Capítulo 171: Sálvia Roxa
— Então, já que vamos morrer de qualquer forma, por que não o matamos de uma vez? — retrucou Tâmara. — Se vamos perder, que não sejamos os únicos, não é mesmo?
O anjo direcionou para ela um olhar inexpressivo. A estava analisando, avaliando aquela alma corrompida.
Renato também estava pensando. Não concordava com a solução drástica de sua companheira sociopata, mas sabia que não podiam simplesmente deixar o anjo ir. Precisavam tomar uma decisão… e rápido.
Porém, algo aconteceu.
Tiros.
Os disparos atingiram Tâmara. Faíscas cintilaram quando as balas colidiram contra a armadura. Ela, instintivamente, protegeu o rosto e a cabeça, enquanto se moveu para o lado, procurando algum local com o qual pudesse se proteger.
— Morre, vadia desgraçada! — gritava Irina, enquanto puxava o gatilho de suas duas pistolas. Tomada pelo ódio, estava alucinada, com o olhar verdadeiramente maníaco.
Renato a segurou.
— Irina! Calma! Para com isso!
— Rê! Renato! Irmão! Você está vivo! — ela gritou, com as lágrimas explodindo de seus olhos, e pulou sobre ele, o abraçando.
— Ah, é… eu tô vivo sim… — respondeu, com uma gota de constrangimento.
— Mas eu vi! Eu vi aquela… aquela filha da puta atirando em você! Eu vi!
— Ah, então foi isso… Olha, eu tô bem. Tá vendo?
— Mas eu vi… você caiu e…
— Eu não disse que isso acontece o tempo todo? — Clara os interrompeu, dando de ombros.
— Mesmo assim… — disse Jéssica. — Tâmara precisa pagar. Não pode ficar impune.
— Eu concordo — falou Lírica. — Ela precisa morrer pelo bem do Renato. Uma garota tão impulsiva e imprevisível assim é um perigo. Não sabemos o que mais ela poderia fazer.
— Calma, pessoal. Não é para tanto também. — O garoto tentava apaziguar a situação. — Além do mais, temos algo mais importante para resolver agora.
— Eu percebi — disse Clara, direcionando para o anjo um olhar de desprezo. — Você capturou um anjinho. Raziel… se não estou enganada. Um dos patifes lá do Paraíso.
Irina finalmente se soltou de seu irmão, meio a contragosto.
Ela olhou para Tâmara.
A garota dos olhos âmbares lhe lançou uma piscadela travessa.
O dedo de Irina roçou numa de suas pistolas. Ela respirou fundo. Primeiro, precisava ajudar o irmão a resolver o problema. Depois, ela se acertaria com Tâmara.
Mical pôs a mão sobre o ferimento no ombro do garoto, e este foi curado milagrosamente.
— Obrigado, Mica.
Ela apenas respondeu com um sorriso amoroso.
A atenção de todos foi tomada quando Tâmara atingiu um soco na boca de Raziel.
— Que foi? Ele estava tentando forçar o vômito! — se explicou ela.
— Clara — falou Renato —, a situação é…
— Eu já entendi. Vocês não podem matá-lo, ou a trupezinha celestial percebe e cai matando na gente com espadas de fogo e tudo o mais. Também não dá pra simplesmente deixar ele aí, ou ele vai vir atrás de nós. E Raziel é um filho da puta, mas é forte de um jeito absurdo. Detesto admitir, mas nem eu poderia vencê-lo. E tem mais uma questão para ser considerada: se a gente ficar tempo demais aqui discutindo as possibilidades, os anjos lá em cima também vão notar. Até aposto que alguns já notaram, e só não desceram porque estão muito ocupados com sei lá o quê. E detesto admitir mais uma vez, mas não poderíamos vencer tudo aquilo. Seríamos exterminados. E ainda tem o lance do Ophanim. Retiro o que eu disse. Não seríamos apenas exterminados. Seríamos desintegrados. Reduzidos a moléculas.
— Ah, certo! — disse Irina. — Agora sim eu tô tranquila!
— Eu gargalharia se pudesse — disse Raziel. — Vós todos estais… qual é mesmo o vocábulo?… Fodidos. Deus queira que eu consiga rir quando vê-los engasgando no próprio sangue!
Mical caminhou até ele e se abaixou, ficando de cócoras. O observou por um tempo.
— Sabe… Eu costumava pensar que os anjos eram seres de luz. Seres do bem.
— Mical… — Jéssica se aproximou, mas não a interrompeu.
A irmã menor continuou:
— Mas eu vi muita maldade nos anjos. Por que você é tão mal? Por que diz coisas tão horríveis? Por que age assim?
— Mal? Vós sois o mal! Vós que se assentam à mesa com demônios! Vosso namorado é o Condutor de Arimã e levará destruição ao mundo! Deus não tolerará mais tais abominações!
— Sabe como eu sei que você tá errado? Porque eu amo o Renato. Amo ele demais. É um amor tão puro, tão grande, que só poderia ser coisa de Deus. É o presente que Ele me deu pra mostrar que nunca me abandonou e nem vai. Te pergunto, anjo, como poderia Deus estar contra o amor?
— Blasfêmia! O que sentes não é…
— É sim! Você que não sente nada, não é?! — Pela primeira vez Mical levantou a voz. — Nem rir você consegue! É uma criatura vazia. E como todos os seres vazios, você apela para a fé cega e para o extremismo na esperança de sentir alguma coisa, mas mesmo assim não consegue. Eu sinto pena de você.
— Certo, chega da sessão de terapia — disse Clara. — Precisamos mesmo dar um jeito no…
— Acho que eu posso dar um jeito nisso. — Essa foi uma voz masculina, grave, como a dita do fundo de uma caverna. Era a voz de Belfegor.
— Aliás… — ele lançou uma piscadela para Mical. — Gostei do que disse.
Ele trazia um cigarro preso nos lábios, o qual o pegou entre os dedos e pôs numa árvore próxima. Aspirou, expelindo uma fumaça púrpura.
— Os outros anjos não vão perceber nada. Pelo menos não enquanto aquele cigarro estiver queimando.
Clara franziu o cenho.
— Belfegor? Então você também estava…
— Vigiando o Renato? Mas é claro. Eu cuido muito bem dos meus investimentos, você sabe.
Ela olhou para o cigarro queimando.
— Sálvia Roxa?
Belfegor deu de ombros.
— Sim.
— Elas não foram extintas no grande dilúvio?
— Ah, ficaria surpresa, Clarinha, o que alguns fragmentos de DNA e muita engenharia genética é capaz de fazer!
— Blasfêmia! — rosnou Raziel. — O que Deus destruiu, não pode ser reconstruído!
Belfegor se aproximou dele. Seu caminhar era lento e tranquilo, mas também um tanto excêntrico. Parecia cheio de deboche.
— Oh, Horácio, existe mais coisa entre o céu e a terra do que sonha sua cega e vã fé em Deus!
— Então você estava vigiando esse tempo todo? — inquiriu Irina. — Por acaso você viu quando ele foi baleado por aquela vadia?!
Tâmara deu de ombros e sorriu. O que mais poderia fazer?
— Sim, ué — respondeu Belfegor. — É claro. Eu vejo tudo.
— E não passou pela sua cabeça tentar… sei lá… proteger ele, caralho?
Belfegor franziu o cenho, como se tivesse ouvido algum absurdo extremamente ignorante.
— Não. Por que eu faria isso? A Tâmara não mataria o Renato. Todo mundo sabe disso.
— Até mesmo eu pude constatar que a garota em questão não mataria vosso Renato — disse Raziel.
— E como eu ia saber, caralho? Eu vi ela atirando nele! E olha a cara de psicopata dessa desgraçada!
— Em minha defesa — disse Tâmara, com uma cordialidade estranha para ela —, minhas intenções não eram tão ruins.
— Verdade — concordou Renato.
— As intenções não eram ruins? — Irina achou o sarcasmo de Tâmara uma coisa absurda. — Ah, olha só, as intenções dela não eram ruins! E quais seriam, por acaso?! O que vocês ficaram fazendo?
— O cheiro dela tá por todo o corpo do Renato — disse Clara, com um ar sombrio. — E o cheiro do Renato está impregnado nela. E ambos estão exalando o aroma de sexo.
— O quê?! — Por um momento, Irina pensou ter ouvido errado.
— Aí meu Deus! — Jéssica levou a mão à testa, indignada. — Eu não acredito numa coisa dessas!
— O Renato…? — falou Mical. — Ele ficou com a Tâmara? Então ele é mesmo um… um safado…?
Tâmara deu de ombros e sorriu.
— Não sei o porquê do choque. Todo mundo sabe que eu sou a amante oficial do Renato.
— “Amante” e “oficial” são palavras que não combinam juntas, se você quer saber?! — retrucou Irina.
— Oh, gente! — Belfegor chamou a atenção de todos. — Acho que estamos perdendo o foco aqui! Não é por que eu escondi nossa presença dos outros anjos, que estamos seguros. O alado aqui já tentou vomitar umas três vezes enquanto vocês tinham uma DR. Tá doidinho pra cuspir o ouro hiperdecaido.
— Em algum momento, vossas atenções estarão distraídas. Mais cedo ou mais tarde eu matarei um por um! — disse o anjo.
— Certo, Belfegor — disse Clara. — E o que sugere? Poderemos matá-lo sob a proteção da Sálvia Roxa?
— Não. Mas eu tenho uma ideia.
— E qual seria?
— Vou levar o alado comigo, e vou guardar ele num lugar todo especial junto de alguns outros amiguinhos. — Ele olhou diretamente nos olhos dela e abriu um sorriso. — O que acha?
Clara assentiu.
— Eu gostei da ideia.
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