Índice de Capítulo

    Estavam numa grande câmara subterrânea, no centro de um grande labirinto formado por túneis que se entrelaçavam, se bifurcavam e davam muitas voltas no subsolo.

    As paredes eram formadas por algum tipo de rocha semelhante a calcário, levemente amareladas por causa da presença de enxofre.

    O cheiro era de ovos podres, carregados por um sopro constante que vinha do interior do complexo de cavernas.

    A câmara era espaçosa. Um grande salão esculpido na rocha. De vez em quando, ouviam um som particularmente perturbador, como um ronco grave, como se alguma criatura dormisse nas profundezas mais escuras.

    No centro estava Renato, rodeado por suas companheiras. Pareciam conversar casualmente, mas o olhar de Baalat era afiado o suficiente para saber que eles estavam tramando uma fuga, para o caso de algo assim ser necessário. Ela sorriu. Gostava do ímpeto deles. Eram corajosos; embora um tanto inconsequentes.

    — O que acha, reitor? — perguntou Baalat. Ela segurava uma taça de absinto nos dedos, tão verde e brilhante que parecia esmeralda derretida.

    — Sinceramente, eu senti arrepios desde a primeira vez em que vi esse garoto. Quando soube que um humano tinha derrotado um demônio de alto nível, mesmo recebendo ajuda, eu soube que algo não estava certo. Alguma coisa cheirava a problema. Problema do tipo Apocalipse, se é que me entende. Conversei com ele, e ele mesmo estava cheio de dúvidas. Tão perdido quanto qualquer ser humano recém despertado para o sobrenatural. Mesmo assim… tinha uma certeza perturbadora nos olhos dele… E você, senhorita? O que acha sobre isso?

    Baalat deu de ombros.

    — Eu sei que nem todos os deuses do mundo fariam Belfegor se ajoelhar para um ser humano. — Bebeu um gole de sua bebida.

    — Precisamos de um plano de fuga — falou Irina. Seu sorriso casual escondia a verdadeira natureza da conversa.

    — O Olhar da Serpente de Baalat é um tipo de controle mental. Acho que eu consigo bloqueá-lo — disse Lírica. — Vai ser difícil, mas talvez dê certo.

    Clara riu.

    — Confiante você. Acho mais fácil seu cérebro virar geléia no processo.

    — E tem alguma ideia melhor?

    — Talvez — respondeu a súcubo, e olhou na direção de um túnel estreito e escuro, que se aprofundava naquele solo sulfúrico.

    Nessa hora, o ronco grave de uma besta distante fez as paredes da caverna vibrarem.

    Os soldados finalmente entraram na câmara, trazendo consigo uma garota de pele pálida e longos cabelos negros. De visual gótico, usava um vestido preto e sombra nos olhos.

    Um garoto a acompanhava de perto. Devia ter a idade parecida com Renato, talvez um pouco mais velho. Também trazia muitas cicatrizes no rosto e corpo. Seus olhos eram castanhos claros. Parecia preocupado. Olhava em volta com olhos observadores.

    — Acho que já vi aquele ali… — disse Renato.

    Clara olhou na direção dele.

    — Hum… que interessante! O garoto lobisomem daquela vez!

    — Lobisomem?

    Irina se encolheu e se agarrou a Renato. Ele a abraçou, dando conforto.

    O garoto sabia que ela tinha medo de lobisomem desde a infância tanto quanto ele tinha de vampiros. Os dois atravessaram longas madrugadas juntos assistindo filmes de terror, o que produziu alguns traumas.

    Mesmo assim, ele achava suspeito que uma garota como ela ainda nutrisse esse medo, considerando sua personalidade. Às vezes ele se perguntava se Irina não estava apenas usando de sua aparência frágil e fofa para conseguir alguma atenção e carinho.

    Se ele tivesse visto o sorriso bobo e, ao mesmo tempo, culpado dela, suas suspeitas aumentariam ainda mais.

    — Então aquela menina também é uma… como posso dizer…? Lobisgarota? — perguntou Renato.

    Clara bufou.

    — Não seja bobo. Ela é outra coisa. Tem um cheiro diferente.

    Lírica puxou o ar, farejando.

    — Bruxa — concluiu a demi-humana. — Uma bruxa diferente.

    — Diferente como? — Clara ergueu uma sobrancelha.

    — Uma bruxa de emoções.

    — Oh! Há muito tempo não vejo uma dessas! Elas são raras.

    Atrás deles vinha Angélica. De peito estufado e olhar orgulhoso tal qual uma princesa deveria ter.

    E também outro rosto conhecido: Satanakia. A aura negra em volta dele era densa, carregada por ódio.

    — Muito bem! A garota chegou! — disse Belfegor. — Podemos começar!

    — Não gosto de vir aqui! — resmungou a menina gótica. — Já falei isso!

    Baalat foi até ela, tocou em seu ombro e sorriu.

    — Seja bem-vinda ao meu reino, Isa! Preciso da sua ajuda.

    — E por que não podemos fazer isso lá na Terra? Esse lugar fede!

    — Motivos de força maior…

    — Sei…

    — Espero que seja rápido! — retrucou o garoto que a acompanhava. — Temos um encontro mais tarde!

    — Vai ser — respondeu Baalat, com um sorriso tranquilizador. — Não quero atrapalhar o encontro de vocês.

    Clara e Lírica se entreolharam.

    — Eu perdi alguma coisa? — perguntou a demi-humana. — Desde quando humanos podem falar assim com aquela que é considerada a mais cruel das princesas infernais?

    — Desde agora, eu acho — respondeu Clara, tão desconcertada quanto ela.

    Satanakia, com passos firmes e olhar soberbo, caminhou até Renato.

    Clara e Lírica ficaram alertas, pois sabiam que o demônio podia nutrir um desejo de vingança.

    Irina, por outro lado, se manteve com um olhar tranquilo; mas isso escondia o turbilhão que passava por sua cabeça. Apesar de não deixar transparecer, ela também percebeu o clima de ameaça. Seus olhos afiados captavam cada detalhe daquela criatura grande e musculosa, procurando por alguma fraqueza, mas quase não havia nenhuma. Exceto:

    — Os olhos — sussurrou ela. — Numa luta, eu miraria nos olhos.

    — Bem que o Baelzebub disse — Satanakia abriu um sorriso provocador. — Vocês são mesmo um bando de gatos escaldados.

    Clara gargalhou do jeito mais arrogante que conseguiu.

    — Olha quem fala! Se alguém tem motivo pra ser gato escaldado aqui, é você, Satanakia! Obrigado por ter sido a primeira vítima do meu Renato!

    O demônio suspirou, sufocando dentro de si a raiva crescente. Depois deu de ombros e olhou para o Renato.

    — Condutor, é? Então você é aquele cuja chegada foi profetizada pelo Falso Profeta?

    O garoto lhe direcionou olhos neutros.

    — E as asas… cresceram de volta?

    — Ainda não — respondeu com uma careta amarga. — Mas vão crescer.

    — Pois eu duvido dessa história! — Belial se ergueu de sua cadeira no canto. — É só um macaco de barro que em algumas décadas vai morrer, e depois irá queimar eternamente nas Prisões Subterrâneas de Enxofre! Ou quem sabe até no Gehenna!

    — Mais respeito, Belial! — retrucou Belfegor, com dentes cerrados. — Senão…

    — Senão o quê? Hein? Pra um demônio, você tá defendendo demais um ser humano no Inferno! Tô começando a questionar onde verdadeiramente está sua lealdade.

    — Minha lealdade sempre esteve no Inferno! Eu defendo este garoto porque ele é quem pode levar o Inferno a um estado nunca antes visto!

    — Certo! Vamos acalmar os ânimos — disse Baalat, se aproximando deles, trazendo a garota gótica pelo braço.

    Belial lançou um olhar indignado, mas preferiu não dizer nada.

    — Vamos lá, Isa — continuou Baalat, com uma fala macia e cortez, até estranha para ela. — Você já sabe o que fazer.

    A garota assentiu e se aproximou de Renato.

    — Sei sim.

    Baalat assentiu, satisfeita, e foi para o canto onde Angélica estava.

    — Bom vê-la, irmãzinha. — Deu-lhe um sorriso amigável.

    Recebeu de volta um olhar penetrante e gelado.

    — Não quero falar com você agora!

    — Ainda está com raiva?

    — Humpf!

    — Tudo bem — disse Isa, se aproximando de Renato. — Baalat me falou sobre você. Sabia que eu já conheci cultuadores de Arimã? Aposto que se soubessem de você, estariam te adorando como um deus agora mesmo.

    — Me parece algo esquisito.

    — Ah, eles são bem esquisitos mesmo. Mas, hoje em dia, quem não é?

    Renato riu, achando o comentário de Isa genuinamente engraçado.

    — Poderia fechar os olhos? — pediu a garota. — E tente se concentrar em si mesmo.

    Renato obedeceu.

    — E o que eu faço agora? O que exatamente significa “me concentrar em mim mesmo?”

    — Concentre-se em suas emoções. O que você sente, Renato?

    — Eu…

    Ele hesitou.

    Uma dor aguda e cortante trespassou o coração de Isa, e um gemido fraco de agonia escapou por seus lábios.

    — Tá tudo bem? — perguntou Renato, quando notou algo estranho.

    — Está sim. Por favor, continue se concentrando no que sente.

    “O que eu sinto? Como se fosse fácil!”

    Para ele, entender o que sentia era mais ou menos como ter um quarto extremamente bagunçado para limpar. Em meio a tanta coisa, era difícil saber por onde deveria começar.

    Renato sentia de tudo. Arrependimento, raiva, tristeza, ódio, orgulho, esperança, amor, afeto…

    Suas emoções estavam entranhadas umas nas outras feito um novelo de lã.

    “Mais difícil do que desembaraçar o fone de ouvido que se enrolou dentro do bolso” pensou ele.

    — Me sinto… pesado. — Finalmente respondeu.

    Isa engoliu em seco.

    Sua garganta queimava.

    Faltaram forças para suas pernas e ela caiu com um joelho no chão.

    Limpou as lágrimas de seus próprios olhos, evocou toda a força que tinha e se levantou para continuar.

    — Quanto mais disso é necessário? — disse o garoto que a acompanhava.

    — Se não atrapalhar, vai ser mais rápido — retrucou Baalat.

    — Sabe que a Isa sofre sempre que faz isso!

    — Não vai durar muito.

    Isa pôs as duas mãos nas laterais da cabeça de Renato. Olhou para aqueles olhos fechados e quase pôde ver suas pupilas tremendo debaixo das pálpebras.

    — Você é o Condutor de Arimã? — perguntou ela.

    — Sim! Eu sou!

    — E como se sente sobre isso?

    — Eu me sinto… pequeno. Não! Me sinto maior do que todos! Sou enorme! Gigante! Imbatível! — A expressão dele se contorceu em confusão. — Mas também me sinto pequeno, menor do que uma bactéria. Sou um grão de areia olhando para o centro de um buraco negro!

    — Agora entendi.

    — Mas isso não fez muito sentido.

    — Emoções são assim mesmo. Elas não tem muito nexo. Não fazem sentido. Mas, ao mesmo tempo, explicam tudo e dão sentido a tudo.

    Isa respirou fundo várias vezes. Seu coração batia forte. A voz dela estava falhada, quase chorosa.

    — Eu sinto… um vazio enorme vindo de você! — disse ela. — Tão grande que pode engolir tudo! E você sabe disso; é por isso que tem medo. O vazio perfeito. Nada sobrevive a ele. Poderia engolir todos os demônios e anjos, e lobisomens, e todo tipo de monstro e criatura. Mas só se você deixar.

    Nessa hora, os olhos de Isa começaram a sangrar.

    E todos sentiram aquela aura opressiva e esmagadora no ar, crescendo sobre eles, tão densa que fazia a cabeça latejar.

    — Tem uma interferência mágica! — gritou Clara Lilithu.

    — Alguém tá tentando entrar! — gritou Belfegor.

    — Façam um feitiço de proteção! — ordenou Baalat. 

    Mas não tiveram tempo para reagir.

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