Índice de Capítulo

    Mical foi a primeira a se aproximar.

    Se ajoelhou diante do cadáver de Hiro e Thais.

    Estava completamente atônita. A boca seca; a mente, anuviada. Suas mãos tremiam.

    Viu, no bolso da calça de Hiro, um volume quadrado. Ela o pegou. Era uma edição de bolso de O Pequeno Príncipe.

    Sentiu um peso enorme a esmagando.

    Ela pegou o livro e se levantou. Estava sujo de poeira e tinha uma pequena mancha de sangue na capa.

    — Ele não conseguiu entregar pra ela. Não deu tempo. — Mical abriu o livro e viu uma ilustração do personagem num planetinha muito pequeno, solitário, admirando uma única flor. — Thais teria adorado esse livro.

    — Hiro… — Renato cobriu os olhos com a mão. — Você não deveria… — Então ele se lembrou de algo, e a esperança cruel voltou a formigar seu coração. — O Ceifeiro! Vamos…!

    — Não adianta — respondeu Clara. Até ela parecia um pouco abatida. Talvez, não por Hiro, mas por Renato. — Ele já foi recolhido. Não sobrou mais nada.

    — Quantos mais eu vou perder desse jeito…? — Seus lábios se moveram lentamente e a voz de Renato saiu baixinha. Não era uma reclamação alta para que o ouvissem; era apenas um desabafo solitário. Só ele ouviu. Só ele sentiu.

    Porém, algo interrompeu seu devaneio.

    O celular de um bombeiro que estava caído próximo começou a tocar; e em seguida, os dos outros também, e dos policiais.

    Até o celular de Mical vibrou em seu bolso. Ela era a única do grupo com um aparelho desses.

    Assim que ela o tirou do bolso, um vídeo começou a ser reproduzido automaticamente, sem que ela clicasse em nada.

    Era um homem de aspecto doentio. Tinha a pele muito pálida; e os olhos amarelados de icterícia, ostentavam pupilas negras e dilatadas tal qual as pupilas de um morto.

    Estava sentado, com as costas curvadas, numa cadeira enorme, mais parecida com um trono todo entalhado.

    — Peste… — confirmou Renato. — O Cavaleiro.

    E assim que o vídeo iniciou, Peste não se demorou a falar:

    — Esta transmissão está sendo feita para todos os dispositivos do mundo. Humanos! Vocês não são mais os senhores desse planeta que Deus lhes deu de presente. Vocês não são merecedores. Então nós o estamos reivindicando. Eu sou o príncipe desta era! Nesse momento, meus irmãos estão agindo  junto comigo. Eu destruí todos os hospitais do mundo! Todas as clínicas! Todos os laboratórios! Eu sou o responsável pelas explosões! Seus avanços em saúde não passam de um frágil castelo de areia que eu destruo facilmente.  — Uma barata apareceu andando em seu rosto. — Eu, o Cavaleiro do Apocalipse da Pestilência, declaro que o exercício da medicina, da enfermagem, da odontologia, da biomedicina, da psicologia e de qualquer outra terapia como essas está proibida. Aqueles que dedicaram suas vidas a aprender tais ofícios blasfemos, devem ser mortos! E aqueles que os matarem serão devidamente recompensados, porque eu sou generoso e conheço a gratidão. Pagarei, àqueles que os matarem, trinta mil dólares por cabeça! Mas aqueles que desobedecerem esta ordem e esconderem os vis curandeiros, serão condenados e mortos com eles! E para aqueles que ainda preservam alguma esperança — Peste sorriu, mostrando seus dentes podres e amarelados, e a gengiva em sangramento. — Ela também morrerá. É uma questão de tempo.

    O vídeo se encerrou.

    — Jesus Cristo! — Jéssica franziu o cenho. 

    — É uma declaração de guerra — disse Lírica.

    — O que vamos fazer? — questionou Mical, com um olhar preocupado.

    Irina se agarrou a seu irmão.

    Clara olhou para o garoto com curiosidade.

    — O que vai fazer, Renato?

    — O que eu vou fazer? — Ele olhou para o cadáver de Hiro no meio dos escombros. — Não é óbvio? Vou matar um Cavaleiro do Apocalipse.

    A súcubo sorriu e deu de ombros.

    — Ai, ai… fazer o quê, né? Acho que euzinha vou ter que te ajudar!

    — Vamos evocar Belfegor! Preciso falar com ele.

    — Evocar Belfegor vai ser impossível. Ele odeia ser evocado, por isso usa um amuleto que impede que isso aconteça. Mas tem um jeito de falar com ele. Só vamos precisar de um pouquinho de terra de cemitério e algumas gotinhas de sangue. Nada muito extravagante.


    A aurora já surgia no horizonte, pintando a noite num tom alaranjado claro, quando chegaram no cemitério. As estrelas, aos poucos, perdiam o brilho.

    Pousaram diante dos portões.

    — Não se esqueçam de pedir licença na hora de entrar — alertou Clara.

    Quando foram cruzar os portões, Irina hesitou. Sentiu um amargor na garganta e ela recuou.

    — O que foi? Aconteceu alguma coisa? — perguntou Renato.

    — É claro que aconteceu! — retrucou ela. — Foi há poucos dias… a cerimônia…

    — Sim. A despedida das crianças. Foi aqui.

    — Então como pode estar tão calmo?

    — Acho que eu só tô calejado demais — disse ele, um tanto melancólico, então segurou a mão dela. — Vamos? Eu preciso de você comigo.

    Irina bufou, indignada, e depois suspirou.

    — O que seria de você sem mim? — Ela até se permitiu um sorriso singelo. — Vamos.

    Mas assim que pisaram no interior do cemitério, uma sombra passou por eles, e o vento uivou ameaçador.

    Os galhos das árvores secas balançaram, e a luz passava através deles, dando-lhes um aspecto fantasmagórico. Eram como garras de sombras.

    — Tem alguma coisa aqui — disse Jéssica, com um arrepio que lhe subia pela espinha.

    — É — concordou Clara. — Ele chegou.

    — Ele quem? — perguntou Irina, olhando em volta de soslaio.

    — Eu — respondeu uma voz grave e gutural. E a sombra se condensou e foi ganhando contornos de uma silhueta. Até que aquela criatura emergiu das sombras.

    Se portava como um homem elegante. Suas vestimentas eram pretas, mas usava uma capa que era vermelha na parte interior.

    Sobre a cabeça, ostentava um belo chapéu do tipo cartola.

    Mas não eram suas roupas que mais chamavam atenção, mas a aparência de seu corpo: através da elegante camisa com botões abertos na parte do peito, era possível ver os ossos de seu tórax, costelas e clavículas.

    E seu rosto era apenas um crânio, sem pele e nem carne. Porém, as sombras se moviam pelos ossos, lhe dando expressões.

    Ele se abaixou e, com o dedo, desenhou na terra: um traço maior, que se ramificou, numa das pontas, em três traços menores, e estes se ramificou em mais três, se tornando como tridentes. Por fim, cortou o primeiro traço, transformando-o num tipo de cruz.

    Uma risada grave pôde ser ouvida, e um cântico que vinha de algum lugar distante, indefinido; era como se os próprios túmulos cantassem, e as palavras do cântico eram assim: “Eh, Caveira! Firma o teu ponto na folha de bananeira, Exu Caveira…”

    Ele finalmente se levantou.

    — Primeiramente boa noite — disse ele. — Não posso dizer que é um prazer os ver aqui. Eu os avisei que se voltassem aos portões da calunga pequena, não seriam bem-vindos. Por que voltaram?

    — Explica aí, Renato — disse Clara. Em seus olhos, tinham um brilho zombeteiro.

    O garoto lançou para a súcubo um breve olhar de ressentimento, mas tomou a frente para falar:

    — Não queríamos desrespeitá-lo, mas é uma urgência!

    — Sempre é. Suas vidas são sempre tomadas por emergências, tantas que mal sobra tempo para viver. Mas o cemitério não é lugar para emergências. É lugar para descanso. Os anjos e demônios devem manter suas guerras mesquinhas longe daqui. Eu mesmo vou garantir que não atrapalhem o descanso daqueles que protejo!

    — Não queremos atrapalhar em nada — respondeu Renato. — E não estamos aqui pela guerra dos anjos e demônios. O que me trouxe aqui é uma coisa maior: os Cavaleiros do Apocalipse!

    — Como é?

    — Sim! Eles andam sobre a terra! E não se importam com o Céu e nem com o Inferno, e tampouco se importam com o descanso daqueles que partiram! Eles vão destruir tudo! Eu quero impedi-los. Mas eu preciso muito falar com alguém. Só quero um pouco de terra de cemitério. Não vamos profanar nenhum túmulo dessa vez!

    Irina franziu o cenho. As palavras “não vamos profanar nenhum túmulo dessa vez” ressoaram em sua cabeça.

    “Como assim dessa vez?” Ela franziu o cenho.

    O ser de ossos olhou para Renato fixamente por um tempo.

    Renato sentiu-se, nesse momento, profundamente exposto. Ele estava realmente sendo visto. Nenhum pedacinho de seu ser escapou àquelas órbitas sem olhos.

    Depois, o ser de ossos relaxou os ombros e foi como se suspirasse resignado. E as sombras de seu rosto lhe deram uma expressão mais tranquila, e ele sentou sobre um túmulo.

    Exu Caveira desenhou um círculo no ar, usando sua mão, e um tipo de portal foi aberto. E dentro do portal, puderam ver algumas velas acesas, a maioria da cor preta; também tinha comida, farinha e azeite de dendê, pimenta, e muitas garrafas de cachaça, conhaque e vinho. 

    Ele meteu a mão dentro do portal e tirou uma garrafa de cachaça. E em seguida o portal se fechou.

    — Então é isso… — disse ele.

    — Acredita em mim?

    — Acredito. Eu sempre sei quando as pessoas estão falando a verdade ou mentindo, Renato — Exu Caveira o chamou pelo nome. — Eu sabia que tinha algo… diferente acontecendo.

    Ele abriu a garrafa de cachaça e bebeu um gole, e o líquido desceu pela garganta esquelética, e assim que bateu nos ossos da costela, evaporou, emitindo um som de fervura.

    Ele ofereceu a garrafa para Renato.

    — Bebe um marafo? — perguntou.

    Renato pensou por um momento.

    — Por que não, né? — pegou a garrafa e também bebeu um gole. — É forte! — Tossiu.

    — É sim! — respondeu Exu Caveira, rindo.

    Jéssica se aproximou. Estava um tanto tímida e contida, temia ser desrespeitosa, mas precisava saber.

    — Desculpa perguntar — disse ela —, mas o que é você? É algum tipo de demônio?

    — Jéssica! — retrucou Clara. — Não pode falar esse tipo de coisa! É  desrespeito!

    — Não tem nada como ele entre os demônios — disse Lírica.

    — Tudo bem — respondeu a entidade. — A garota só tá tentando entender as coisas. E eu prefiro muito mais a pergunta desrespeitosa com sinceridade do que a cordialidade com falsidade. Você foi ensinada de maneira equivocada sobre muitas coisas, não é, minha filha? Não. Eu não sou um demônio. Ela é um demônio — ele olhou diretamente para Clara. — Eu sou um espírito. Um tipo de guia. Eu ajudo as almas humanas a encontrarem o descanso. Eu guio as almas humanas até seus destinos.

    — Mas… e os ceifeiros…?

    — Ah, eles? São de outro departamento.  Mas vocês estão aqui por um motivo, não estão? Vão mesmo parar os cavaleiros?

    — Vamos — respondeu Renato.

    — Então… que minha bênção esteja com você! Peguem toda a terra que precisarem!

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