi até a janela e se apoiou no peitoril, olhando aquele dia que, apesar de tudo, estava lindo. Os pássaros cantavam alegremente, e o céu ainda era azul.

    Hiro, por um momento, achou que aquilo era um acessório. Talvez uma tiara estilizada, como aqueles headphones de orelhinhas que algumas streamers usavam.

    Mas o segundo suposto acessório que viu ele achou um pouco demais, até uma falta de respeito com a situação de seu amigo.

    — Aquilo ali é um plug anal?! Por que essa garota pervertida fica andando com um plug desses até no cemitério? Não é meio absurdo?

    A demi-humana, ao notar que ele estava falando com ela, se virou e lançou um olhar confuso.

    — Do que você…

    Clara, ao entender a situação, não segurou a gargalhada.

    — Ele acha… — riu alto — que sua cauda é um plug! 

    — Minha cauda? — Ainda confusa, moveu a cauda peluda e a olhou. — Não entendi. Qual o problema com ela?

    Hiro apontou o dedo, acusador.

    — V-você ainda consegue mover essa coisa? Por acaso tem super poderes? Você é uma daquelas pessoas que fazem… qual era mesmo a palavra? Pompoarismo! E consegue fazer isso se mexer apenas piscando o…

    Clara o interrompeu, botando a mão em seu ombro.

    — Vamos manter a classe aqui, certo? Ah, que se dane! Eu não ligo. Se alguém quiser explicar, que fique à vontade.

    Clara finalmente revelou sua forma demoníaca, com chifres e asas, e saiu pra pegar mais vinho.

    Jéssica suspirou, cansada e sem paciência para a ignorância do garoto.

    — Acho que eu também preciso de vinho — disse ela, e seguiu Clara.

    — Mas explicar o quê? Eu ainda não entendi. Qual o problema com a minha cauda?

    Mical se aproximou.

    — Aquilo não é um… er… um plug. Aquilo é dela mesmo. Ela nasceu com aquilo.

    Hiro lançou o olhar atônito.

    — Não! Primeiro a garota do plug e agora aquela outra com cosplay de demônio! Eu não sou tão idiota assim pra acreditar nesse tipo de coisa. Deve ter uma câmera escondida em algum lugar! Isso é uma pegadinha! Eu, com certeza, vou aparecer no programa do Silvio Santos nos próximos dias!

    — Mas é verdade! — insistiu Mical. — Veja como ela consegue mexer a cauda livremente.

    — Aquilo poderia ser eletrônico. Só acredito se eu puder ver mais de perto.

    Lírica bufou. 

    — Se chegar perto de mim eu te mato.

    E então virou as costas e, com um salto, subiu na janela e, em seguida, deixou seu corpo cair para trás.

    Hiro se assustou. Achou que a garota tinha cometido algum ato suicida. Correu até a janela e a viu lá embaixo, caminhando no gramado, indo até às árvores frutíferas do jardim.

    Depois, a imagem de Clara surgiu voando sobre o gramado, com as asas abertas, e pousando no jardim, próximo do cupido. Tudo isso, claro, sem derrubar a taça de vinho.

    Hiro ficou completamente chocado.

    — Espera! Ela… ela… ela está…

    — Isso porque ela não é humana.

    A face dele se iluminou quando a ficha finalmente caiu.

    — V-você está me dizendo que ela é uma daquelas… uma daquelas meninas gato de anime?

    Mical coçou a cabeça.

    — Bom, ela é uma menina gato da vida real, eu acho…

    Hiro caiu de joelhos no chão, com lágrimas nos olhos. A muleta caiu do lado, abandonada.

    — Elas existem! Deus! Kami-sama! Meninas gato existem de verdade! Minhas preces foram ouvidas! A qual laboratório de engenharia genética eu devo agradecer por tal milagre?

    Ele tentou juntar as palmas das mãos, durante a prece, mas devido ao gesso num dos braços, não conseguiu.

    Finalmente se levantou, meio desengonçado.

    — Ei, por acaso ela estaria solteira?

    Mical riu.

    — Não mesmo. Aparentemente, ela é uma noiva do Renato.

    — Noiva do Renato? O sortudo realizou um dos maiores sonhos dos otakus! Ele tem uma garota-gato!  Caramba! Eu tô com tanta inveja! Espera aí, mas eu achei que ele estava com alguma de vocês. Aquela garota malvada, a… demônia…  era minha principal suspeita.

    Mical coçou a cabeça mais uma vez.

    — Então… como eu posso explicar…?

    E mais algumas explicações depois:

    — Perai! É o quê? Por acaso ele ganhou na loteria?! Tá namorando todo mundo! O desgraçado é o maior pegador sobrenatural e eu não tô sabendo?! E pensar que eu já cheguei a desconfiar que ele era gay… julguei mal o coitado. O cara é um Conan!

    Hiro se abaixou pra tentar pegar sua muleta de volta, mas devido à perna engessada, teve dificuldade.

    Mical o tocou no ombro.

    — Você ficou machucado porque nos protegeu.

    Ele sorriu, meio sem graça.

    — Ah, bom, eu só estava cumprindo minha promessa com meu amigo…

    — Mesmo assim. Sinto muito por toda a dor que sentiu. 

    Nessa hora, uma luz verde envolveu Hiro. Um calor aconchegante lhe tocou a pele e houve algo como borboletas dançando no estômago. Seu braço quebrado e sua perna começaram a formigar, e depois a coçar.

    A luz se dissipou quando Mical tirou a mão do ombro dele.

    — Como se sente?

    — Ah, como assim? Eu não sei se entendi muito bem o que… — Parou de falar. Franziu o cenho, confuso. Moveu o braço e a perna. — Isso…

    — Eu curei seus ferimentos.

    — Você… curou… não dói mais! Não sinto mais! Minha perna doía sempre que eu pisava desse jeito, mas agora não sinto mais nada! Meu braço parou de doer também! Você é uma santa? Uma deusa? Ou um anjo que caiu do céu?

    — Ah, bom…

    — Acho que entendi a situação. Vocês todas são… seres mágicos. Têm poderes! Eu sabia que o Renato estava envolvido em alguma coisa estranha, só não sabia o que era. Não vou fazer muitas perguntas, mas tem uma coisa que eu preciso saber. Você poderia curar mais gente?

    — É claro que sim! Eu quero ajudar as pessoas! Quero curar quantas pessoas eu puder!

    — Poderia ir comigo até o hospital? Tem alguém…

    Mical assentiu.

    *

    Além dos limites da cidade, numa rodovia federal, Tâmara dirigia um caminhão que roubara de um motorista ao assassiná-lo num posto de combustível.

    Tinha sido fácil. Uma garota bonita como ela, parecendo indefesa, não teve dificuldades em atrair sua presa, tal qual a bruxa atraindo crianças com sua casa de doces.

    Dirigir era ainda mais simples. Qualquer coisa mecânica inventada pelo homem, e que pudesse ser usada como arma, ela poderia manipular como bem quisesse. As informações simplesmente brotavam em sua cabeça. Era o presente que o demônio Abigor lhe deu.

    Tâmara só precisava ser criativa o suficiente para saber o que fazer com isso, e criatividade ela tinha de monte.

    Finalmente viu o Carro Forte vindo em sentido contrário, na outra mão da pista.

    Seria tão fácil! Não precisaria dar um tiro. Talvez um ou dois, se muito.

    Dinheiro!

    Dinheiro é a verdadeira força mágica do mundo. Com ele, tudo é possível. E era de possibilidades que a garota estava precisando.

    Sem ele, nenhum de seus planos poderia ser colocado em prática.

    Então, tinha chegado a hora!

    E assim que o Carro Forte ficou na distância correta, Tâmara girou o volante do caminhão de uma vez!

    Não importava o quão bons fossem os reflexos do motorista, seria impossível para ele evitar a morte certa.

    O som metálico da colisão rasgou a estrada, vidro e aço se despedaçando em mil fragmentos. O caminhão tremeu levemente com o impacto, mas Tâmara nem piscou.

    Era hora de pegar suas possibilidades.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota