Índice de Capítulo

    Um buraco se abriu no chão. A bocarra aberta da Terra vomitava fumaça e brasa.

    E Renato foi sugado por aquilo.

    E mergulhou no túnel de escuridão e silêncio. Era como estar submerso em águas profundas.

    De vez em quando, via vultos disformes, rastejando naquelas trevas densas, sussurrando coisas inaudíveis.

    Durou apenas alguns segundos, até que viu um ponto de luz. E a luz foi crescendo em sua visão, girando com violência feito um pulsar, engolindo o escuro com ferocidade.

    E então Renato foi cuspido daquele buraco, e caiu dentro da câmara subterrânea, onde se encontrava antes de ser puxado para a reunião com os cavaleiros.

    Clara, ao vê-lo, abriu suas asas e atravessou aquele espaço rapidamente, correndo até ele.

    A súcubo tocou em seus ombros.

    — Fiquei preocupada — disse ela, olhando em seus olhos. — Que bom que voltou.

    — Renato! Renato! — Irina pulou nas costas dele, chorando. — Eu tive medo de que… tive medo que você… que você…

    Renato a abraçou.

    — Eu prometi que jamais te deixaria. É claro que eu voltaria pra você.

    — É bom mesmo! — respondeu ela, limpando o ranho que escorria do nariz. — Humpf! Se me abandonar, vou mandar assassinos profissionais pra te punir!

    Lírica se manteve distante, mas sorria de satisfação ao vê-lo.

    — Eu disse que ele voltaria. Nada pode parar o Renato!

    Ao lado dela, estava o orc Hazur, que o garoto tinha enfrentado mais cedo. A altura dele dava o dobro da dela, e ele ainda usava a armadura pesada e tinha a clava enferrujada e cheia de espinhos presa à cintura.

    — Não consegui protegê-lo, mestre Renato! — disse Belfegor, ao se aproximar, curvando a cabeça.

    — Tá tudo bem. — O garoto suspirou. — Não foi nada demais. E não me chame de mestre. É estranho.

    — Renato! O Hazur… — Lírica olhou na direção do orc, e ficou surpresa ao ver a face envergonhada do monstro.

    — Eu… eu queria… err… então… é que…

    Hazur estava tímido de um jeito que não combinava muito com ele. Gaguejava e desviava o olhar.

    Renato achou bizarro e um pouco engraçado.

    Até parecia a Mical. Isto é, se ela tivesse mais de três metros de altura, pesasse mais de trezentos quilos e sua pele fosse esverdeada como lodo, o que, obviamente, tiraria boa parte de seu charme.

    — Ele quer se aproximar de você — disse Irina.

    — Ei! Não fale assim desse jeito! Eu ia falar! — protestou Hazur.

    — Ele ficou admirado com a sua força e quer saber se você poderia treiná-lo.

    Renato, com os olhos anuviados e a mente ainda confusa por causa do encontro com os cavaleiros, concordou sem pensar direito.

    — Certo, certo. Claro. Por que não, né… ? Eu acho…

    O garoto foi até uma parede para apoiar as costas. E ficou ali, apenas descansando, ouvindo a própria respiração.

    — Rê… tá tudo bem? — perguntou Irina.

    — Está sim. Tá tudo bem.

    — Eu te conheço. Sei que fica desse jeito porque…

    Por um momento ele parou pra pensar nas próprias palavras. “Tá tudo bem? Mas que mentira deslavada!”

    Isso tudo era besteira! Dane-se o Apocalipse, os demônios e os anjos! Ele só queria voltar para aquele quarto junto das garotas, onde bebiam vinho bom e trocavam carícias e toques apaixonados. Aquilo sim era importante!

    Por um momento, o encontro com os cavaleiros cruzou sua mente mais uma vez, junto da ideia perturbadora de que ele os soltou para caminhar sobre a Terra.

    E finalmente as palavras de Hazur fizeram sentido na sua cabeça.

    Um orc agindo daquela maneira!

    E tudo se misturou de um jeito maluco em sua mente, como se toda essa bagunça fosse batida no liquidificador.

    E ele começou a rir alto, gargalhando até lágrimas escorrerem dos olhos e a barriga doer.

    Algo era realmente engraçado. Ele só não sabia dizer o que era.

    Silas, o garoto lobisomem que acompanhava Isa, a  Bruxa de Emoções, franziu o cenho, confuso.

    — Por que ele está rindo? Há alguma coisa engraçada?

    Porém, Isa segurou-se nele para não cair. Sua visão tinha ficado desfocada; a cabeça doía. A vertigem a fez perder o equilíbrio.

    A face da garota, retorcida de dor.

    — Isa, o que aconteceu?

    — A tristeza dele é tão grande que me assusta! Me fere até na carne!

    Silas olhou para sua amada em choque, e, desesperado, segurou-a em seus braços.

    — Vou tirar você de perto dele!

    — Não! Não precisa! — retrucou a garota. — Já senti tristeza semelhante antes. Você era igual a ele, se lembra? Precisamos ajudá-lo.

    — Mas ajudar como?

    — Às vezes…

    — … só uma palavra de apoio basta. — Ele completou a frase dela.

    Baalat, de seu lugar, sorriu discretamente. “Sempre brincando de ser os bons samaritanos” pensou.

    Satanakia, sentado num canto, bebendo absinto, revirou os olhos, achando aquilo piegas e de um sentimentalismo barato.

    Silas assentiu à fala de sua amada. Deixou Isa sentada, descansado com as costas apoiadas na parede, e se aproximou de Renato.

    — Ei, cara… sabe… eu não sei o que tá rolando com você, mas tipo… eu já vi um monte de bizarrice sobrenatural, entende? Eu já senti que não tinha mais esperança, sabe? Eu já quis até mesmo… morrer. Ah, Deus sabe o quanto eu desejei morrer! Mas confia em mim. Confia em alguém que viu a pior escuridão de todas e saiu inteiro. Sempre tem um jeito. Sempre tem concerto. Nenhuma bagunça é tão grande que não possa ser arrumada.

    — A pior escuridão de todas? — perguntou Renato.

    — É. — Silas apontou para o próprio peito. — Aquela que tá aqui dentro. Eu tenho uma coisa aqui dentro também que me fez perder tudo o que eu amava. Eu queria poder dizer que fica mais fácil, mas não fica. Mas a gente aprende a lidar com toda a merda e todo o lixo que vai se acumulando. Mas se acumular demais, você acaba explodindo, saca?

    — Acho que já explodi faz tempo — Renato respondeu com um sorriso amargo.

    — Então se reconstrua. Olha quantos bons companheiros você tem! Aposto que eles arriscariam a própria vida só pra te ver bem, e você faria o mesmo por eles, não é?

    Renato assentiu.

    — Pode apostar que sim!

    — Ah, chega dessa besteira! — gritou Belial. — Vamos interrogar logo esse macaco de barro e descub…

    O punho de Renato afundou na boca de Belial. O soco foi poderoso. O demônio, arremessado pela força do impacto, rolou se arrastando no chão.

    Quando se levantou, sangue escorria de sua boca. Ele cuspiu no chão. E junto do sangue e do pigarro, tinha um dente incisivo.

    — Cala a boca — disse Renato. — Sua voz me irrita.

    O demônio se levantou.

    — Maldito! Vai morrer!

    Satanakia sorriu, finalmente interessado. No fundo, ele queria ver Belial ser espancado. O título de “o único demônio derrotado por um humano no Inferno” não lhe agradava muito.

    Belial correu em direção a Renato.

    O garoto afastou Silas e, logo em seguida, fez o fogo negro aparecer em sua mão.

    Não estava com paciência para brincadeiras.

    Mas no instante em que disparou seu ataque mais poderoso, algo segurou rapidamente seu pulso e direcionou seu braço para o alto, mudando a trajetória da bola de chama negra.

    A bola se ergueu, bateu no teto da câmara, arrebentou a pedra e desapareceu, enquanto atravessava quilômetros de rocha maciça.

    Estalactites se desprenderam do teto e caíram como uma chuva de lanças.

    Finalmente viu quem deteve seu golpe: Baalat.

    E do outro lado da câmara, os Fios de Escuridão de Angélica seguravam Belial.

    — Por que me deteve? Eu teria matado esse humano! — rosnou Belial.

    — Teria nada — retrucou Baalat. — Se aquilo tivesse te atingido, você seria um monte de cinzas agora.

    Belfegor riu com desdém.

    — Tem sorte de estar vivo, Belial. As princesas de Lúcifer salvaram sua vida!

    O demônio abriu suas asas. Estufou o peito.

    — Eu exijo uma luta direta!

    — Agora não — respondeu Baalat. — No momento, senhor Renato, por que não nos diz o que os Cavaleiros do Apocalipse queriam com você?

    — Não me lembro — mentiu. — Acho que eles usaram algum feitiço para apagar minha memória. Sabiam que eu estava no Inferno antes de ser puxado.

    — Oh, isso até que faz sentido — assentiu Baalat. — Então, por favor, Reitor Phenex, conte a eles o que me disse mais cedo sobre reverter o feitiço.

    — Ahem! — o reitor limpou a garganta. — Agora que os ânimos se acalmaram, vou falar o que faremos. O feitiço que puxou Renato foi uma evocação através da Indefinição.

    — Indefinição? — Angélica franziu o cenho. — Mas isso é possível?

    — É sim, se souber fazer e tiver a energia necessária. É um feitiço muito antigo, da época da Queda de Lúcifer. Era conhecido apenas por algumas criaturas mais próximas de Deus. Mas, para a sorte de vocês, minha Magia Inata é Conhecimento, e não tem nada nesse mundo que eu não saiba.

    — O que é essa Indefinição? — perguntou Silas.

    — É o muro que separa nosso Universo do Não Criado. Mais ou menos isso. — Baalat respondeu de maneira cortês, deu de ombros, e bebeu um gole de seu absinto.

    — Mas o que tá dizendo então é que… — Angélica interrompeu a fala, pensando no que significava.

    — Exatamente — respondeu o reitor. — Aquele que fez a evocação foi o Cavaleiro da Guerra. Vamos reverter o feitiço usando o próprio túnel que ele cavou na Indefinição. Vamos puxar o cavaleiro até aqui à força! 

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