Capítulo 164: ecos do passado
— Vê? Ele está de volta, como eu disse que estaria. — disse a voz de Abigor dentro da cabeça de Tâmara, e depois veio a risada seca. — Parece que eu sou mesmo seu demônio da guarda!
Tâmara ignorou a voz.
Sua expressão era dura; o olhar, determinado.
Estava no alto de um prédio, olhando através de um dispositivo monocular de visão à distância.
Renato estava em sua visão. E também as garotas em volta dele.
Tâmara sabia que precisava separá-lo delas. Sabia que poderia entrar em confronto, e estava mais do que preparada para enfrentar qualquer uma delas, mas preferia que as coisas fossem do jeito fácil. Não havia motivos para complicar as coisas, afinal.
— Veja como ele está se divertindo sem você — falou a voz mais uma vez em sua cabeça. Abigor não estava ali de fato, mas mesmo assim falava com ela, talvez por causa do Estigma da Guerra que Tâmara trazia no braço.
— Cale a boca!
— Olha só como as outras garotas parecem tão próximas dele! Você merecia estar lá! Não elas!
— Já mandei calar a boca! Eu tenho um plano pra resolver isso.
Pegou o celular. A mentira também era uma arma que Tâmara sabia manusear bem.
Renato e as garotas comiam um banquete alegremente. Sobre a mesa, jarras com o vinho Sangre del Diablo dividia espaço com as panelas e vasilhas cheias de comida. Mesmo ele conseguia sorrir, apesar do peso em seus ombros e da escolha quase impossível que teria de fazer em breve.
— Mas… como é lá? Como é o Inferno? — Mical estava curiosa. — É tão ruim quanto dizem?
— Um reino demoníaco — disse Jéssica, sentindo um arrepio. — Não consigo pensar num lugar mais terrível! — Bebeu um gole de vinho.
Os olhos de Clara brilharam maliciosos e um sorriso sarcástico surgiu em seus lábios.
— Não acha que é hipocrisia da sua parte falar algo assim, enquanto bebe um vinho cuja fabricação é de origem demoníaca?
Jéssica mostrou uma expressão azeda.
— Eu rezei para Deus abençoar o vinho, então não tem problema.
— Então é isso… — Clara deu de ombros e bebericou de sua taça. — Desculpe, não tinha notado o tamanho da sua fé.
— Que bom que entendeu!
Todos se entreolharam, confusos. Não era do feitio de Clara fazer uma mea culpa.
— Então por que não a testamos?
Jéssica ergueu uma sobrancelha, desconfiada.
— Testar o quê?
— Sua fé, é claro.
— O que quer dizer?
— Colocamos um pouco de veneno no seu vinho. Você reza pedindo para Deus abençoar, e então bebe. Se nada te acontecer, suas orações estão mesmo sendo ouvidas, e eu vou entender o tamanho da sua fé e o quanto Deus se importa com você. Caso contrário… vou ter uma pessoa a menos para dividir o Renato. Eu, pessoalmente, recomendo usarmos cicuta. Tem um certo charme, por causa daquele lance do Sócrates, sabe?
Lírica foi a única que achou o comentário da súcubo engraçado, e sorriu de maneira discreta.
Jéssica cerrou os dentes.
— Por que você mesma não bebe o veneno?
— Ora, porque minha fé na proteção de Deus não é tão grande, é óbvio. E Satã tem coisas mais importantes para fazer do que brincar de abençoar bebidas. Mas talvez, Deus, que é onipotente, tenha algum tempo sobrando.
— Pare de dizer bobagens! — retrucou Jéssica, irritada. Seu cílio direito tremia num tique nervoso.
Irina observava tudo em silêncio.
Até que finalmente cochichou para seu irmão.
— Essas meninas estão sempre brigando assim?
Renato coçou a bochecha, sem saber como responder.
— Não é como dizem — respondeu Lírica à dúvida de Mical, e bebeu um gole de vinho. — Mas tá longe de ser agradável.
— Como assim? — Mical demonstrou ainda mais interesse.
— A pior coisa é o cheiro. Uma mistura de podridão e abandono. Demi-humanos têm um olfato muito bom, então essa era a coisa que mais me incomodava.
— Não é tão ruim assim — retrucou Clara. — Até que dá pra se acostumar. Embora eu concorde que não seja o melhor dos aromas.
Então, o celular de Renato vibrou.
Ele pegou para olhar e ficou surpreso ao ver que tinha chegado uma mensagem de Tâmara no TalksApp.
“Eu achei o outro cara” dizia a mensagem.
“Que cara? De quem tá falando? Onde você tá, Tâmara? Por que você sumiu?”
“Já se esqueceu? Lembra dos homens que invadiram sua casa quando era criança? Lembra o que fizemos com aquele que eu consegui encontrar? Eram três, né? Um já morreu. O outro nós matamos. Faltava um. Eu achei ele. Vem me encontrar!” E junto da mensagem também tinha uma localização de GPS.
Renato sentiu um arrepio. Engoliu em seco.
Justo agora! Era impossível superar o passado traumático, é verdade, mas ele bem que estava tentando.
Foram tantas lágrimas já derramadas. Tantas noites em claro desejando vingança. Tanto ódio que já se entrelaçou em seu coração! Ele não precisava de mais!
Queria esquecer! Talvez até seguir em frente.
Mas parece que a tragédia o estava sempre perseguindo.
A questão com os cavaleiros, a escolha que tinha de fazer… e justo nesse momento…
— Tâmara…
Os assassinos de seus pais biológicos.
Os primeiros monstros que ele já conheceu.
Foi tomado por uma indignação venenosa.
“Como esse desgracado se atreve a estar vivo?!” pensou.
— Rê…? — Irina percebeu algo de estranho com seu irmão.
— Tá tudo bem, Renato? Você ficou pálido de repente — disse Mical.
— Seu coração tá batendo mais rápido — complementou Lírica. — O que houve?
— Ah, eu… eu tô bem. Não foi nada. Nada demais! Eu só… só preciso resolver uma coisa.
Ele se levantou.
— Vai sair? — perguntou Jéssica.
— Juro que não demoro.
— Eu vou com você! — disse Irina, determinada.
— Não! Não me sigam! Nenhuma de vocês! Eu volto logo.
— Mas Rê! — Irina se levantou e o segurou pelo braço. — Você prometeu que ficaríamos juntos em tudo! Eu fui com você até o inferno! Literalmente! Isso aqui não pode ser pior.
— Desculpe. — Renato tirou a mão dela de seu braço. — Eu prometo que volto logo, mas você precisa confiar em mim e ficar aqui. Por favor! Tô te pedindo.
— Não é justo! Você só fala assim quando é algo perigoso!
— Confie em mim, irmãzinha.
— Não é justo!
— Eu sei que não é.
Ele virou as costas e saiu.
Irina, indignada, sentou-se em seu lugar, enquanto Renato partia.
Bebeu um gole de sua fanta laranja. Era a única que não estava bebendo vinho.
Mas o refrigerante pareceu sem sabor.
— Renato… droga! Onde ele foi? — disse Jéssica, frustrada, e bateu na mesa.
— Ele estava com medo — disse Lírica.
— Meu irmão não tem medo de nada! — retrucou Irina.
Clara deu de ombros e bebeu vinho.
— Não precisam se preocupar. O Renato sabe se cuidar.
— Então, deixa eu ver se eu entendi… nenhuma de vocês pretende segui-lo para garantir que ele ficará bem?
Ela olhou para as outras garotas, procurando algum apoio, mas Mical, Jéssica e Lírica apenas desviaram os olhares, envergonhadas.
Clara foi a única que sorriu e a olhou nos olhos.
— Exatamente isso. Afinal, não podemos.
— Como assim “não podem”? E a conversa que tivemos no Inferno sobre cuidarmos dele mesmo que ele não queira, hein, Lírica? O que houve? Mudou de ideia tão rápido?
— Não podemos porque ele deu uma ordem direta! Você acabou de chegar! Não sabe de nada, então pare de agir como se soubesse! — Lírica se exaltou e levantou a voz.
Clara riu.
— Calma, ela ainda não sabe. Mas é assim que as coisas são. Não podemos.
— Entendi — Irina assentiu e sorriu, resignada.
Ela não tinha ficado ali, sentada, à toa. E também não respeitava a ordem de seu irmão.
Toda aquela discussão com as garotas teve apenas dois objetivos: ganhar tempo e entender um pouco melhor o que elas pretendiam.
Irina tinha seu próprio jeito de fazer as coisas.
Ela apenas esperou um pouco para dar tempo de Renato se afastar o suficiente. Dessa forma, ela poderia começar a segui-lo sem que ele percebesse.
— Se me dão licença, tenho um lugar para ir.
Ela se levantou e saiu. Claro que não sem antes pegar a mochila com seus itens.
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