Índice de Capítulo

    Renato abriu os olhos e bocejou com preguiça.

    Nos ouvidos, um som distante de helicóptero.

    Estava deitado no chão. As correntes, que antes o prendiam, jaziam caídas ao lado. Seus braços já estavam livres.

    A bala de suas costas tinha sido removida por Tâmara e a ferida suturada; entretanto, aquela que se alojara em seu ombro ainda estava lá. Tâmara tinha medo que ele recobrasse seu poder e fugisse. Ainda ardia um pouco, mas nada que fosse insuportável.

    Sem roupas, Renato sentia a brisa refrescante do ar-condicionado direto na pele.

    Tâmara estava deitada sobre ele, fazendo seu peito de travesseiro. O cabelo cor de mel cobria parte do rosto de Renato e fazia cócegas em seu nariz. Ele podia sentir o cheiro agradável de shampoo misturado com aquele aroma natural de mulher que era capaz de enfeitiçar qualquer homem. Uma mistura de Deus e Diabo; paz e pecado!

    O rosto de Tâmara se contorceu levemente num sorriso preguiçoso, antes dela abrir os olhos.

    Ela se agarrou ainda mais nele, apertando-o contra si. Estava feliz.

    Mas por um momento hesitou. Seu olhar se fixou num ponto aleatório do chão. Ela franziu o cenho.

    — Acho que ouvi um helicóptero.

    Renato riu.

    — Você é tão encrenqueira que até sonha com esse tipo de coisa?

    — Você não ouviu?

    — Não — mentiu ele.

    Renato sabia que suas companheiras tentariam encontrá-lo, e que Tâmara poderia ser uma ameaça para elas. Então ele não poderia simplesmente acabar com um possível efeito surpresa.

    Admitir isso para si mesmo o fez se sentir culpado. Ele estava ali com Tâmara, dividindo um momento, ambos desprovidos de vestimentas, e mesmo assim…

    A pior parte é que ele gostava da companhia dessa sádica sociopata! Algo nela o atraía e flertava com sua própria escuridão interna.

    Tentaria a tarefa quase impossível de apaziguá-la e fazê-la se dar bem com as outras.


    As luzes vermelhas de alerta se acenderam no painel do helicóptero, piscando rapidamente, e vários sons de alarme começaram a soar ao mesmo tempo.

    Luzes amarelas também se acenderam.

    O helicóptero começou a girar descontroladamente. As pás faziam um barulho esquisito e vibravam, com se o aço fosse se rasgar.

    Irina tentava, em meio ao desespero, recuperar o controle.

    Pressionava os pedais anti-torque, regulando a direção do rotor da cauda, para tentar fazer a aeronave parar de girar, mas não estava adiantando.

    Mesmo puxando o coletivo para cima, continuava despencando. O chão parecia um imã gigante atraindo o helicóptero.

    E era como se o Cíclico estivesse soldado de modo que não se movia, mesmo que ela usasse todo seu peso para tentar movê-lo.

    Falha no motor e no rotor da cauda; a bateria quente demais; baixo combustível e até a luz de incêndio tinha se acendido!

    Irina nunca tinha visto todos os alarmes dispararem ao mesmo tempo!

    De início, ela pensou se tratar de uma falha justamente no sistema de alerta, mas não parecia ser o caso.

    Vendo que a colisão com o chão era inevitável, ela se desprendeu de seu assento e pulou para a parte de trás da aeronave, e puxou o para-quedas da parede. Vestiu nas costas e saltou.

    O vento rugia em seus ouvidos. A mecha azul de seu cabelo se movia feito uma serpente; dançando no vento.

    Ela ajustou seu corpo na diagonal, com a cabeça em posição mais baixa, dessa forma poderia controlar a direção da queda livre. Usou uma inclinação que a fizesse cair numa direção oposta à do helicóptero.

    E enquanto descia em queda livre, podia ouvir aquela massa de metal de várias toneladas despencando a poucos metros; o aço rangendo como se gritasse; as pás tinham se desprendido e descreviam sua própria rota em direção ao chão, girando feito um cata-vento. O fogo consumia parte da cauda da aeronave, lançando para o alto um pilar negro de fumaça.

    Irina abriu o para-quedas. E sua queda livre foi interrompida. E ela começou a planar no ar.

    A visão da cidade era sombria, porém bonita. A lua estava encoberta por uma massa avermelhada e as nuvens pareciam do tipo que anunciavam tempestades.

    — Estranho… não me lembro que teria um eclipse lunar… — divagou ela.

    Mas seus pensamentos foram interrompidos.

    Ouviu grasnados. Eram como gritos agudos de desespero.

    E um tucano colidiu contra seu para-quedas, e na tentativa de escapar, o pássaro se enrolou nas cordas feito uma mosca na teia de aranha.

    Seu bico perfurou o tecido do para-quedas.

    — Droga! — Irina começou a girar no ar, de maneira descontrolada, de volta à queda livre.

    Tentou se livrar do para-quedas embolado e acionar o reserva, mas o tucano se debatia sobre ela, arranhava com suas garras e dava bicadas.

    O bico curvado do bicho atingiu a testa dela, próximo do olho. Seu rosto estava todo arranhado.

    Estavam os dois: pássaro e menina se debatendo, lutando pela vida, em completo desespero, enquanto percebiam o chão se aproximando.

    Finalmente o pássaro conseguiu se livrar das cordas e voou para longe, deixando para trás um rastro de plumas coloridas.

    Irina se livrou do para-quedas principal e acionou o reserva.

    E, ao mesmo tempo em que sentiu a freada brusca no ar de sua queda sendo interrompida, sua visão também foi bloqueada.

    Eram milhares, talvez milhões, de asas, bicos e garras. Pássaro dos mais diversos tamanhos e cores. Tucanos, gaviões, sabiás, bem-te-vis e muitos outros.

    Grasnavam e piavam.

    Eram tantos que formavam uma nuvem espessa e, dentro dela, Irina não pôde enxergar nada do lado de fora.

    E novamente seu para-quedas foi arruinado, e a garota voltou à queda-livre, girando descontroladamente no ar.

    — Meu Deus! Não! Droga!

    Foi quando bateu contra um galho de árvore e caiu em água. E afundou no lago.

    A água escura e gelada cobriu sua visão. A força do impacto a jogou em direção ao fundo.

    Moveu os braços e pernas com avidez e desespero. Até que conseguiu emergir na superfície. E, finalmente, podendo respirar, puxou o ar com tanta força que sentiu o peito doer.

    Olhou em volta, tentando entender o ambiente.

    Tinha uma pequena ilha próxima da margem, onde algumas capivaras estavam reunidas, e olhavam para o alto como se pudessem ver algum predador.

    Mas só havia aquela nuvem formada por milhares de pássaros que cruzavam o céu, fugindo de alguma coisa.

    Ela lembrou que alguns animais, especialmente pássaros, podiam sentir desastres se aproximando. Um arrepio percorreu sua espinha.

    Apesar do cansaço, a garota precisava sair da água, que estava tão fria que parecia gelo, então forçou os músculos o máximo que pôde e nadou até tocar em terra firme.

    A uns quatrocentos metros, numa clareira, estava o monte de aço cuspindo uma fumaça negra. O helicóptero, por sorte, não tinha atingido nenhuma área com pessoas por perto.

    Os cabelos  molhados de Irina grudavam na pele. Sua respiração estava rápida e profunda.

    Um pouco de sangue escorria do nariz e a pele do rosto estava cheia de arranhões.

    Uma dor absurda atravessava seu braço direito.

    — Acho que… tá quebrado…

    Ela fechou os olhos por um instante.

    Algo macio caiu em seu rosto, e o frio a beijou.

    Era branco. E mais daquelas coisas caiam do céu.

    Era…

    — Neve? Em Cuiabá? Mas que diabos está acontecendo aqui?

    A neve tomou o céu; e um tapete branco estava se formando no chão.

    E enquanto ela estava confusa, tentando entender a loucura daquilo, algo a assustou.

    Uma árvore próxima explodiu em chamas.

    Um raio rasgou o céu. E ela não pôde acreditar quando percebeu que a superfície da água do lago tinha uma crosta congelada, feito uma carapaça translúcida.

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