Capítulo 153: Batatinhas do Armagedom - parte II
O ar ficou mais pesado.
O estômago de Renato roncou. Não importava quantas batatinhas comesse, sua fome não passava.
E o grito do cozinheiro ecoou pela lanchonete.
Ele se levantou e correu até o cozinheiro.
— Pare com isso! Você está ficando maluco?!
Renato tentou segurar a mão do homem, mas sua mão atravessou o braço dele sem nenhuma resistência. Era como tentar tocar um holograma.
— Não adianta — disse Emannuel Messias, sem nem olhar para ele. Bebia sua coca-cola com olhos inexpressivos. — Eles não podem te ouvir. E você não pode tocá-los.
O garoto viu novamente o cozinheiro meter sua mão dentro do óleo fervente para pegar mais batatas.
Quando tirou a mão da panela, a pele já estava se desmanchando, derretendo feito manteiga no fogo.
Ele enfiou as batatas na boca, mordendo e mastigando tudo com uma avidez terrível. Um de seus dedos roçou nos dentes, soltando um pouco de pele, e o cozinheiro saboreou o sabor por um tempo.
Por um momento, ficou ali, apenas observando o próprio dedo com uma expressão pensativa. Então, sem hesitar, levou-o à boca e mordeu. O estalo seco do osso partindo ecoou na lanchonete.
Renato sentiu seu estômago revirar. Levou a mão à boca para conter a náusea. Um gosto amargo incomodou o fundo da garganta.
A garçonete estava de cócoras, inclinada sobre a lixeira, revirava o lixo procurando restos, e quando os achava, olhava para eles como se fosse alguma coisa preciosa, e então ela botava na boca e comia.
— Volte aqui, Renato — disse Emannuel. — Precisamos terminar nossa reunião.
O casal de adolescentes tinham terminado de comer sua porção e, na falta de mais comida, encontraram outra coisa: os copos. Partiam o plástico nos dentes, mastigavam para triturá-los o máximo possível, e deixavam aquilo descer pela garganta. E o sabor estava ótimo.
Os colegas de trabalho tinham parado de conversar, apenas para se focar em comer toda a comida sobre a mesa. Mastigavam e engoliam até mesmo os guardanapos sujos de gordura.
A fome tinha se espalhado como loucura.
E no meio do caos, o Falso Profeta continuava assistindo desenhos na tv como se nada demais estivesse acontecendo.
— Isso é um pesadelo! — O garoto estava andando até todas as mesas, procurando alguém que o ouvisse ou pudesse tocar, para tentar ajudar de alguma forma, mas era em vão.
Até que a porta da lanchonete se abriu.
O homem que entrou era tão gordo que deveria ser impossível que ficasse de pé. Provavelmente, tinha mais de duzentos quilos. Mas ele caminhava tranquilamente e com uma leveza estranha.
Usava um terno chique e uma maleta preta, do tipo que um homem de negócios usaria.
Ele olhou para o Bilionário Emannuel Messias e abriu um sorriso.
Foi até a mesa e sentou-se. A cadeira rangeu, como se pedisse socorro.
Ele colocou a maleta sobre a cadeira ao lado e descansou os braços rechonchudos sobre a mesa.
— Então aquele é o garoto?
— Sim — respondeu Emannuel.
— Ele parece assustado.
— Vai se acostumar.
— E quanto aos outros? — O homem gordo pegou uma batatinha da bandeja e pôs na boca.
— Guerra precisou sair logo depois do ritual, mas deve voltar em breve. Peste e Morte ainda não chegaram.
— Entendo — Fome assentiu. — Ei, garoto! Venha até aqui, sim? Deixa eu te ver de perto!
Renato, desolado por não ter conseguido ajudar ninguém, fez a única coisa que podia. Obedeceu. Não porque tinha medo ou tampouco algum respeito por aquelas criaturas, mas porque dessa forma poderia obter mais informações.
Atravessou a lanchonete, passando pelo cadáver pendurado, e voltou para a mesa.
— Então você é o Condutor? — disse o homem gordo. — O anti-cristo prometido?
— E você é um dos Cavaleiros do Apocalipse? Pela entrada triunfal, suponho que seja Fome.
O Cavaleiro riu.
— Ele é mesmo perspicaz. E, apesar de todo nervosismo, mantém um tom trivial. — Fome deu de ombros. — Gostei dele.
— Por que fez isso com as pessoas?
— Eu não fiz nada. Deixa eu te contar uma coisa, Renato. Criaturas poderosas, como nós, influenciam as pessoas em volta apenas por estarem próximas. Tenho certeza que com você também é assim, mesmo que não tenha notado ainda.
— Então quando os outros cavaleiros chegarem…
Fome deu de ombros mais uma vez.
— Apenas aprecie o show.
Emannuel gargalhou.
— As pessoas precisam disso, Renato. Presas em seus computadores e celulares, e vidas tão pacatas, elas esqueceram sua real natureza. Por isso, precisam se voltar para os instintos originais. E qual instinto mais primal e essencial do que a Fome?
— Que tal a Guerra?
O segundo que chegou usava uma armadura pesada e avermelhada que o cobria quase por completo, e nas costas trazia uma espada longa, quase do tamanho de seu corpo. O guarda mão era coberto por pedras preciosas e o cabo era de ouro.
O cavaleiro caminhou até a mesa, com o som pesado de sua armadura batendo no chão a cada passo que dava.
Pegou a maleta de Fome e a tirou da cadeira, e a pôs no chão. E sentou-se.
— Ei! Isso é desrespeitoso!
Guerra deu de ombros.
— Eu nem sei por que anda com aquilo. Não tem nada dentro.
O efeito nas pessoas em volta não demorou para aparecer.
— Ei! Você comeu toda a comida! — gritou um dos colegas de trabalho da mesa vizinha.
— Eu não! Você que comeu tudo! Seu glutão!
A discussão se espalhou, ficando cada vez mais acalorada. Até que finalmente partiram para a agressão.
O cozinheiro pegava com suas mãos, já em carne viva, as últimas batatas da panela, que a esta hora já estavam queimadas.
Mas a garçonete achou injusto que ela estivesse comendo restos do lixo enquanto ele comia batatas. Com uma faca, ela golpeou-o na altura do peito. O sangue quente jorrou em seu rosto, e as batatinhas caíram no chão.
Ela se ajoelhou e catou uma por uma, enfiando-as na boca.
Sobre o casal de namorados, o menino ficou irritado porque sua namorada comeu toda a comida dela sem dividir. Ele a xingou, dizendo que como era ele quem pagava a conta, ela deveria comer menos para deixar sobras para ele. A garota o xingou de volta, chamando-o de mão de vaca e disse que o traía com o irmão dele, e que o irmão era muito melhor na cama.
O garoto, irado, pulou sobre ela, chamando-a de vadia, a derrubou e começou a golpeá-la no rosto.
Renato tentou levantar-se.
Mas Emannuel o segurou pelo ombro. E o que Renato sentiu foi mais do que a simples força física. Foi uma sensação aterradora que sugou toda a sua vontade de se mover. Uma sombra que se ergueu e gelou sua espinha; e um peso esmagador sobre os ombros. Até as pernas ficaram trêmulas.
— Fique calmo — disse Emannuel. — Não tem nada que possa fazer mesmo.
— Mas ele vai matá-la! Todos eles vão morrer!
Emannuel deu de ombros.
— Eles já estão mortos. Bom, pelo menos vão estar daqui a pouco.
Guerra riu.
— Achei que ele fosse um pouco mais alto.
— E eu pensei que ele seria um pouco mais… gordinho — respondeu Fome.
— Então foi ele quem abriu as portas do Gehenna para que pudéssemos sair? — perguntou Guerra.
— Sim! Foi ele — respondeu Emannuel. — Eu mesmo vi. Eu estava com ele na hora. Eu sabia que funcionaria porque eu sempre acreditei na profecia.
Guerra olhou para o rapaz excêntrico vendo desenhos.
— E o Falso Profeta não planeja se juntar a nós nessa reunião?
— Não. Deixa ele. — Emannuel bebeu um gole de coca.
— O que vocês querem de mim? Por que me trouxeram aqui? — perguntou Renato, atônito.
Guerra sorriu.
— Nós apenas achamos que seria de bom tom te dar a chance de estar conosco. Sabe, por causa da gratidão por nos libertar e etcetera. Não é como se precisássemos de você.
— Não ligue para ele! — disse Emannuel. — É claro que precisamos de você. Você é o Condutor de Arimã. Tem poder potencialmente infinito! Foi você quem abriu as portas do Gehenna e devolveu a esperança a tantas almas condenadas! Ninguém mais poderia fazer aquilo! Você seria um importante aliado na guerra que se aproxima, Renato. Eu quero você do nosso lado! Não pode achar que os anjos e demônios deveriam continuar no controle do mundo! Eles precisam entender quem manda! E é claro que você também terá benefícios e será devidamente recompensado.
— Eu soltei vocês, não foi?
— E somos gratos por isso! — disse Fome.
— Entendi. — Renato baixou os ombros. — A culpa é minha, então. Culpa do meu egoísmo. — O sorriso de Renato foi resignado, do tipo que é temperado com uma pitada de tristeza.
— Culpa não — falou Guerra, com um sorriso sarcástico no rosto, achando a reação do garoto um pouco engraçada, e pegou uma batatinha. — Mérito. Graças a isso, você faz parte do time agora. Ganhou uma vaga no “Apocalipse Sport Club”.
— Vadia desgraç… arrg! — O rapaz parou os socos em sua namorada. E gritou de dor.
Bolhas cheias de pus brotaram em sua pele. Não havia espaço no rosto e nos braços sem bolhas. E elas estouravam rapidamente, deixando sangue e pus escorrer. O fedor era cadavérico. Ele tossiu e gemeu em agonia.
A garçonete parou de comer batatas porque começou a tossir muito, e o pigarro saía misturado com sangue.
— Oh, parece que mais um convidado acabou de chegar! — disse Emannuel, com um sorriso alegre.
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