Índice de Capítulo

    — Uh, que fedor! — Irina teve que gritar por causa do vento. O bafo quente de enxofre batia no rosto e fazia os olhos arderem.

    — E ainda nem chegamos na parte ruim — respondeu Lírica.

    Eles estavam presos aos tentáculos de Angélica, se balançando nos ares tóxicos do Inferno, enquanto a garotinha batia aquelas asas brancas, semelhantes a de pomba.

    No alto, uma lua brilhante, de tons frios, algo entre o roxo e o azulado, e um mar de estrelas derramadas no negrume do céu.

    Embaixo, colinas e vales se esparramavam sobre a superfície esverdeada.

    — E que merda foi aquela? Não foi só eu que vi, né? Diz que não foi só eu que vi! — gritou Irina.

    — Um Ophanim — respondeu Clara. Tinha um olhar entediado.

    — Ophanim? Aquilo é tipo um anjo?

    — Mais ou menos. Aquilo tá mais pra… um tanque de guerra do céu. Aquela coisa está cheia de anjos dentro.

    — O poder destrutivo é gigantesco. — Lírica completou. — Um único disparo do Canhão Exotérmico pode destruir uma cidade inteira. Com algumas dezenas de disparos, um país inteiro se transformaria num monte de cinzas.

    — Humpf! — Angélica deu de ombros e exibiu no rosto a expressão mais arrogante que conseguiu. — Não é páreo para as forças do Inferno!

    Voaram durante bastante tempo.

    Durante um momento da viagem, um Carniceiro se aproximou deles em pleno ar e voou ao lado, acompanhando-os.

    O corpo do bicho devia ter quase dois metros de comprimento, e as asas  eram gigantescas. O bico curvo e fino, parecia feito para rasgar carne, assim com suas garras ameaçadoras.

    Renato sentiu um arrepio na espinha e se afastou o quanto pôde.

    Irina permaneceu em silêncio, com os olhos arregalados, encarando aquela criatura de pesadelos.

    Angélica gargalhou.

    — Que foi, senhor humano? Tá com medo de um passarinho?

    — É que eu tenho uma péssima lembrança desses bichos!

    — Ah, eles são inofensivos! — Angélica riu, divertindo-se.

    — Inofensivos nada! Um desses bichos tentou me comer!

    O Carniceiro grasnou. Foi um som tão agudo que incomodava os ouvidos. E finalmente ganhou altura, se afastando.

    — Que medo… — disse Irina.

    Clara ergueu uma sobrancelha, desconfiada.

    — Essa humana não está lidando com tudo isso de maneira muito natural? Ela não devia estar em pânico ou coisa assim?

    Todos voltaram seus olhares para Irina, com o mesmo questionamento na cabeça.

    — Oh, que medo! Meu Deus! — disse ela, num tom irônico. — Eu estou no Inferno! Socorro!

    Renato coçou a cabeça.

    — Irina sempre foi meio… peculiar.

    — E eu já conheço o sobrenatural — completou ela, dando de ombros. — Já encontrei alguns monstros por aí.

    Cruzando os ares, puderam contemplar aquele mundo do alto, como se estivessem num mirante móvel.

    A geografia era estranhamente comum, e eles puderam testemunhar quando as colinas e vales deram lugar ao imenso cemitério que se estendia até onde a visão podia alcançar.

    Infinitos túmulos que se ocultavam na névoa sombria.

    O fogo-fátuo se erguia em bolas de luz ou pilares reluzentes até o céu.

    O local inteiro estava infestado de Carniceiros. As aves voavam em bando. Encaravam o grupo por um tempo, mas logo perdiam o interesse. Às vezes, até brigavam entre si, trocando violentas bicadas e golpes das garras.

    Depois cruzaram a grande Floresta Perdida. Renato pôde notar uma clareira com algumas cabanas de palha.

    — Uma aldeia de orcs — disse Clara, ao perceber a curiosidade do garoto.

    — Isso me traz lembranças. — Renato respondeu.

    — Já esteve aqui antes? — Irina franziu o cenho.

    — Sim… — respondeu ele, um tanto tímido.

    — E por que não me contou?

    — E o que eu diria? “Oi, mana, então… eu fui num rolê no Inferno semana passada”?

    — E por que não, hein?!

    Renato deu de ombros.

    — Você não ia acreditar mesmo!

    — E como você sabe? Talvez eu tivesse acreditado! Não pode guardar segredos da família, Rê! Os segredos se acumulam! Daqui a pouco você tá namorando e não conta pra ninguém!

    Clara espirrou e depois riu.

    — Ele já namora.

    — O quê? Com quem?

    — Comigo, é claro. — A súcubo tinha um sorriso sedutor. — Também com aquela garota gato ali, que está em silêncio a viagem inteira. E também aquelas duas puritanas que ficaram para trás. Quatro garotas! Ah, e não satisfeito, ele escolheu uma assassina em série pra ser amante dele! — Clara fez um olhar sombrio, como se estivesse julgando os atos de Renato.

    Irina ficou chocada.

    — Então meu irmão é um cafajeste?

    — Aparentemente sim.

    — Na verdade, eu não sou namorada dele — disse Lírica. — Sou noiva. Ele me pediu em casamento quando me deu um nome.

    — Minha cabeça tá girando! — soluçou Irina.

    O voo durou horas.

    Sobrevoaram castelos feitos de pedra, de arquitetura extravagante, lagos luminosos feitos de lava e fumaça, cadeias de montanha que se erguiam em direção ao horizonte. Atravessaram nuvens de gases tóxicos com cheiro forte e todas as cores possíveis.

    Até que finalmente se aproximaram de Pandemonium, a capital do Inferno.

    Não era tão diferente de uma cidade da Terra. Havia casas, prédios e ruas estreitas que pareciam seguir por direções aleatórias. No entanto, algo parecia fora do lugar. Desencaixado.

    Havia um rio de águas turvas, cujas águas corriam tranquilas, e que passava uma sensação de esconder algum tipo de monstro em seu leito.

    Uma névoa sombria envolvia a cidade feito um manto de escuridão.

    E finalmente viram o grande castelo, com suas pontas de pedra entre as ameias, como se fossem lanças apontando para o Céu.

    E diante da entrada, uma multidão de criaturas: demônios com chifres retorcidos e asas negras; orcs gigantes, com suas presas protuberantes saindo da boca, balançando espadas e clavas; e variados tipos de monstros que Renato não sabia o nome.

    Havia uma elevação de pedra na frente das criaturas, como uma plataforma, onde alguns demônios estavam. Renato reconheceu Baalat, Belfegor e o reitor Fênix, mas havia outros, e até alguns soldados com suas espadas na cintura.

    Angélica posou sobre a plataforma e recolheu as asas, e finalmente desenrolou os visitantes de seus tentáculos.

    Baalat se aproximou.

    — Achei que traria apenas aquele humano, mas trouxe o canil inteiro.

    Angélica gargalhou, não se importando com as palavras da irmã.

    — Seria maldade separar os bichinhos que vivem juntos. Eles choram de saudade, sabia?

    Baalat deu de ombros, achando toda a questão de pouca importância.

    — Além disso — Angélica continuou —, aquela ali sabe fazer brigadeiros!

    — Brigadeiros? — Baalat franziu o cenho.

    — Sim! São incríveis! Os melhores brigadeiros do mundo! Você vai ver!

    Clara não pôde evitar de rir ao imaginar a enrascada que Irina tinha se metido.

    — Que seja — disse Baalat. — Só não quero que eles façam muita sujeira pelo castelo. Mantenha-os na coleira.

    — Humano! Humano! Lembra da gente?!

    Quando olharam na direção da voz, viram os dois diabinhos subindo na plataforma.

    Os dois aparentavam ter cerca de 7 anos. Um tinha a pele completamente vermelha; e o outro, azul.

    Um único chifre se destacava nas testas.

    Alguns guardas tentaram pará-los, mas eles os driblaram com agilidade e correram até Renato.

    Os guardas tentaram segui-los, mas receberam o olhar de repressão de Angélica e simplesmente abaixaram a cabeça.

    — Humano! Eu sabia que estaria vivo! — disse o de pele azul.

    — Eu, por outro lado, pensei que estivesse morto! — complementou o vermelho.

    — Assistimos a sua luta nas Areias da Segunda Morte! Quando eu falei que te conhecia para os outros, eles não acreditaram e zombaram de mim! Diga a eles, humano! Eu assisti seu treinamento com o Kazov!

    — Er… — Renato ficou um tanto atônito. — Vocês estavam mesmo lá. Eu me lembro.

    — Tomem essa, seus invejosos! Eu e o humano somos amigos! — gritou o azul. — Toma essa, Freed!

    — O senhor poderia autografar meu boneco de voodoo? — O vermelho tirou do bolso um boneco de palha, que tinha a boca costurada e olhos de botões, e era tão feio que nem mesmo as moscas chegariam perto.

    — Autografa o meu também? — O azul mostrou seu próprio boneco, e esse era tão feio que poderia sofrer bullying do primeiro.

    — Hum… certo — respondeu Renato. — Mas isso não vai me amaldiçoar não, né?

    — Ah, não! — riu o azul. — Isso é só um brinquedo que a gente ganhou na escola. É incapaz de fazer maldições.

    O garoto, meio desconfiado, olhou para Clara e depois para Angélica, e elas pareciam pouco preocupadas com a situação. Então ele tentou pensar em alguma coisa legal para escrever, mas tudo o que pôde pensar foi: “Sejam bons meninos. De seu amigo de sempre, Renato Yakekan”.

    Mesmo Renato pensando ter sido um autógrafo bem medíocre, os diabinhos saíram saltitantes de alegria.

    — Somos seus fãs, humano! Vença mais lutas! Estaremos torcendo por você!

    Irina estava tão incrédula que nem sabia como expressar em palavras.

    Angélica gargalhou.

    — Eu consegui um bichinho realmente muito legal. Ele até tem fãs!

    — O Renato tem fãs no Inferno?

    — Muitos — respondeu Baalat. — Principalmente entre as crianças e os demônios de baixa classe. Mas onde ele tem muitos fãs mesmo é nas Prisões Subterrâneas de Enxofre.

    Irina suspirou.

    — Acho que tinha alguma coisa na minha bebida, e na verdade eu tô é muito chapada, alucinando com tudo isso.

    — Então esse foi o humano que lutou a Tercina? Não me parece grande coisa! — gritou alguém do meio da multidão. Era uma voz grave, rouca e falhada, como a de um fumante de Derby com muitos anos de vício.

    Os demônios e monstros abriram um espaço na multidão, e finalmente puderam ver quem falava: um Orc de mais ou menos dois metros e meio de altura. Usava uma armadura pesada e brilhante, que protegia quase o corpo inteiro. Trazia, presa à cintura, uma clava de ferro enferrujada cheia de espinhos.

    Ele apontou a clava na direção de Renato.

    — Eu desafio esse macaco de barro para um duelo!

     Os outros Orcs ficaram eufóricos. Gritavam palavrões para Renato, e diziam que ele seria comido vivo, e que seria partido ao meio.

    — Hoho! — Angélica sorriu, de maneira soberba. — Você tem muita coragem! Desafiar meu bichinho assim… deve estar preparado para a morte! Ele vai acabar com você!

    — Perai… você vai aceitar a provocação? — Renato ergueu uma sobrancelha. — Vai me fazer lutar com aquele monstro?

    — Qual é, Renato? É só um Orc — disse Clara. — Você já enfrentou esses bichos antes. Tá com medinho?

    — Renato ficar com medo assim… não é normal — apontou Lírica.

    — Não me diga que vai amarelar, irmãozinho? — questionou Irina. — Vai me envergonhar pro Inferno inteiro? Acaba com esse monstrengo metido a besta!

    Renato riu.

    — Ai, ai, vocês só estão falando isso porque não é o de vocês que tá na reta! Mas… fazer o que, né? Vamos lá. Vamos deitar esse bicho no soco.

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