Capítulo 154: Batatinhas do Armagedom - parte III
As pessoas na lanchonete, que antes estavam tomadas por um torpor violento e pela fome insaciável e autodestrutiva, pararam subitamente tudo o que estavam fazendo.
Gritos de dor e de agonia reverberaram por todo o salão.
Bolhas erupcionavam nas peles; sangue escorria dos olhos, nariz e boca.
Alguns, tomados por loucura, batiam a cabeça na parede, numa tentativa desesperada de fazer aquela dor desaparecer. Mas não adiantava.
No ar, um intenso cheiro azedo, semelhante a de comida estragada, tornava difícil respirar.
Peste finalmente passou pela porta e entrou na lanchonete.
De aspecto esquálido. Era magrelo e ossudo. Sua pele era pálida, do tipo que não via sol há anos. Andava com as costas curvadas, meio corcunda. Seus olhos eram amarelos de icterícia, com a íris preta dilatada no centro.
Usava um terno branco, com uma gravata e sapatos na cor cinza.
Ratos o acompanhavam, movendo-se sorrateiramente por sua sombra.
Ele caminhou até a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se.
Abriu um sorriso, mostrando seus dentes podres. Até a gengiva tinha aspecto doentio, inchada, sangrando em alguns pontos.
O bilionário Emannuel Messias olhou para os ratos que se aninhavam embaixo da mesa, próximo dos pés de Peste.
— Dá pra deixar eles lá fora? São repulsivos.
— Não. Eles são parte de mim.
Emannuel estalou a língua com desgosto, mas deu de ombros, e olhou para Renato.
— Cavaleiros… sempre tão dramáticos, não?
— Deixa o cara. É o jeito dele. — Fome pegou mais uma batatinha.
Renato olhou em volta. As pessoas gemiam de dor e sofrimento. Algumas convulcionavam. A garçonete, inclinada sobre a lixeira, vomitava tudo o que tinha comido.
O garoto já tinha tentado ajudá-los. Não obteve sucesso. Era quase como se estivesse numa dimensão paralela. Ele não podia tocar as pessoas; e elas não podiam ouvi-lo.
Além do mais,conviveu com criaturas sobrenaturais o suficiente para saber que pedir que os Cavaleiros os poupassem seria em vão. Seres como esses não entendiam o conceito de misericórdia.
Só restava uma coisa a se fazer: obter informações antes de decidir como agir.
— Só tem uma coisa que me intriga — disse Guerra. Sua expressão era dura como sempre. A espada reluzia em suas costas. — Por que meu feitiço de invocação demorou tanto pra te achar? Onde estava, Renato?
— Isso não é óbvio? — retrucou Peste. — Ele tem cheiro de demônio por todo o corpo.
— É claro que tem cheiro de demônio. Ele vive com uma súcubo! — respondeu Fome.
— Se você não sabe diferenciar o cheiro de uma súcubo e o de um demônio comum, tá precisando sair mais, irmãozinho — disse Guerra. — O cheiro delas é mais doce. O cheiro que tá impregnado nele agora é de puro enxofre. Aposto que estava no Inferno.
— Precisa rever suas companhias, garoto — disse Emannuel. — Demônios são… — fez uma careta de nojo — …desprezíveis.
— Eu, pessoalmente, os odeio mais do que odeio anjos! — disse Fome.
Guerra balançou a cabeça.
— Os anjos são piores. São canalhas arrogantes da pior espécie! Os demônios, pelo menos, sabem que são uns lixos parasitas sem nenhuma moral, e se orgulham disso. Os anjos acreditam mesmo que são melhores do que todo mundo. Se acham superiores no intelecto, na moralidade e no poder. Pensam que estão do lado certo. E é esse tipo de arrogância que eu acho mais insuportável. Vou enfiar minha espada no peito de cada um deles, e depois sorrir em exultação, enquanto bebo uma boa taça de vinho celestial.
Renato deu de ombros e suspirou.
“Tá no Inferno, abraça o capeta!” pensou.
Pegou uma batatinha.
— Precisa de mais sal.
Fome pegou o saleiro e entregou para o garoto. No rosto, um sorriso simpático.
Nessa hora, o ar ficou tão pesado, que foi como se algo tivesse tentando esmagá-lo. A pressão crescia exponencialmente. Seus ombros tremiam para suportar.
O cheiro de coisa azeda foi substituído pela podridão de cadáver putrefato.
Uma gota de sangue escorreu de seu nariz, e o garoto a limpou.
Renato ouviu o som de batidas num ritmo lento e compassado, como algo batendo no chão.
— Ele chegou — disse Emannuel, com um sorriso satisfeito.
A porta da lanchonete se abriu mais uma vez.
Um homem magro entrou por ela. Usava trapos como roupas, sujos de terra. Tinha vermes no rosto, que perfuravam sua pele e comiam sua carne.
Na mão direita, trazia uma foice que ultrapassava sua própria altura. A lâmina era curvada e tão afiada que fazia o ar tinir ao passar por ela, e tão polida que podia ser usada como espelho.
Usava a foice como um tipo de bengala, e conforme caminhava, batia a ponta do cabo no chão, o que provocava o som surdo de batida.
E, ao atravessar o salão, passava pelas pessoas, e elas simplesmente caiam no chão, sem vida.

Puxou uma cadeira e sentou-se sem dizer uma única palavra.
Sua presença era perturbadora. Nem no Inferno, nem no Gehenna, Renato sentiu uma pressão tão intensa.
O ar vibrava em volta dele, como se as moléculas voláteis quisessem se partir.
— Agora que estamos todos aqui, podemos começar a reunião — disse Emannuel.
Renato olhou em volta e notou que estavam todos mortos. O casal de adolescentes, os colegas de trabalho, o cozinheiro, a garçonete. A vida tinha deixado completamente o local. Eles eram as únicas coisas que ainda se mexiam.
— O que querem comigo? — perguntou o garoto. — Por que me trouxeram aqui?
— Queremos te fazer uma proposta, Renato. — respondeu Emmanuel. — Oficialmente e de maneira clara. Sem rodeios. Todos nos reunimos aqui porque pensamos o mesmo. Se lembra da conversa que tivemos antes de sairmos do Calabouço Mais Profundo?
— A gangue mais sinistra do universo…
— Um eufemismo divertido, é claro. Tenho certeza que já entendeu, mas, às vezes, o óbvio precisa ser dito. Queremos você como parte do time. Em meio a essa guerra tola de anjos e demônios, somos a terceira opção. Vamos limpar a Terra dessas criações defeituosas de Deus. Purificar o planeta para que ele volte a ser bonito.
— Podemos te devolver o que foi tirado — falou Morte. Sua voz era grave e profunda, e os vermes se agitavam em sua bochecha. — Eu posso. Deus permitiu que aquelas crianças do orfanato fossem mortas. Acha que ele não viu tudo? Acha que ele não sabia? Mesmo assim, ele não fez nada para impedir. Mas nós podemos ajudar. Eu sou Morte, Renato. Posso devolver as crianças para você. Posso devolver seus pais biológicos. Posso desfazer cada morte que te assombra.
— No final, não vai sobrar anjo e nem demônio — disse Guerra. — Apenas nós… e o vazio sobre a Terra. Vamos vencer, e estamos te dando a oportunidade de estar do lado vencedor.
— As pessoas me seguem — disse Emannuel, aquele que era a Besta que Subiu do Mar. Seus olhos cheios de orgulho e confiança. — E eu vou conduzi-las ao fim inevitável. Guerra e Pestilência cairá sobre a humanidade, e a Fome assolará as nações. E por fim, a Morte fará a limpeza. Mas você não. Você será protegido; e todos aqueles que você ama também. Você terá um paraíso na Terra para viver junto das pessoas que ama, pela eternidade, e não terá Deus e nem Diabo para destruir sua felicidade.
— E tudo o que pedimos — disse Peste —, é que fique do nosso lado. Fique conosco quando restaurarmos a saúde desse planeta.
— E veja o quão linda é a destruição desse câncer que são as criaturas de Deus — disse Guerra.
— É pra esse momento que você existe, Renato. Foi por isso que Arimã produziu um Condutor. Assim disse o Falso Profeta — concluiu Emannuel Messias.
Renato riu, primeiro de maneira contida, e depois numa gargalhada alta.
— Alguma coisa engraçada? — perguntou Emannuel.
— Não. Nada. É só que… quanto mais eu rezo, mais assombração aparece.
Emannuel inclinou a cabeça e franziu o cenho, confuso por não entender a expressão.
— Senhor! — O homem de terno e armado, voltou para a lanchonete. — Os anjos encontraram nossa localização. O exército dos Rejeitados pela Sepultura estão os enfrentando agora mesmo.
— Foi mais rápido do que imaginei — disse Guerra. — Raziel está se aperfeiçoando.
Fome riu com desdém.
— Vai nutrir admiração pelo anjo agora?
Emannuel se levantou.
— Nossa reunião fica por aqui, Renato. Pense com muita atenção na proposta que te fizemos. Escolha com sabedoria. O mundo vai queimar junto de tudo que tem nele. Seja mais um incendiário ao invés do carvão e da lenha.
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