Capítulo 152: Batatinhas do Armagedom - parte I
O chão começou a afundar num ponto, formando um tipo de redemoinho que sugava as pedras e a terra.
E o vento era puxado para dentro do buraco. Fumaça negra circulava em volta dele, formando um espiral escuro. Uma labareda se ergueu como um pilar brilhante.
O silêncio confuso de todos foi cortado pelo grito de agonia de Renato. E todos viram, com olhares confusos, o garoto ser arrastado por uma força invisível em direção ao buraco.
Irina, apesar de ser a pessoa mais fraca do local, foi a primeira a tomar uma atitude. Sem nem pensar duas vezes, ela correu e saltou, e segurou Renato pelos braços.
Mas a força que o puxava era tal, que os dois começaram a ser arrastados juntos para o redemoinho de terra.
— O que tá acontecendo, irmão?
— Me solte! É perigoso! — gritou ele.
— Não! Eu me recuso!
— É igual da outra vez com Abigor! — gritou Angélica. — São os Cavaleiros!
— Mas nem pensar que eu vou deixar! — rosnou Clara, e correu em direção ao garoto, junto de Lírica e Belfegor, para segurá-lo também.
Angélica já estava direcionando seus Fios de Escuridão.
Mas seria impossível chegar a tempo. Ele já estava perto demais daquele buraco no chão.
E então:
— Chamas Negras! — E a bola sem temperatura de fogo escuro brilhou na mão de Renato, e ele a atirou em direção ao redemoinho.
A bola de fogo afundou no buraco.
O chão tremeu e as paredes da grande câmara subterrânea vibraram.
E o redemoinho cessou seu movimento, e o vento parou de soprar, e até a pilastra de labareda desapareceu.
O rugido enraivecido da criatura abissal reverberou pelos túneis. Tinha despertado.
— Acordamos Behemoth! — disse Angélica, com um arrepio.
— Daqui a pouco ele volta a dormir. Pelo menos o feitiço foi interrompido! — respondeu Baalat, um tanto chocada. — Que tipo de magia é essa que usou, Renato? Isso é fogo?
— De um tipo diferente — respondeu ele. Cansado porque esse ataque sempre puxava muito de sua energia.
Mas ele foi novamente puxado, dessa vez em direção ao teto da câmara. Tão rápido que nem tiveram tempo de reagir. E o garoto desapareceu no meio daquela pedra maciça que abriu um tipo de boca para engolí-lo.
E ele foi sugado para dentro de um túnel que se abria apenas para ele passar, e se fechava logo atrás dele.
O que seguiu foi algo parecido com uma viagem de LSD. As pedras derretiam. Ele viu o céu, que mudava de cor. Atravessou estrelas e planetas.
A sensação era de estar sendo destruído, queimado, reduzido a átomos.
A luz se distorceu em volta dele, fazendo curvas impossíveis.
Até que tudo ficou escuro.
*
Primeiro houve dor de cabeça, do tipo que vem em ondas, como as vibrações de um gongo.
Depois, alguma luz apareceu.
Renato abriu os olhos.
E a primeira coisa que viu foi aquele cadáver pendurado numa corda pelo pescoço.
No susto, se afastou.
Finalmente viu com mais clareza. Havia bolas de barro no lugar dos olhos do morto. O sangue barrento escorria das órbitas.
Olhou em volta.
Havia cadeiras e mesas. E um balcão onde uma garçonete atendia um cliente com um sorriso amigável no rosto; e perto dela, um cozinheiro usando avental fritava algumas batatas.
Estava no interior de uma lanchonete.
— Bem vindo, Renato.
Uma voz aveludada lhe deu boas vindas. Ele reconhecia aquele timbre. Olhou para o homem falando com ele e viu o bilionário Emmanuel Messias.
Atrás dele, havia outro homem. Era um pouco mais baixo, porém mais musculoso. Usava um terno preto e, claramente, caro. Tinha uma expressão de poucos amigos e algumas cicatrizes no rosto. Agia como o segurança do bilionário.
—E ai? O que aconteceu? Onde eu estou? — perguntou Renato.
— Primeiro sente-se, por gentileza. E eu te explico tudo com mais calma.
Renato não viu motivos para discordar. Precisava de informações.
Puxou uma cadeira e sentou-se à mesa.
— Coma algumas batatinhas!! — disse o bilionário. — São ótimas. E tem coca-cola. Você gosta?
— Prefiro vinho.
— Garçonete! Traga um pouco de vinho para nós!
— Sim, senhor Messias! — respondeu a garota e correu para buscar a bebida.
Renato pegou um punhado de batatinhas e colocou na boca. Estavam realmente uma delícia, crocantes e salgadas na medida certa, e ele tinha fome, afinal, não comia nada desde o dia anterior.
“Espero que minha irmã esteja bem” pensou. “Se algum demônio machucar ela, não vou perdoar.”
O homem de terno, que permanecia de pé, de vez em quando lançava olhadas de soslaio por cima do ombro em direção a Renato. Isso deixou o garoto inquieto.
Olhou em volta.
Havia mais pessoas na lanchonete. Na mesa vizinha, um casal de adolescentes dividia uma porção de batata e bebiam milk shake. Em outra mesa, três homens e duas mulheres bebiam cerveja e conversavam sobre o trabalho. Aparentemente, o chefe deles era um babaca que ninguém gostava.
A maioria das mesas estava ocupada, então tinha bastante gente.
E, no meio de tudo, um corpo enforcado, sem os olhos, balançava numa corda presa ao teto. Como diabos as pessoas simplesmente ignoravam isso? Renato já tinha aprendido sobre os poderes demoníacos o suficiente para saber que alguma coisa estava manipulando a percepção delas.
Mas o que mais chamou sua atenção foi um rapaz pequeno, magrelo, com grandes olheiras em volta dos olhos, que assistia atentamente o noticiário naquela tv de tubo 14 polegadas que ficava no alto, presa à parede.
Era meio excêntrico, com cabelos arrepiados e parecia até meio anêmico. Ele gargalhou alegremente e bateu palmas quando o jornalista anunciou que a escalada da guerra da Rússia contra a Ucrânia escalou para consequências antes imprevisíveis. Uma bomba atômica tinha sido detonada no centro de Washington, capital dos Estados Unidos.
Renato sentiu um arrepio gelar sua espinha. Isso tinha a cara do início da Terceira Guerra Mundial.
— O que achou das batatinhas? Ótimas, não é verdade? Eu adoro a gastronomia desse lugar! — disse Emannuel Messias, e bebeu um gole de coca.
— Quem é você? De verdade?
— Adivinha! — Riu. — A gente é parceiro de crime, Renato. Já se esqueceu?
Renato franziu o cenho. Sua intuição lhe pinicava o cérebro.
O garoto suspirou e relaxou os ombros. Pôs uma batatinha na boca e bebeu um gole de vinho.
“O vinho do Belfegor é melhor” pensou.
— Acho que já entendi. Bilionário… filantropo… Bonzinho demais e acima de qualquer suspeita. No fundo é o mais suspeito de todos. — Renato riu, achando a situação um tanto engraçada.
— Me dá uma armadura, e eu viro o homem de ferro! — disse Emannuel, se divertido com a comparação.
— Falta a parte do gênio e playboy.
— Só a parte do playboy.
O homem de pé, com as cicatrizes, bufou, irritado.
— Vou lá na frente montar guarda. Os anjos sabem que estamos pela região.
Se virou e saiu, mas não antes de direcionar a Renato um olhar de desconfiança.
Depois de mastigar mais um bocado de batatas, Renato assentiu.
— Cara simpático aquele, não é?
— Não o leve a mal. Desconfiar de tudo é o trabalho dele.
— Então, se eu estiver correto, você, assim como ele, é um daqueles caras que estava comigo no Gehenna, certo?
O rosto do bilionário se iluminou.
— Acertou em cheio! Como é mesmo que você chamou a gente? A gangue mais sinistra da história!
— E você quem é? O Mikey? Então aquele mal encarado deve ser o Draken…
Emannuel Messias ergueu uma sobrancelha, confuso.
— Não sei o que significa.
Renato deu de ombros.
— Esta forma é temporária — disse Emannuel. — Construí apenas para poder andar pelo seu mundo sem assustar as pessoas. Quando nos conhecemos, eu tinha outra aparência.
— A Besta que Subiu do Mar.
— Exato. E aquele que saiu era…
— A Besta que Subiu da Terra.
— Muito perspicaz da sua parte, Renato! Muito bom!
Renato apoiou as costas no repouso da cadeira e se espreguiçou.
— Só não sei quem é aquele maluco ali! — Apontou para o rapaz assistindo tv, que já tinha abandonado o noticiário e se divertia assistindo desenhos. Ele sugava o suco de uma caixinha através do canudinho.
Emannuel Messias abriu o sorriso.
— Ele é aquele que profetizou sua chegada, Renato. O Falso Profeta.
— Entendi. — Renato olhou mais uma vez para o cadáver balançando no meio da lanchonete. As pessoas conversavam tranquilas em volta, comiam e bebiam, como se não o vissem. — E o que a gente faz agora? Planejamos o fim do mundo?
Tinha um leve tom de sarcasmo na voz do garoto.
— Não parece muito impressionado.
— Não me impressiono fácil hoje em dia.
O bilionário deu de ombros.
— Por enquanto a gente espera eles chegarem.
— Eles quem?
— E quem mais? — Emannuel pegou uma única batata e pôs na boca. — Os quatro Cavaleiros do Apocalipse, é claro. Guerra, Peste, Fome e Morte. Todos querem te ver. Estão ansiosos para te conhecer, sabia?
— É… acho que sou bem popular com gente esquisita.
Nessa hora, o estômago de Renato roncou.
E um grito agudo de dor atravessou toda a lanchonete.
Renato olhou na direção do grito, e viu o cozinheiro com as duas mãos dentro da panela de óleo fervente. Então, o viu retirou um punhado de batatas quase fritas com as duas mãos e enfiar tudo na boca.
O óleo quente escorreu através de seus lábios.
A pele das mãos estava se soltando e formando bolhas.
O homem mastigou avidamente e com pressa, como se aquela fosse a melhor comida do mundo.
— O primeiro convidado já chegou — disse Emannuel Messias, com um sorriso cortez.
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