Capítulo 150: A Sombra e a Serpente
— Como se eu fosse deixar isso acontecer! — rosnou Renato. Olhava para aquele demônio com os olhos cheios de raiva. O peito estufado; o rosto erguido.
O demônio não gostou de se sentir desafiado. Abriu as asas negras e espinhentas, parecendo ainda maior e mais ameaçador, e retribuiu o olhar raivoso.
— Como se alguém como você pudesse deixar alguma coisa! Animalzinho, tá querendo morrer?
A demi-humana, que até o momento apenas assistia a situação com olhos neutros, tentou se levantar para intervir, mas Clara a deteve.
— Angélica não vai deixar.
— Gostaria de ver você tentar! — O garoto retrucou para o demônio, petulante.
— Renato! Já chega! Volta pra cá! — gritou Angélica. E seus tentáculos de sombra se agarraram ao garoto e o puxaram para seu lugar ao lado dela. — E você, Belial, controle-se. Mantenha a compostura e continue o que estava falando antes.
Belial deu de ombros e limpou a garganta para continuar, mas…
— Quem você pensa que é pra falar assim com meu irmão, seu monstrengo?! — gritou Irina, e se levantou, apontando o dedo para o demônio. — Fala assim com ele de novo e eu encho sua cara de tiros!
Irritado, Belial nem se dignou a responder. Apenas ergueu a mão para calá-la com um tapa.
Porém não conseguiu completar o golpe. Seu braço foi impedido de terminar o movimento.
Renato o estava segurando pelo pulso.
— Cuidado. Se tivesse encostado um dedo nela, já estaria morto.
— Como se atreve a…
— Quietos! Já chega! — Baalat se levantou. — Estamos aqui para tratar de assuntos sérios. Angélica, seu pet já está causando problemas.
— Mas eu estava segurando ele! Não entendo como escapou!
— Senhorita Baalat! — disse Renato. — Por favor, reconsidere a invasão à Terra. Deve haver outra solução.
— Hum? — Baalat inclinou a cabeça, admirando a coragem burra daquele humano. Uma única palavra dela, e ele sofreria torturas e agonias intermináveis. E
Belial poderia ser ainda mais cruel do que ela. — E que outra solução sugere?
Na boca dela, um sorriso discreto e malicioso.
Renato hesitou. Não tinha um plano. Não sabia o que dizer. Mas essa era sua chance. Dificilmente o ouviriam depois, então, ou falava alguma coisa nesse momento, ou não teria outra oportunidade.
— Eu posso derrotar o cavaleiro da guerra!
Um silêncio constrangedor tomou o ambiente. Apenas a brisa fraca e seca podia ser ouvida.
E então Baalat explodiu em gargalhadas. Riu tanto que precisou limpar as lágrimas dos olhos.
— Ah, esse humano é mesmo divertido! Agora eu entendi porque você gosta dele, Angélica!
— Mas eu posso! Eu derroto ele e vocês não precisam invadir a Terra com um exército!
— Acho que aquele orc te bateu na cabeça e nós não vimos. Tá delirando. Por acaso você já foi diagnosticado com esquizofrenia, garoto?
— Eu consigo!
— E por que acha que consegue, filho de Adão? Compreende o quão grande é o poder de um Cavaleiro do Apocalipse? Eles estão num patamar muito próximo dos deuses, e até podem superar alguns deles. A chegada dos cavaleiros é algo tão grandioso, que foi profetizado na bíblia. Então, você, feito de pele e sangue, e ossos, e carne, aparece aqui e diz que pode vencê-lo. Estou curiosa para saber por que tem tanta confiança.
Mais uma vez, Renato hesitou. Dar informações demais ao Inferno não parecia uma boa ideia.
Mas ficar em silêncio parecia uma ideia pior.
Ele olhou para Clara, buscando algum auxílio ou orientação. E ela balançou a cabeça, sinalizando um não. Sabia o que ele estava pensando e não concordava. Era perigoso demais.
— Como pensei — disse Baalat, vendo a hesitação do garoto. — Não tem nada além de palavras desesperadas e vazias.
— Eu consigo vencer porque… eu sou o Condutor de Arimã.
— Tsk! — Clara estalou a língua. — Idiota! Você nos colocou em perigo.
— Condutor de quê? — Irina fez uma expressão confusa. — Tá escondendo coisas importantes de mim, irmãozinho?
Baalat franziu o cenho.
Por um momento, pensou ter ouvido errado.
Belial riu com desdém.
— Isso é um absurdo! Um louco desesperado diria qualquer coisa!
Phenex, que acompanhava tudo de uma certa distância, porém levemente curioso, finalmente se aproximou. Caminhou até Renato e olhou por um tempo, examinando-o.
— E tem como provar o que diz, garoto?
— Ele já provou — rebateu Belfegor. — Eu mesmo vi seu poder e sua grande influência sobre a Criação. Sou testemunha do que ele diz!
Belfegor se aproximou de Renato e se ajoelhou, colocando um joelho no chão.
— Desculpe não ter interferido antes. Eu achei que ia preferir manter o segredo. Mas como já contou, não há motivos para fingimentos.
— Você não tem orgulho, Belfegor? — berrou Belial. — Está se ajoelhando perante uma criatura miserável e ínfima como essa?
— Cale a boca, Belial! Se não calar, eu mesmo te matarei!
— Certo, certo — disse o reitor Phenex. — Acho melhor discutirmos isso num ambiente mais apropriado.
*
Enquanto voavam até o local decidido, Angélica pousou no chão de pedra e recolheu suas asas.
Estava numa caverna que afundava em direção ao subsolo. Estalactites e estalagmites se projetavam feito pontas de lanças.
E do interior da caverna fluía um ar quente e mal cheiroso, como se o chão estivesse respirando.
— Baalat — disse a garotinha.
— Baalat! — insistiu, dessa vez com o tom de voz mais alto.
Sua irmã pousou ao seu lado e também recolheu as asas.
— Cara irmãzinha, o que deseja?
— O que vão fazer com aquele humano?
— Ainda não decidi — respondeu a mais velha, dando de ombros. — No momento, vamos verificar a veracidade de sua afirmação. Testar suas capacidades mágicas e físicas, e ver quanto poder ele pode acumular. Talvez eu decida matá-lo. Talvez o aprisione nas Prisões Subterrâneas de Enxofre. Talvez eu use-o como uma arma. Vai depender do meu humor.
Baalat tinha um olhar cínico e prepotente.
— Mas isso tudo só vai ser possível se ele sobreviver aos testes, é claro — finalizou.
Os olhos de Angélica estavam lacrimejados. Não de tristeza, mas de raiva.
— Eu não vou deixar ferirem ele! Ele é meu! Eu o achei! Eu decidi que queria cuidar dele! Eu fui até a Terra e busquei! Meu! Apenas meu! Não vou deixar você maltratar ele! Não vou deixar que o machuquem!
— Não vai deixar? — Baalat lançou um olhar de pena para sua irmã. — Irmãzinha, eu tolero seus caprichos mais do que deveria, mas ainda sou eu quem toma as grandes decisões na ausência de nosso pai. Não preciso da sua permissão. Você deixar ou não, não faz a menor diferença. Encontre outro brinquedo. Ache outro humano que queira como bichinho. Aquele não é mais sua propriedade.
— Não! Eu não aceito!
Os tentáculos saíram de trás de Angélica e se armaram.
Alguns agarraram Baalat, segurando-a, enquanto outros ficaram numa posição de que podiam atacar a qualquer momento, atravessando seu corpo.
Baalat sorriu.
— Usando seus Fios de Escuridão em mim? — Ela balançou a cabeça. — Faz tempo que não te deixo de castigo, mas está merecendo!
Os olhos de Baalat mudaram. O azul profundo ficou levemente esverdeado, e a pupila mudou. Ficou num formato de fenda, como os olhos de uma cobra venenosa.
— Você não quer isso, não é, Angélica? Não deseja brigar comigo. Não deseja ser punida.
— Não desejo… — A voz de Angélica saiu fraca e falhada, como um sussurro. Era como se estivesse em transe.
E seus Fios de Escuridão tremularam, refletindo a confusão mental de Angélica, e finalmente desarmaram-se e soltaram Baalat.
Angélica finalmente voltou a si.
— Usou o seu Olhar da Serpente em mim?! — gritou indignada, com lágrimas nos olhos. — Sabe que não pode! Não pode! Vou contar para nosso pai!
A garotinha virou as costas e correu, abriu as asas e voou para longe, e desapareceu para além da entrada da caverna.
Baalat suspirou, parecendo cansada. Levou a mão à testa.
— Crianças…
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